Uma das regras do Walt Disney World é que você não pode chamar mais atenção do que o Mickey Mouse em hipótese alguma. Nem mesmo da Minie Mouse. Nem do Pateta e do Pato Donald. Muito menos do Pluto. Se em algum dia uma criança apontar o dedo em sua direção, pedindo uma foto, aquele rato não vai pensar duas vezes em chutar seu rabo para fora do parque.
Existem outras maneiras de chamar atenção que não seja fantasiado, como decidir qual fio cortar e impedir que o parque da Disney vá pelos ares.
Há uma semana, bem antes dos fios vermelhos e verdes, dos alicates, do suor escorrendo pela testa, das trancas reforçadas naquela porta metálica, a gente apostava no famoso que morreria esse ano.
Ela me dizia que seu sonho era ser a Miley Cyrus depois da Hanna Montana. Sem as perucas, séries infantis e toda aquela coisa de identidade secreta. Também contava sobre como todos os artistas mirins da Disney pareciam enlouquecer quando saiam de lá.
Mudanças de visual. Fotos íntimas vazadas. Bebidas, drogas, metanfetaminas. Atitudes que nada diziam aquela imagem de pureza, do belo e da perfeição que aqueles dentes brancos mostravam.
É uma maldição da Disney, eu falo.
É nesse ponto que todos se enganam, ela diz. Você constrói sua própria cronologia dos fatos e se contenta como as coisas deveriam ser. Imagine que a Miley Cyrus se cansou de todo aquele ambiente de flahs e de todo mundo decidindo as coisas por ela. Imagine que ela pode ter liderado um motim.
Falo para ela sobre como a gente não pode ir para o parque de diversões da Disney com roupas mais chamativas do que eles.
Pagamos para sermos coadjuvantes.
Pagamos para aplaudir as estrelas.
Pagamos para ter o sonho que querem que tenhamos.
Você consegue explodir qualquer coisa se misturar os ingredientes da maneira certa.
- A Miley Cyrus estava pouco se fodendo com os cabelos raspados e a bola de demolição. Ela quis fazer aquilo e pronto.
Para fazer uma bomba relógio, tudo que você precisa é de um timer caseiro. Pode ser um relógio de pulso, um despertador e até aqueles do seu microondas. Se for para mandar tudo pelos ares, que seja numa contagem regressiva atraente.
Lucia me mostra aqueles relógios cucos e pergunta se não seria engraçado eles cantarem a medida que a contagem chegasse a zero, fazendo um escarcéu, como num desenho animado.
- O fato é que ela se cansou de tudo. Daquela peruca da Hannah Montana. Daquelas canções que ela não compunha, da voz que saía das caixas de som que não era dela e dos convites a todos os programas infantis, porque ela odiava o grito daquelas crianças.
A torre mais alta do castelo explodiria e ele ficaria incompleto, mesmo intacto. Como a Miley Cyrus se sentia, mesmo com as perucas e coletivas de imprensas e filmes e o que mais fosse.
Não entendo como ela tinha tanta informação e tudo o que me diz é que o motim nos estúdios aconteceu de verdade. Ela saca seu cartão de acesso vitalício e ninguém ousou erguer um dedo para confirmar se ela era mesmo aquela menina da série de comédia de problemas comuns de adolescentes.
Aquilo me enchia o saco, ela dizia e baforava a fumaça do cigarro por todo o furgão. O segurança abria um sorriso e repetia vários bordões daquele programa sem graça.
- Certo dia, as coisas ficaram apertadas demais — acenava a medida que a gente se afastava do portão de serviço — Coreografias em excesso e o desespero em arrumar um menino para ser meu par romântico para a revista de fofoca.
Foi quando a Miley Cyrus fugiu e ninguém sabia dizer alguma coisa. Então ela chega com o cabelo raspado, de trajes mínimos, destruindo todo o estúdio enquanto mandava todos os produtores enfiar seus anseios no rabo.
Talvez você tenha me conhecido no momento errado da minha vida, ela dizia pra mim.
Pó de arroz, batom vermelho, sapatos de número cinquenta, roupas coloridas e perucas extravagantes. E alguns relógios cucos na mala. Com aquele cartão vitalício de acesso, a gente conseguia entrar em qualquer lugar dali. Porque as pessoas ainda acreditam que você seja exatamente aquilo que elas enxergam em vinte minutos de programa.
É muito fácil confundir a ficção da realidade.
Éramos os parceiros mirins de uma série de sucesso e nossos produtores falavam que tudo isso fazia parte do show. Até mesmo o nosso relacionamento poderia render ensaios fotográficos, capas de revista, participações em programas e, quem sabe, um especial de natal.
Então falam por nós. Não porque nos odeiem ou nos invejem, mas por sermos o que todos sonham. A ficção sempre parece ser mais reconfortante e estou de saco cheio dela.
Os cucos fazem um barulho infernal e a multidão se aglomera bem ao pé daquela torre. O parque da Disney tem a dimensão de uma cidade e cobra um valor a parte para que você consiga fazer um tour na área subterrânea, e é por lá que os seguranças pretendem nos alcançar.
A ideia era sumir do mapa. Ir para uma daquelas cidades áridas do interior da capital com aqueles fenos voando pelos ares na terra rochosa. A gente usaria nosso carro em pedaços e compraríamos algumas coisas no mercado local, que ficaria muito longe da nossa casa. A gente se engaria prometendo ir para a igreja todos os domingos, quando na verdade, iríamos para alguma festa na cidade vizinha.
Não era para a porta travar.
Os passos ficavam mais fortes e a Lucia morava toda a maquiagem.
Dezesseis segundos e tampava meus ouvidos o mais forte que conseguia.
Dez segundos e os seguranças a abraçavam, enquanto me imobilizavam. A acalmavam quanto a esse atentado terrorista.
Em um segundo tudo irá pelos ares. Os cucos param de cantar e nada acontece.
Eles riem, a multidão aplaude e dizem que tudo fazia parte de um novo reality show. Nos acompanharam desde que a gente saiu do programa e largou tudo. Também disseram que, pelo contrato, teremos uma linha de brinquedos, uma série e três animações para dublar.
Depois, eles diziam, talvez vocês possam realizar qualquer sonho que tenham.
Tenho pouco tempo para arrumar as coisas. Acelero o mais rápido que posso e ninguém parece me reconhecer. Nunca estive tão feliz quanto agora.
Naquela pequena cidade interiorana, no melhor estilo velho oeste, peço Lucia em casamento e ela diz sim. Falo que a Miley Cyrus será a nossa madrinha e que já confirmou presente.
Lucia retribui o sorriso. Há cartazes sobre nosso desaparecimento, assim como outdoors indicando festas na cidade vizinha.
Ela me retribui com um grande sorriso e piso no acelerador.
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Alta Voltagem
RomanceAlta Voltagem é um termo em engenharia elétrica utilizado para identificar as considerações de segurança de sistema de geração, distribuição e utilização de energia elétrica baseado no valor de tensão elétrica. Outro termo empregado para Alta Voltag...