Saída de emergência

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Nunca compus uma música de uma vez só e não seria hoje que faria isso. Ainda mais com a Dra. Elliot do meu lado. A gente torce para não ser pego de novo, algo como confidencialidade entre médica e paciente.

Ela nunca me delatou, mesmo quando você convence um andar inteiro que os quartos haviam sido trocados. As pessoas correm de um lado para o outro, equilibrando o soro fincado nas veias e tampando seus aventais na altura da bunda, desesperadas atrás do seu quarto.

A gente corria até as panturrilhas queimarem. O ritmo de cada música era compassado com os nossos batimentos cardíacos e jurava que a gente não perderia aquilo de maneira alguma.

Quando grito para a Dra. Elliot, o que consigo entender do outro lado da avenida são gestos que envolvem seus dois dedos médios.

Ela dá seu primeiro passo e recua no mesmo instante, assim que escuta o primeiro carro. Devorava um chocolate a cada tentativa e me dizia que, clinicamente falando, há diferentes válvulas de escape para reduzir a ansiedade e que preferiu escolher uma que seja saborosa.

Ela dizia que seu biótipo corpóreo era classificado como ectomorfo, o que fazia seu metabolismo ser acelerado. Por isso não engordaria nem a pau.

Inspirava, respirava, mordia mais um quadrado da sua barra de chocolate e recuava uma segunda vez.

Talvez essa tenha sido a pior ideia que tivemos.

Foi quando ela tirou os saltos e fechou seus olhos.

A gente arrumava as malas dividindo café porque ela contou que a vodca em noites frias era um suicídio. Caso a gente tomasse, nossos vasos sanguíneos superficiais se dilatariam, fazendo o nosso sangue retornar aos órgãos centrais e, como ele estaria mais gelado, diminuiria a nossa temperatura média.

- A parte ruim de ser médica é que você nunca mais enxerga as coisas da maneira normal. Um espirro nunca é um espirro e uma tosse nunca é uma tosse. E isso é uma merda.

Ofereço um energético e ela recusa dizendo que a cafeína e taurina, em excesso, acelerariam ainda mais seus batimentos cardíacos, tornando grande o risco de ter um infarto agudo do miocárdio.

- Ao menos queria estar bem vestida para isso, sabe? É sempre azul ou verde. Isso porque essas cores estão no oposto do vermelho e de suas varrições no espectro das cores. Se você olhar para a cor vermelha na cirurgia e depois olhar para uma superfície branca, começaria a distorcê-la, enxergando o vermelho como uma cor esverdeada.

Tudo que eu poderia fazer pela Dra. Elliot era leva-la o mais longe possível daqui.

- Você é insistente — ela me disse antes de jogarmos nossas malas do outro lado do muro — e isso é muito bom. Foi o que me motivou a continuar seu tratamento.

Pergunto a Dra. Elliot se ela teria alguma coisa para falar antes de partirmos e tudo o que ela diz é que o jaleco branco começou a ser usado na Idade Média, quando se descobriu que a higiene também era responsável por evitar doenças. Quanto mais branco e limpo, mais higiênico o jaleco seria.

Somos loucos por coisas que devem ser exatamente como são, o que nos tornam os piores chefes que poderíamos ser para nós mesmos.

- Sabe quando você trabalha 48 horas por dia e não tem tempo pra nada, porque sempre tem pessoas dispostas a se esforçarem o máximo para morrer a cada segundo e, na única oportunidade que tem para ser uma pessoa normal, você diz que estará no bar com aquele jaleco branco que todo médico usa e, depois de uma hora, percebe que ele não vai ir te encontrar, mesmo você sabendo que essa foi a terceira vez que marcam e ele te dá um bolo e, mesmo assim, no final, se dá conta que é a única mulher no bar com um jaleco branco de médico?

Vem logo, eu digo. É só fechar os olhos e seguir em frente.

Seus chocolates acabaram e o primeiro carro passou a pouco centímetros do seu peito. Logo em seguida sentiu uma forte corrente de ar rasgar as suas costas, obrigando pegar a um saco de papel no bolso do seu jaleco.

Dra. Elliot me contava, sempre em troca de um verso, todas essas coisas médicas. Como o soca do papel. Ela dizia que, quando se tem uma hiperventilação, o ar se move muito rápido pelo corpo, o que acaba deixando baixo o nível de dióxido de carbono no sangue. Consequentemente, os níveis de cálcio dos fluidos corporais também diminuem. Ao respirar em um saco de papel, o nível de dióxido de carbono dentro do saco aumenta.

Quando você respira o ar que acabou de exalar, aumenta o nível de gás carbônico na sua corrente sanguínea e restaura seus níveis de cálcio.

Os carros se entrelaçam e ela nem precisava mais de um saco de papel para respirar. Recebo o abraço mais forte que ela já deu na vida e também o tapa mais forte que alguém poderia levar.

A noite parecia demorar bem mais do que ela normalmente levaria o tempo para terminar.

Talvez seja pela mistura de café, energético e vodca. Ou por quase morrermos atravessando a avenida. Ou porque seremos pegos.

E o que vem depois, ela me pergunta.

Digo que aquele lugar fica fora do controle. Os médicos perdidos sem saber o que fazer e todo mundo livre para fazerem o que bem entenderem da vida.

Elliot me pergunta se a escolha de viver por lá talvez seja fazer o que bem entendem e eu não sei o que responder. Quando se tem uma demo com oito músicas, você não costuma pensar nessas coisas.

Pergunto qual é o meu prognóstico.

- Na verdade, o que está querendo saber, é do seu diagnóstico. Prognóstico seria se eu te falasse como podemos tratar isso. Diagnóstico é pensar o que se passa na minha cabeça por me sujeitar a atravessar essa porcaria de pista.

Ela diz que não tinha certeza de como me ajudaria, mas faria o máximo possível. Depois me disse que aquela era uma resposta padrão médica que se usa quando não se tem a mínima ideia do que fazer para, depois, finalmente falar o que tinha que ser falado.

A gente observa dois grandes círculos brancos ziguezagueando na pista que a gente tinha acabado de atravessar. Os círculos iam de um lado para o outro, como se tivessem farejando alguma coisa. Eles dão volta em si mesmo até ficarem alinhados, uma ao lado do outro e caminharem para a nossa direção.

O vento fica mais forte e o saco de pão escapa das mãos da Dra. Elliot.

A gente olha pra cima e vemos dois helicópteros brancos e vermelhos, com duas pessoas, também de brancos e com jalecos iguais a da Dra. Elliot, gritando naquele megafone que tínhamos que voltar.

- Vocês precisam voltar.

Olho para o crachá da Dra. Elliot, e lá dizia Hospital Psiquiátrico St. Magnus. Também dizia que ela era doutora, como aqueles doutores ali em cima. E ela diz que era algo além do que confidencialidade entre médico e paciente.

- Falta pouco e vocês não podem desistir agora. Estão perto de conseguir alta, acreditamos em vocês — dizia o outro cara com aquele jaleco branco.

A Dra. Elliot tira um prontuário amassado do seu bolso e me entrega, enquanto os doutores jogam as escadas para se aproximar da gente, bem na hora em que ouvíamos as sirenes.

Era o seu prontuário. A Dra. Elliot nunca havia sido uma doutora e me fez pensar nos dias em que a gente bagunçava aquele lugar. Ela sempre vinha com o prontuário e dois copos de café e dizia que tinha mais pacientes para tratar durante o dia. Talvez ela estivesse se tratando também.

A Dra. Elliot sorri assim como eu.

Ouvimos os gritos para retornarmos. Gritos de pessoas que diziam nos ajudar a serem melhores. Pedidos para que terminássemos nosso tratamento.

Nosso compasso acompanhava os nossos batimentos cardíacos e eu jurava que conseguia sentir os dela quando apertava sua mão e corríamos o mais rápido que nossas pernas aguentavam.

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