Pêndulo

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A primeira vez que lembro de você, você era loiro.

As nuvens se dispersavam rapidamente naquele dia ensolarado momentaneamente ventoso, o cheiro das folhas caídas do outono no ar e a umidade leve de chuva no mais tardar. Eu estava sentado num gramado bem amassado e malcuidado, deitado naquela imensidão verde desgastada e observando o céu. Não havia mais nada de importante a fazer.

Meu momento era totalmente absorto no meu afazer, portanto não consegui escutar os gritos de chamado em meu nome nem notar os passos pesados e rápidos de alguém se aproximando. Quando notei, aquela minha velha colega de escola que não via há bons anos, na realidade desde de nossa formação no fundamental, já estava próxima o suficiente para pular em mim e me envolver num abraço apertado.

Ela sempre fora tão sentimental. Mesmo sem a intimidade que havíamos há muito, retribui seu abraço como se tivesse acabado de encontrá-la dias atrás. Ela merecia.

Quando ela começou a desenvolver uma conversa bem profunda e impregnada de saudade para comigo, foi quando notei que não estava sozinha. Ao seu lado e numa estatura muito maior que me fez com muita surpresa não ter notado sua presença, talvez seu namorado ou amigo me observava com olhos carregados de desprezo.

Tremi. Por algum motivo, aquilo me perfurou. Talvez nossa amiga tivesse lhe dito que eu era um antigo companheiro de infância gay, mas eu não me atingia facilmente com preconceito tanto quanto agora. Havia algo naquele desconhecido que demonstrava uma repulsão de algo que um dia já fora acolhedor.

Aquela fora a primeira vida que eu te conheci. E você não me amou de volta.

-

A próxima vez você era moreno.

Eu tinha dezesseis anos quando me permitiram, enfim, trabalhar como caixa de uma lojinha de conveniências no centro. Era inverno na época, e nem meus moletons caros e pesados me aqueciam o suficiente embaixo daquele ar condicionado desgraçadamente baixo, porque meu chefe insistia que ainda estava calor.

Meu trabalho além de passar compras era sempre estar de olho nas câmeras de segurança, as filmagens mostradas em tempo real em nove quadradinhos na televisão de quinze polegadas que residia ao lado da máquina registradora, também acompanhada do outro lado por uma espingarda caseira que servia em muito para afastar os ladrões, quando esses tinham o espirito de tentar assaltar uma loja tão patética e tediosa que nem duzentos pila possuía no estoque. Não havia muitos clientes, mas até que nos sustentavam. O começo dos anos dois mil estava sendo bruto para o comércio, não podíamos pedir demais.

Eu já estava bocejando na milésima vez naquela noite quando enfim um ser humano que não fosse eu se juntou na loja, o sininho da porta me despertando do torpor do sono. Sentei mais adequadamente na cadeira girante e alta, pronto para receber o novato com um sorriso brilhante e entusiasmado.

Então você entrou, os passos rápidos em direção ao que parecia querer muito comprar, umas prateleiras para frente, seus olhos cruzando rapidamente e distraídos com os meus.

Você parou no meio da loja. Eu também estava surpreso. Naquele momento, tentei buscar em toda minha memória alguma ocasião que pudesse ter te conhecido, porque você era muito familiar.

Não encontrei, e nem você pareceu também. Eu ri nervoso naquela hora, meu coração batendo saltado em meu peito.

- Pelo teu entusiasmo, acho que você ta atrás da Coca que acabou de lançar e todo mundo ta louco por ela, não é? Não se preocupe, eu ainda tenho aqui na loja - pisquei para você, minha voz maleável e sucinta.

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