Amanhã acordarei tendo mais certeza de quem eu sou ou será apenas uma manhã confusa?
Não sei muito bem descrever os sentimentos que permeiam meu interior. Sinto meu coração acelerado e uma energia forte que transita nos mais esquecíveis capilares, na gênese da minha essência, nas transmissões elétricas dos meus neurônios e nos meus sonhos roteirizados pela ironia. Porque é tão difícil para mim aceitar que eu estou sofrendo por amor?
Porque o amor me dilacera como uma navalha e me obriga a sangrar escondido? Porque preciso emanar um sorriso quando as lágrimas pairam nos meus olhos e eu as enxugo, fingindo que é uma alergia? Coloco a culpa na poeira, no casaco, no condicionador. Mas é somente o coração que precisa de um remendo, um abraço e ser zelado por alguém.
Antes de te mostrar o lado mais suburbano da minha alma, caro leitor, quero dizer que essa obra é fruto de noite iluminada de inverno. Você consegue se lembrar de algum dia que estava triste, mas determinado a descobrir a felicidade? Como se o choro fosse uma saudade da tristeza, o medo de deixá-la para trás porque, afinal, ela esteve contigo muito tempo? Não sei se sou somente e que penso nessas coisas, talvez eu seja maluco, insano, ou apenas um sonhador despretensioso. Prazer, Felipe. Como você se chama?
Eu nasci nas casa das flores, um lugar mágico que batizei de lar. Eu precisava ter um refúgio para escapar das goteiras que desciam pelas telhas e caíam sobre a minha cama. A casa das flores era o meu palácio mental, recheado de alegrias e compensações pelas desavenças que a minha vida proporcionava. Era ali que a água da privada se tornava pura e lavava a pele do meu rosto, os empurrões eram sopros de uma força divina que me arrastava pelas campinas e as humilhações eram ecoadas para longe de todo aquele reino que eu mesmo construíra para mim.
Eu estive sempre em Arcândia, o reino onde existia a minha casa das flores. O lugar onde as ervas floridas subiam pelas pilastras da varanda e os candelabros eram ninhos de passarinhos, exalando vida e transparência. Nunca havia contado para ninguém sobre esse meu santuário, o lugar onde eu costurava os meus machucados com a linha mais macia e a agulha mais delicada, onde as poções curavam sem arder, onde o álcool fazia esquecer sem me deixar embriagado. Queria poder te levar para esse lugar, certamente passaríamos uma tarde agradável juntos.
Longe desse paraíso e do lugar que eu podia chamar de lar estava a realidade. Tudo isso ainda é real para mim, mas não é inteligível. Está apenas no mundo das ideias e, por isso, quando a vida me obriga a abrir os olhos, tudo deixa de existir e continuo sendo o mesmo garoto desprezível, ignorado nas relações, esquecido pelos amigos, disponível para todos, mas carente de um abraço que seja verdadeiramente legítimo. As pessoas chegam e vão, arrancam um pedaço e eu me costuro com a linha macia da casa das flores, mas infelizmente, cada vez o buraco se torna maior e fica difícil cobri-lo por si só. É preciso arrancar a pele das partes sãs e, então, elas também ficam machucadas. No fim, tudo fica machucado.
O pulmão sofre pelo coração, o cérebro pelo nariz e, depois de um tempo, a dor vai ficando confusa. Não consigo me lembrar da dor primeira, mas também não posso lembrar da última. Todas se misturam e até mesmo aquelas que estão curadas de repente começam a doer e estouram os pontos que coloquei com tanto cuidado. Ainda existe chance para mim?
Deve existir, eu não fui o primeiro homem que teve um passado difícil.
Ainda é difícil se referir a mim mesmo como homem, pois, mesmo tendo 20 anos, ainda sou o mesmo menino que andava sozinho pelos corredores do colégio à procura de um sorriso, alguém para conversar, contar planos e criar algum tipo de conexão. Procurei sorrisos por tanto tempo que aprendi a sorrir por mim mesmo e, infelizmente, a minha bondade foi confundida com fraqueza. Eu era só um menino, mas carregava tanta coisa dentro da minha mochila: o desejo de salvar pessoas, de explorar um mundo inabitável, de reinar em um reino distante, de amar incondicionalmente e de ser amado. Também carregava minhas frustações, medos, inseguranças e o desejo de recomeçar embora ainda nem tivesse começado a viver de verdade. Isso é o que o bullying faz com você na infância. Todo o amor do mundo na vida adulta parece pouco porque, infelizmente, aquela criança ainda não foi abraçada o suficiente e sofre sem entender o motivo. Ela reza para que Deus a troque de vida porque, com o tempo, o desprezo dos outros a ensina a se desprezar. Então a linha macia da casa das flores fica áspera e cada vez dói mais remendar. Chega uma hora que a criança para de cuidar das feridas e se assiste a sangrar, porque esse é o procedimento. Todos estão assistindo, porque deveria agir de outra forma?
O pior de tudo isso é que passa, mas não cura. Quando me vejo dentro de um quarto, nas braços de alguém que desejo, aquela criança grita em silêncio. E de repente não quero mais sexo, mas um carinho, um abraço apertado e uma palavra de confiança. A outra pessoa, porém, não entende. Como o desejo se transmuta em aflição? Se nem mesmo eu entendo, como explicar isso para alguém que só quer loucamente gozar?
E a minha história, na realidade essa história, começa em uma noite de verão. Eu estava no pior dia da minha vida, me sentia sozinho e vulnerável em uma cidade estranha, onde meu nome não gerava qualquer espécie de nostalgia e as minhas experiências na roça eram praticamente invalidadas no mundo da cidade grande.
Eu tinha a praia diante dos meus olhos, mas uma parte de mim ainda estava presa às lavouras de café onde a minha infância foi construída. As montanhas de Vitória eram semelhantes àquelas que eu moldava com o barro do rio e as estradas na encosta eram muito próximas às que eu projetava com um galho de abacate na terra antes mesmo de eu sonhar em me tornar um urbanista. Eu estava na capital para estudar Arquitetura e Urbanismo, o curso possível que sempre sonhei. Não me pergunte qual é a minha profissão dos sonhos, pois eu não saberia responder. Certamente envolveria livros, viagens exóticas e trabalhos humanitários.
De vez em quando vejo me vejo dançando por um país esquecido pela geopolítica, como a Papua Nova Guiné ou Butão, criando uma história incapaz de ser compreendida pelos normais. Afinal, o que uma pessoa normal faria em Butão? Eu não sei dizer, mas algo dentro de mim me faz pensar sobre um lugar que eu deveria estar. Talvez seja uma busca insana por um espaço capaz de ser chamado de lar, um abismo na alma que gera confusão ou o próprio Deus questionando minhas certezas e propósitos. Eu não sei o que me espera, por isso, enquanto rezo por esclarecimentos, continuo fazendo projetos em uma faculdade pública no coração do Espírito Santo, na Cidade Sol, o lugar cortado pela riqueza de um núcleo econômico promissor ameaçado pela violência e desigualdade. A cidade dividida, onde o azul dos edifícios espelhados refletem o marrom das aglomerações nos morros.
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O destino dos Imbecis
RomancePerdido dentro de si mesmo, bebendo álcool de todas as cores e cansado de viver uma vida sem graça, Felipe, por fim, colapsa. É é no colapso que ele descobre um dom: a capacidade de despistar o Tempo, viajando entre eras e roubando legados construíd...