O velho e o morcego

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Olá velho, tudo bem?

Escrevo essa carta porque nós dois sabemos como é difícil te enviar qualquer coisa via satélite sem que seja criptografado por todo tipo de segurança que você faz questão de ter para se esconder.

Também escrevo para lembrar que aqueles sim eram bons tempos. Claro, enfrentávamos as mesmas merdas que você enfrenta hoje sozinho, mas, você não sente que, de alguma forma, tudo era mais inocente, colorido, menos cético e menos sarcástico?

Tapa nas costas, sorrisos aliviados e outro velho, tão velho quanto você, com um cachimbo na boca, planejando com a gente os nossos próximos passos nessa cidade, lá do alto do departamento de polícia. Ele ligava aquela lanterna ridícula para nos chamar. Cara, como você odiava aquilo. Para ser sincero, até hoje o Alfred diz que você só aceitou aquela besteira por minha insistência.

Talvez por parecer ser a única pessoa que você escuta de verdade, escrevo pedindo que pegue um pouco mais leve, cara. Que negócio foi esse de pular em cima de um carro em movimento, quebrar o vidro e o capô e levantar o suspeito pelo pescoço?

Tente me imaginar voltando pra casa. Ligo a televisão e você, um velho com aquela tora que chama de abdômen, usando aquele cinto de utilidades ridículo, correndo atrás de três bandidos enquanto algum repórter te provoca filmando tudo do seu celular, porque, por um fodido acaso, passava no mesmo momento em que a perseguição acontecia.

Você costumava ser mais precavido. Essas coisas não aconteciam porque você era a mente brilhante que sempre estava a quatro passos a frente de qualquer um.

É disso que tô falando!

A gente envelhece e as pernas doem. Os ligamentos dos ossos raspam um com o outro e o nosso fôlego vai para o saco. Não raro a gente deslocou o ombro sempre que lançávamos aqueles discos na cabeça de alguém.

Lembra, lá no começo, quando ficou puto da vida porque não escolhi as suas cores de uniforme? Qual é! Eu tinha apenas dezessete anos e com a cabeça de quem poderia mudar o mundo. Um verdadeiro bostinha que fez questão de peitar o próprio chefe para provar que também tem voz própria.

Éramos uma dupla do caralho!

Quase repeti a faculdade porque a vida mascarada era muito mais excitante do que os livros de economia e administração. Vá a merda com tudo isso! Eu vim do circo, cara. Aquelas coisas nunca fizeram sentido pra mim. Mas, quando a gente saltava de cada prédio perseguindo um palhaço com gosto horrível para humor, aquilo sim poderia ser considerado o auge da minha vida. Pela primeira vez, depois de muito tempo, tinha encontrado o sentido para as coisas e você sempre esteve lá, sendo o primeiro a se expor, pronto para levar um tiro no peito por alguém.

Velho, hoje eu te vi na televisão com os dois olhos roxos, tórax enfaixado e levando um cacete de cinco moleques. Jamais apanharia assim. Eles te pegaram de jeito, não foi? Seu corpo não trabalha com a mesma velocidade que o seu cérebro e isso deve ser um inferno. Saber que está envelhecendo quando nota que não consegue mais fazer as coisas que fazia antigamente, é uma merda que não desejo a ninguém.

De tudo isso, eu sei o que te deixou mais puto da vida. O Alfred se foi e a única pessoa que você esperava te entender de verdade, foi um tremendo de um covarde e caiu fora logo após ter tomado o primeiro, e último, tiro no peito. Você apostou todas as fichas nele. Acreditou que ele teria culhões. Afinal de contas, você o treinou como jamais treinaria alguém e duvido muito que vai procurar outra pessoa pra trabalhar com você.

Saber que essa pessoa foi embora quando seria o momento de se mostrar tão bom quanto você, deve ter fodido com sua cabeça Eu imagino como deve ter ficado puto, desesperançoso, desanimado e, talvez, achando se era, ou não, desequilibrado para continuar essa empreitada durante anos e anos.

Puta que pariu! Éramos a droga da Dupla Dinâmica e agora você é motivo de piada porque não dá conta mais do serviço. Até o comissário mandou tudo a merda e se aposentou para morar em algum muquifo no interior.

Velho, eu tô te escrevendo para dizer que deve pegar mais leve. Você não sabe como é horrível voltar para a casa e ver que apanhou mais uma vez. Existe até um quadro de comédia. Eles te imitam, correndo como um velho gordo e todo atrapalhado, se fodendo tentando perseguir bandidos. Você virou a merda de um meme e fico transtornado por saber que você simplesmente não para.

Que diabos você acha que tem a provar algo para alguém?

Você faliu e só a gente sabe como eram altos os custos para repor todas aquelas tralhas e carros na caverna.

Velho, você mais do que ninguém, deveria aproveitar sua aposentadoria. Vá pescar num lago. Ande a pé até o mercado. Não se preocupe em salvar o dia, porque essa é a pior parte de sermos o que somos. A gente nunca vai achar que está bom.

Confesso que, logo depois que caí fora, foram muitas as vezes que peguei meu uniforme verde, vermelho e amarelo e voltei para as ruas socando marginais. Sabia que estavam ligados com traficantes. Você me ensinou isso. Sabia que, mesmo aposentado meu manto, e que aquilo nada mais tinha a ver comigo, fui lá e salvei o dia.

Naquela noite, Bárbara e eu brigamos porque uma vez ela sonhou que tomou um tiro daquele palhaço e ficou paraplégica. No dia seguinte me arrisquei nas ruas. São esses detalhes que fazem a diferença e talvez a gente deve encontrar outras maneiras de salvar o dia que não seja colocando o nosso rabo em risco.

A Bárbara pergunta de você todas as noites. Ela não cansa de escutar as nossas histórias.

Antes que fique puto comigo, não se preocupe, confio plenamente nela. Jamais contaria para alguém quem é você de verdade e nem onde fica a caverna com as dezenas de carros.

Termino essa carta dizendo que, talvez, você possa salvar o dia de outra maneira. Sei lá. Parece que ninguém mais se importa. É como se...não encontro palavras...mas é como se as pessoas pagassem uma fortuna para nos ver duas, três vezes ao ano, consumindo tudo que podem da gente, para nos esquecer durante os outros trezentos e poucos dias.

Soube por sites e programas de celebridades que o famoso e bilionário está saindo com um interesse romântico. Uma portuguesa que ele conheceu em Londres, durante uma conferência das empresas Wayne. Espero que seja verdade.

Torço para que dê certo e que o Bruce seja a última pessoa que o morcegão possa salvar.

Acho que é isso.

Uma última coisa.

Ainda guardo meu uniforme, todo rasgado, na gaveta do quarto. Bárbara diz que ninguém jamais vai acreditar que sou o garoto prodígio da dupla dinâmica, mesmo se eu aparecesse uniformizado. Não sei se foi um elogio ou se ela está tirando uma com a minha cara.

Deixo essa resposta contigo.

Abraços,

Dick Grayson, o Robin

Alta VoltagemOnde histórias criam vida. Descubra agora