A pior parte é quando anoitece.
Não sei se é algum instinto de sobrevivência natural, se é um aviso de que devemos dormir ou alguma coisa do tipo. Mas a pior parte de tudo é quando anoitece.
É como se uma força sobrenatural, maligna, transitasse perto de você. Veja só.Essa força não aparece na sua frente, não se esbarra contigo. O único interesse dela é se fazer presente. Ela quer que você note que ela está ali, de alguma maneira, te observando.
Esqueça todas as bobagens dos filmes de terror e mesmo assim, por mais cético que você possa ser, quando a sua chave cai no chão com as luzes acesas, é porque você jogou como de costume. Mas quando o escuro se faz presente, você não costuma pensar assim.
Essa força te faz perder todo o raciocínio. Não é como se você tivesse uma daquelas máquinas de capturar espíritos dos Caça-Fantasmas ou que contratasse o serviços da Máquina Mistério, com todos os riquinhos e seu cachorro. Você sabe que não pode fazer isso, que as possibilidades de acontecer é zero e, ao escurecer, mesmo com ciência disso, você passa a levar em consideração essa hipótese.
Com certeza, lá com seus doze anos, você riu daquela lenda lá no interior que rondava sobre a escola em que estudava. Apelidada de Instituto, os alunos diziam que era a antiga casa do Conselheiro Rodrigues e que ele estava enterrado no subsolo. Também ouviu dizer sobre as torneiras que abriam de noite e sobre a mulher misteriosa que gemia entre os corredores durante o período noturno. O pessoal da limpeza, diziam, mal paravam por lá.
Tudo não passava de uma tremenda mentira e você não se lixava com nada disso. Mas ao anoitecer, parece que as coisas, do jeito que estavam, se tornavam diferentes. Era a tal força misteriosa que te fazia levar em consideração todas aquelas porcarias.
Então a energia do seu prédio acaba e você tem que subir dez andares para voltar pra casa. Durante os primeiros quatro andares, as luzes de emergência estão mais reluzentes do que tudo e nada parece tão anormal do que degraus e outras pessoas reclamando sobre a falta do elevador.
A partir do quinto andar, não há mais luz, somente breu. É quando essa força maligna se faz presente e, quando você cai em si, está correndo até as panturrilhas queimarem, pronto para abrir a porta de emergência do décimo andar.
Todos os filmes de terror passam pela sua cabeça. Bruxas, zumbis, fantasmas, monstros que esfaqueiam adolescentes que só transam em acampamentos, mulheres com o demônio no corpo, crianças assustadoras. Tudo isso passa a existir de alguma maneira.
A sua casa fica diferente quando a energia acaba. Os móveis estão ali, mas não da mesma maneira. Eles não te pertencem mais e você não tem a mínima ideia de como explicar isso.
A moça da limpeza disse que tinha medo de andar na faculdade durante a noite. Jura de pé junto que viu um moço de preto sentado numa carteira de uma sala e, na noite seguinte, viu um vulto branco. Você sabe que a probabilidade do primeiro caso ser um dos seguranças noturnos dormindo no seu horário de almoço e o vulto ser de uma das freiras daquela faculdade católica, é alta. Mas ao cair da noite, você não sabe como explicar, mas fica irracional e passa a duvidar de si mesmo.
Pessoas andando durante a noite não são as mesmas pessoas andando durante o dia. Por mais que sejam as mesmas pessoas nesses dois casos.
Nictofobia é o nome dado a quem tem medo da noite. Acluofobia é o nome dado para quem tem medo irracional a escuridão. Você sente que pertence a esses dois casos, mas parece que falta algo.
Poderia ser demonofobia, medo de seres demoníacos. Pediofobia de quem tem pavor por bonecos e crianças. Eisoptrofobia , sobre o medo de encarar o espelho. Espectrofobia com fantasmas. Automatonofobia e seus bonecos de cera ou qualquer um que se assemelhe a um humano. Coulrofobia e os palhaços. Esciofobia e as sombras. Necrofobia e a morte ou coisas mortas. Simbolofobia e todas aquelas coisas que você não traduz.
Quando você esgota todas as fontes de estudo, repara nas outras pessoas e nota que não é o único a perceber essa força maligna. Por mais que ninguém confesse, todos dão passos apressados, inspiram e respiram mais rapidamente, não falam muito e acendem todas as luzes assim que chegam em casa.
Você sabe que, uma hora ou outra, terá que enfrentar essa força maligna que nos faz agir de maneira estranha. A mesma força que faz com que sua casa, no escuro, pareça tomar outra forma. A força que faz com que as pessoas pareçam ameaçadoras. Aquela força que grita em sua cabeça.
Quando você sobe de escada os dez andares do prédio porque o elevador quebrou, não sente a escuridão por conta das luzes de emergência. Eram somente mais cinco jogos de escada e estaria são e salvo no seu apartamento de seis cômodos.
As luzes são fracas, porém, reveladoras. Aquilo te trás um alívio. Por mais que lembrassem as luzes que falham em filmes de hospício, você estava a salvo. Hospício. Nessa hora você sente que algo está errado. Onde diabos tirou isso da cabeça? Como ainda se lembra do filme A Casa da Colina?
As luzes deixam de ser fracas e se apagam. Então não são mais dez degraus por cada andar. Não são mais cinquenta degraus que você escalaria em dez minutos. Agora são quinhentos degraus. Tanto para cima quanto para baixo e não há mais saída. Tem que enfrentar o que quer que seja.
Com duas vibrações no celular sua lanterna é ativada. A impressão que tem é que a força foge de todos os feixes de luz. É nítido os vultos de quem consegue escapar no último momento deixando um rastro.
Jura ter escutado uma risada. Não há mais nenhum morador usando a escadaria e o suor frio que escorria da sua têmpora te faz parecer uma criança de cinco anos assustada. Até que você dá um basta nessa situação e acerta um cruzado onde quer que seja.
O ar corta o seu murro e você grita, apareça.
O ar corta o seu pontapé e você grita, covarde.
O ar corta seu corpo se jogando contra a força maligna e você grita, morra.
Quarto andar.
O ar causa aquele zumbido semelhante as copas das árvores enquanto você rola cinco andares abaixo segurando o colarinho de quem quer que seja. Você não solta. Não agora que percebeu que essa força maligna se alimentava de todo o medo.
Terceiro andar.
Era como se estivesse numa caverna, de costas para a saída e que a única noção de realidade fossem as sombras refletidas na parede. Tudo até olhar para o outro lado. Acho que foi algum filósofo que disse isso.
Segundo andar.
O que importa é que agora você não tem mais medo. Os degraus trincam seus ossos e você sente o estalo da sua coluna, mas você jura que não vai soltar esse demônio até que ele seja banido.
Primeiro andar.
Demônio, fantasma, boneco de cera, palhaço, reflexo no espelho, escuridão. Não interessa, pela primeira vez ele está em suas mãos e saber que poderá salvar um prédio inteiro te motiva a tomar essa responsabilidade pra si.
Térreo.
Acordo numa maca com um interno cochichando no ouvido do outro alguma coisa que estava numa prancheta. Dizia sobre o cubóide do meu pé esquerdo. Duas falanges distais da minha mão direita. Das minhas duas bigornas. De duas vértebras torácicas e uma lombar.
Diziam também que meu primo e minha mãe me visitaram pela manhã. Meu pai durante a tarde e meu irmão fazia cinco minutos. Também falaram sobre a queda por toda a escadaria do quinto andar até o térreo. Disseram que virei o pé e quebrei o osso cuneiforme medial e o navicular do meu pé direito e que rolei cinco andares sabe-se lá como.
Não identificaram nenhuma droga no meu corpo, gota de álcool ou algum estresse que tenha tido durante a semana. Sem surtos psicóticos e sem histórico de algo semelhante na família.
As luzes começam a falhar o os dois internos trocam olhares para, logo em seguida, saírem do meu quarto. Minha perna está suspensa numa tipoia, assim como o meu braço.
As luzes voltam a falhar e sinto a presença desse vazio e silencioso que se faz tão presente e ensurdecedor. O tal do escuro. Da noite. Aquele vão onde tudo parece ser consumido mas que, de alguma maneira, não me ameaça tanto assim.
Afinal de contas, quem tem medo do escuro?
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Alta Voltagem
RomantizmAlta Voltagem é um termo em engenharia elétrica utilizado para identificar as considerações de segurança de sistema de geração, distribuição e utilização de energia elétrica baseado no valor de tensão elétrica. Outro termo empregado para Alta Voltag...