Único: Um garoto desses?

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E esse engarrafamento que parece não ter fim?

Pela vigésima vez, bato com a palma da mão no bolso lateral da bermuda vazia. E, pela vigésima vez, lembro-me de que não estou com meu celular. Tudo o que eu queria era um pouco de internet para passar o tempo dentro do ônibus de volta para casa depois de um dia letivo cansativo, o que é uma grande ironia do destino já que ontem mesmo insisti em emprestar o aparelho para minha mãe. O dela encontra-se no conserto e eu sei o tanto que um meio de comunicação com os clientes faria falta para os negócios enquanto ela estivesse trabalhando de casa.

De meu assento do lado esquerdo que dá para a janela, olho para a fileira de carros na pista ao lado. Vejo o cenário se mover numa velocidade crescente e sou dominado por um sentimento de empolgação: Estamos andando afinal!

Minha alegria, no entanto, dura pouco. Alguém do lado de fora fez sinal para o motorista e logo paramos para buscar o passageiro. Tento não grunhir de desgosto e fecho os olhos para calcular meu tempo de chegada contando com o engarrafamento infinito e levando em consideração todos os pontos de parada que ainda encontraríamos pelo caminho. Apoio os cotovelos nos joelhos e deixo a cabeça pesar por cima das mãos.

Cabisbaixo e entediado, nem mesmo a aceleração do ônibus me dá esperanças. Ao abrir os olhos novamente, levo um susto, pois há um par de pernas masculinas na lateral do meu campo de visão. Deve ser o novo passageiro, é claro. Mas por que tinha de sentar logo do meu lado?

Dou mais uma olhada atenta para as pernas à minha direita. Subindo das enormes panturrilhas bem definidas – impossíveis de ignorar – em direção às coxas, pude reparar na bermuda com o brasão que eu conheço muito bem já que é o mesmo que eu trago em meu próprio uniforme: o emblema da escola.

De repente, talvez pela falta do que fazer, fico tentado a descobrir se conheço ou não o garoto. A curiosidade me leva a levantar a cabeça lenta e discretamente para, com o canto do olho, espiar seu rosto: trata-se de um menino aparentemente da minha faixa etária, loiro de cabelos totalmente bagunçados e espetados assim como os meus. Seu olhar é indiferente e posso notar que está com fones de ouvido.

Como não consigo recordar de alguém assim pelos pátios do colégio, busco verificar se sua camisa é realmente parte do uniforme que eu também uso e sim, definitivamente ali está o brasão da escola mais uma vez. Rapidamente desvio o olhar para a janela para não parecer que eu estava olhando para seu peitoral e começo a refletir.

OK, um garoto que provavelmente estuda comigo acaba de pegar um ônibus em um ponto muito distante do colégio. Estaria ele matando aula? Ou será que caminhou até aqui e então percebeu que sua casa era longe demais para ir a pé?

Reparo no que estou fazendo e reviro os olhos rindo internamente. O tédio é tanto que estou interessado em deduzir sobre a vida da garoto...

Tento focar no lado de fora do veículo e nas demais filas de carros que se movem vagarosamente. Estamos todos a, talvez, 10 km por hora.

Bom, já é algum avanço...

Começo a sentir fome. Evito pensar no almoço que me aguarda em casa, mas meus esforços são frustrados quando meu estômago ruge. Imediatamente eu congelo em receio, pois é impossível que o garoto não tenha ouvido. Sinto o rosto corar de pura vergonha e procuro espiar seu reflexo. Ele não parecia abalado de seu estado desinteressado e mexia dentro de sua mochila despreocupadamente, mas a parte mais importante foi ver o reflexo dos seus fones de ouvido: meus salvadores!

Mal tive tempo de curtir meu alívio, pois o rapaz subitamente olhou em minha direção e, antes que eu pudesse desviar o olhar do reflexo, cutucou meu ombro direito. Com o corpo petrificado, viro apenas o pescoço em sua direção, fitando seus olhos vermelhos e frios pela primeira vez. Será que ele me ouviu mesmo usando os fones? Será que viu que eu o observava? Sinto um calafrio me subir à espinha e então percebo uma barra de cereais em suas mãos que estão estendidas.

Um garoto desses?Onde histórias criam vida. Descubra agora