Todo acontecimento ou fato histórico traz sabedoria e evolução para a sociedade, pelo menos é o que as guerras e as grandes revoluções, aparentemente, nos deixaram – além do sofrimento. Assemelha‐se aos episódios e fases da vida. Nascemos, e inicia‐se em nossa ampulheta um escoamento impressionante. Quando percebi, o tempo já havia extorquido metade da minha existência.
Sou Julyana Barocci, uma mulher de 35 anos, bonita, independente, mas em crise existencial e, a partir deste milésimo de segundo, solteira. Gostaria de virar a ampulheta para que as areias da minha vida provocassem um efeito "Benjamin Button".
Como me atrevo a dizer que o tempo é bom ou compará‐lo à bela fluidez de uma cachoeira cristalina? O tempo é impiedoso. Invade, maltrata e expõe nossa aparência e fraqueza, desfigurando toda a nossa jovial formosura.
Meninas de vinte anos são frescas, neuróticas, pegajosas e inseguras. Alguns homens preferem as mais novas, talvez pela disposição e pela falta de compromisso. Uma mulher de trinta transpira muito comprometimento, o que assusta. Já tive vinte anos e fugia do compromisso. Hoje tenho 35, e quero que me levem a sério. Isto é possível?
Penso que tempo é uma palavra sobrecarregada, tal como uma bomba, que pode explodir a qualquer momento. A minha explodiu hoje!
Eu não sou uma amante romântica, muito menos uma namorada passional.
Apesar de pouco tempo de relacionamento, resolvi surpreender meu namorado, o Paulo César, vulgo PC. Namoramos por efêmeros dois meses, bem interpolados em razão do trabalho. Um namoro sem graça, mas com sexo bom. Ele é bonito, porte médio, moreno e cabelos baixos. Está sempre com a impressão de que precisa se barbear, e seu belo rosto acompanha uma curiosa pinta do lado esquerdo do seu nariz convexo. Um sinal que, dependendo do ângulo, parece um homem de duas caras.
Decido comemorar o aniversário do PC. Eu o conheci num boteco; desde então, iniciamos um namoro relâmpa‐ go. Resolvo seguir as dicas de algumas páginas de revistas, aqueles periódicos femininos cheios de perfumaria, tipo: "Como deixar seu parceiro apaixonado", "A arte da conquista: os dez mandamentos". Dessa forma, sigo o compasso das milhares de mulheres que lutam por um objetivo: manutenção do macho alfa ao lado.
QUINTA‐FEIRA! Dia de semana mais tranquilo e folga das aulas na academia. Sim, ele é personal trainer. Imagina só, trabalha ativamente com o venerado grupo GP, glúteo e pernas o dia todo. Bem tentador! Preparo todas aquelas presepadas que mulheres customizam para a comemoração de alguma data importante com o querido. Coloco uma lingerie comestível para impressionar, coisa à qual nunca havia me submetido. Lingerie estranha, mas o gosto, dizem que é bom.
Deus do céu!
Chego ao prédio do PC, por volta das oito horas. Um prédio com a frente arredondada e varanda na fachada, localizado nos Jardins, em São Paulo, a algumas quadras da Paulista, que seu pai, militar aposentado, deixou‐lhe de herança.
Bato na porta do apartamento 007, sem James Bond! Estou vestida de coelhinha da Playboy, com um Malbec a tiracolo. Salto agulha e luvas cintilantes. Detalhe para o pompom garboso no meu bumbum. Com dificuldade, mantenho as escápulas recolhidas. Estou vestida para sensualizar.
Toco a campainha e nada. Outro din‐don. Em seguida, uma leve batidinha. Aquele antigo "Ô de casa!" não ia rolar.
Desisto.
Percebo que a porta não está trancada. Empurro‐a bem devagarinho. Ouço um ranger tênue das dobradiças carentes de óleo. Meus olhos castanhos amendoados brilham de tanta expectativa. É a primeira vez que tento fazer algo surpreendente para alguém.
– Ele está me esperando – sussurro e bato palminhas como uma foca feliz.
Posiciono o vinho e os copos na bancada da cozinha americana toda decorada em preto e amarelo. Jogo algumas pétalas brancas pelo chão. Não quis as vermelhas, para fingir não ser tão clichê.
Está na hora de dar um susto e sobressaltá‐lo. Mas não quero parecer o fantasminha camarada. Tenho que flagrá‐ ‐lo de maneira sensual. Percorro o corredor estreito e com pouca iluminação saltitando, pé ante pé, silenciosamente. O chão é de tábua corrida, por isso tomo cuidado para evitar o estalar da madeira. Lá está o último quarto com a porta entreaberta. Empurro‐a levemente.
Uma cena a contragosto!
Não dá para acreditar.
Meu corpo petrifica, meus olhos escurecem de fúria, quando vejo meu namorado com uma minúscula criatura
na cama, numa espécie de supino invertido com agachamento sumô.
Deus do céu!!
Minha respiração para. Meu corpo está gelado e pálido. Fico como uma estátua sem expressão e em dúvida se deveria me anunciar. Qualquer mulher normal demonstraria ira e abominação diante de uma traição tão vil e, no mínimo, impediria que os amantes alcançassem qualquer êxtase. Mas logo me dei conta de que não conseguiria suportar o semblante daquela franguinha, os pedidos de absolvição (se houvesse) ou qualquer discurso retórico de arrependimento.
Meus joelhos fraquejam. Meu coração, apesar de pulsar descontroladamente, parece que não bombeia o sangue pelas minhas veias. Começo a sentir um pouco de náusea. Sinto‐me incapaz de tomar qualquer atitude mais viril, ti‐ rando a vontade de pular do prédio. O anseio é de quebrar tudo no apartamento, mas não consigo. A apatia é mais forte do que eu!
Como posso ser tão inútil! Argh!
Por que os homens chifram as mulheres com tanta facilidade? Por que merecemos esse par de galhos com tan‐ ta frequência? Como posso ser tão estúpida. Giro meu corpo 180 graus e dou as costas para tudo. Saio abatida do apartamento.
Logo, ouço alguns chamados dele, enquanto estava atravessando a porta de saída do apartamento. Corro e aperto, desesperadamente, o elevador. Não quero ter que olhar para a cara desse cretino! Sem demora, as portas se abrem para mim, para longe de toda a humilhação. Solto um suspiro de
alívio! Entro no elevador, e ele surge na minha frente, enquanto as portas se fechavam vagarosas. Consigo notar que está um pouco ofegante; apoia‐se nos alizares expondo os músculos suados. Havia enrolado uma toalha para tampar a pélvis e tinha um olhar desconsolado, porém, não pelo fla‐ grante, talvez por eu ter impedido o seu gozo gutural.
Sinto‐me engasgada com a própria saliva. Como posso ser tão imbecil? Qualquer pessoa normal gritaria, xingaria... todavia, me sinto tão lânguida que não reajo.
– O elevador está subindo! Posso te ajudar? – indaga‐me um homem alto, logo atrás de mim, de cabelos escuros e olhos cinza‐azulados expressivos.
Levo um susto com a voz firme de um terceiro, atraente, com olhos da cor das patas azuis do ganso patola. Muito bem apessoado por sinal, o que me faz ruborizar. Ele está no canto direito. E, eu na frente, com aquele pompom brega e pornográfico fixo nas minhas nádegas.
Sinto o terceiro percorrendo todo meu corpo com os olhos. Tento esconder meu rosto. Que vexame!
Esqueci meu casaco no apartamento do Bond fajuto! Gostaria de tampar todo o meu corpo com as orelhinhas. Pareço uma coisa indecifrável!
– Oh, estou bem!
Deixo a chave do meu carro cair de tanta aflição. Agacho‐me para pegar o objeto e, com um movimento simultâneo e sincronizado, o terceiro airoso abaixa‐se comigo.
– Animadora de festa infantil, sabe, né?! – Eu balanço a cabeça e cerro os lábios para tentar sorrir e esboçar um ânimo na minha feição anêmica, quase sem sangue.
Criancinhas é que não iam se animar com esse modelito de coelha perdida.
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Uma janela para o céu (Degustação)
RomanceUm romance leve e divertido liberado no Kindle Unlimited e Amazon (físico e ebook) Publicado pela Editora Novo Século Sinopse: Julyana Barocci é o perfeito retrato da mulher contemporânea: ela é determinada, bem-sucedida e tem o emprego dos sonhos...