Era um cômodo incomodo, sentado no banco traseiro do Uber. Ricardo não aguentava mais aquele clima. Quente, de sauna seca, com pitadas de carbono fugidas das profundezas da Terra. Engarrafamento irritante irritava o motorista, que irritava Ricardo. Quantas ruas debaixo dessa aqui, pensava Ricardo, seriam necessárias para desafogar esse mar de metal quente e de cérebros desestimulados. Talvez o mesmo número de andares dos prédios.
O motorista e sua tranquilidade fingida perturbavam Ricardo profundamente. Porque ele simplesmente não proclamava sua raiva? A todo pulmão, nem que seu grito saísse em forma de chiado estridente de buzina. Não. Ele mexia, a cabeça constantemente, como se planejasse sair voando por cima dos carros parados. Ricardo atrasado para o cinema, respondia perguntas mundanas sobre o clima. Era prevista uma grande tempestade, e as pessoas, como formigas ao perceber as primeiras gotas de chuva bombardeando o formigueiro, se agitavam para lá e pra cá, piorando ainda mais o trânsito na hora do rush. Ah sim, o clima.
Era espesso, como se uma sequência de tragédias evitáveis tivesse acontecido naqueles primeiros ferventes meses do ano. Antecipação da dor que surge átimos de segundo depois de chutar descalço um pé de mesa. Ricardo sentia isso no motorista, nos pedestres, no clima e nele mesmo. Você vai chegar a tempo rapaz, vai chegar, vai chegar. Repetia ele que de tempos em tempos acelerava sua máquina automática, que engasgava, como se precisasse de cuidados. Mas para Ricardo quem precisava de cuidado era o motorista. Uma banheira de água gelada com gelo e sal. Sim, sal. Para dar mais sede e matá-la com mais água gelada. Isso desejava Ricardo, aos dois. Mas em banheiras diferentes, por Ricardo não aguentar mais a presença do motorista ansioso.
Devia ter trazido meu livro, assim me sentiria menos ansioso e teria uma desculpa para impedir o semi diálogo com o motorista. Depois de minutos que se transformavam em horas na mente dos dois, chegaram no destino. Ricardo despediu-se e agradeceu sinceramente, pois, apesar de tudo, chegara na hora e estava saindo dali o que lhe provocava um alívio, como um retorno desesperado à superfície do mar.
Mercedes esperava. Com um sorrisinho tímido beijou Ricardo, que por sua vez não se sentia bem. Ingênua, percebeu e culpou-se, ela devia ser o problema. Simples seria se fosse. Pois assim, em seis frases resolveriam. Ricardo costumava falar o que lhe incomodava, mas hoje não. Como explicar quando a realidade em si é o fogo que alimenta seu desespero? Fora contaminado pelo clima ofegante terrível que pairava pela cidade. Onde estão os ingressos? Perguntou ele agitadamente rabugento.
Entrando na sala, surpreendeu-se: estava quase lotada. Seus pensamentos particularmente negativos foram fortificados: não vai ter lugar pra dois. Pelo menos assim ficaria longe de Mercedes, poupando-a de seu espírito perturbado. Subindo as escadas olhava ao redor, e sentia-se fora. O ar condicionado- uma das três maiores invenções da modernidade para Ricardo- não conseguia facilitar sua vida daquela vez. Assim como lá fora: era muita gente pra pouco ar. Avistou as duas últimas poltronas coladas vagas.
Ao lado dele, um homem. Parecia ser grande demais para aquele assento. Sozinho, do lado de Ricardo, no último lugar da fileira. Corpulento como um guarda medieval, que senta o dia todo em frente ao portão, suportando a armadura pesada e a mente vazia numa vilinha desconhecida. Com as mãos entre as pernas - que deveriam pesar um Ricardo- observava a tela com a cabeça pendurada, pálpebras caídas e os olhos puxando-as para cima. Ah, seus olhos. Refletiam o frenesi que Ricardo sentira desde que saiu de casa. Esse homem me apavora, confessou ele à namorada.
Quer trocar de lugar comigo? Disse Mercedes sem prestar atenção no vilão que aterrorizava Ricardo. Não vai adiantar nada, respondeu aflito sem esperança. Ele acaba comigo quando quiser, refletia com sua lógica irracional. Com todos nessa sala. Vocês não sabem o risco que correm aqui dentro. Os olhos do homem mostraram pra Ricardo tudo aquilo que ele não queria ver em si mesmo. Olhar louco vazio sem nome, que derrotado pelos caminhos da vida, esperava o filme começar.
O maior medo de Ricardo: a derrota. Um trio delas mal perdidas e qualquer homem quebra. O filme começou. Era estrangeiro, chinês ou sei lá, não importa. O importante é que Ricardo queria sair dali. A sala de cinema protegia-o do exterior, ou era o exterior que se salvava dele? A sala é a cabeça, as pessoas os neurônios, as pipocas comidas as sinapses malucas na mente de Ricardo. Ele precisava sair dali, sair de si mesmo. Mas como? Bem, era só andar para fora. Mas ele persistiu, orgulhoso, encarou os primeiros minutos de filme.
Com um olho no homem, e outro na tela, tentou viver ali. Sentado, preso. Ele tinha sido preso? Não! Era só sair dali, andar para fora e já estaria melhor. Você tem que sair daqui, levanta logo. Você sabe que não vai aguentar por muito tempo. Eu sou melhor que o motorista, eu posso, eu consigo sair voando daqui, refletia Ricardo. Mas e Mercedes? Meu Deus, ela não fazia ideia de nada daquilo. Então, num ato de heroísmo egoísta Ricardo pegou 5 reais e botou no colo da namorada. Aí, pelo ingresso.
Inspirou fundo, e, numa expiração longa, sussurrou tudo junto: Não estou me sentindo bem, quero muito sair daqui mas tá tudo bem.
Levantou e saiu andando.
A sensação de alivio veio quase imediatamente, ao respirar a brisa fresca. Mas junto dela uma vontade de fazer. Fazer o que? Alguma coisa. Alguma coisa boa. O máximo que sua mente imediatista pensou foi comer a barra de chocolate que tinha levado. Quem sabe tudo aquilo não passava de uma queda de glicose no sangue? Sentou no banco da praça e observou o mundo enquanto comia. Pensava em como Mercedes ficaria chateada com pela atitude abrupta e sem sentido. Mas não se arrependeu. A sobrevivência é egoísta. Tinha escapado. Mas com a conquista veio a responsabilidade de fazer.
Meia barra de chocolate depois, Ricardo estava cheio. Cheio de sentar. Seres humanos evoluíram de mamíferos corredores para primatas sentantes e ansiosos. Colocou-se em movimento, a barra de chocolate tinha te dado um pouco de energia, de fato. Agora tinha que jogar o resto no lixo? Parecia um crime, depois de tanta tragédia, desperdiçar a comida daquele jeito. Eis a resposta: o fazer era do bem. Começava a caçada para livra-se da barra de chocolate.
Faria pra quem? Ele mesmo? Eis o dilema. Fazer o mal para sentir-se bem, era pouco diferente de fazer o bem para sentir-se bem. Comumente apenas uma questão de circunstância. Como o seria-killer que dá carona pra uma possível vítima perdida na estrada e decide não matá-la. A mente maquiavélica de Ricardo enxergava apenas o fim. Passou por um homem delirante na rua, mas não quis presenteá-lo. O coitado não vai nem entender minha bondade, além de ser imprevisível e agressivo. Certamente Ricardo esperava uma espécie de reconhecimento. Por fazer o correto? Por não jogar fora uma barra de chocolate? Medíocre.
Como se uma mão o tocasse no ombro esquerdo, olhou pra trás e viu elas. Mãe e filha. Foi aproximando-se. Mãe e filhaS.
Sentada num caixote de feira, em frente ao Hortifruti, a mãe estava grávida. Taciturno Ricardo chegou estendendo a mão com o doce. Dê pra ela, apontou com a cabeça pra criança. Obrigada, o senhor poderia comprar um suquinho pra minha filha? Meu Deus, como poderia negar? Elas eram perfeitas pra ele.