Próxima estação

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Apesar de ser uma manhã fria de outono, acordei com calor. Aquele calor insuportável que só um pesadelo traz e acorda. Ainda deitado eu olhava as folhas caindo pela janela, uma chuva seca e quebradiça. Folhas de outono me traziam uma nostalgia tão intensa que só Moonlight Sonata também trazia. Lembrei de quando eu era criança e a melhor sensação do mundo era pisar nas folhas secas enquanto caminhava, pegar várias delas e colocar dentro de um guarda-chuva, sair correndo com o guarda-chuva atrás de mim e num instante o levantar, fazendo cair todas as folhas em cima de mim como uma chuva seca. Essa chuva que antes me trazia uma felicidade simples e reconfortante, hoje me entristecia. Senti falta de ser criança.

Coloquei essa nostalgia de volta ao lugar dela (no fundo da minha mente) e me arrumei para mais um dia de trabalho. Enfrentei o vento gelado que só Oslo possuía no outono e fui pra estação de trem. Olhei no relógio: faltavam 5 minutos para o trem passar, apressei o passo. Sim, eu sabia que ele viria na hora certa, nada atrasava naquela cidade, tudo funcionava. Até demais. Trem vazio, escolhi um lugar ao lado da janela e encostei a cabeça. Dørene lukkes. Casinhas vermelhas, amarelas e azuis passavam rapidamente por mim. Uma criança correndo. Um cervo. Árvores com a cor do outono. Céu azul. Neste stasjon: Holstein. Uma criança entrou de bicicleta no trem, sozinha. Me senti culpado por estar triste num país tão perfeito como aquele, onde tudo funcionava e a segurança era incrivelmente alta. Perfeito demais. Mas senti saudades da minha Paris, das ruas caóticas, do cheiro de pão enquanto andava na rua, das livrarias escondidas. Da chuva fininha e do ar artístico que ela trazia pra cidade. Mas tive que sair, não tinha emprego, não tinha jeito. Oslo tinha me oferecido uma carreira e era disso que eu precisava: dinheiro.

Mas será mesmo? Eu vinha questionando isso há tempos, mas era tarde demais. Eu não podia abandonar tudo e voltar pra casa. Neste stasjon: Forskningsparken. Mas já? Nem vi o tempo passar. Estudantes da Universidade entraram conversando entusiasmados, os observei um pouco e voltei pros meus pensamentos. O trem passava rapidamente por mais árvores rosas, amarelas... As cores se misturavam como numa pintura, a velocidade do trem confundia as imagens. Já não podia distinguir as árvores das casas, o céu do trilho do trem. Não ouvia mais as estações, ninguém mais entrou, ninguém mais saiu. Não havia vozes cantadas e o silêncio era ensurdecedor. Já não via mais as cores, tudo havia se misturado e agora era só o branco. Tudo o que eu via pela janela era branco. Estava o trem passando por uma neblina estranhamente densa ou estaria eu ficando louco? Com o coração acelerado percebi que eu era a única pessoa no vagão.

Comecei a caminhar pelo trem em movimento me segurando nas barras, minhas mãos tremiam. O branco não acabava nunca e o trem parecia infinito. Não havia ninguém. Até que o trem parou bruscamente e enquanto tentava me segurar bati a testa. Ao mesmo tempo em que contorcia meu rosto de dor e pressionava minha mão contra minha testa, escutei: Prochaine station: 1950. Minha batida deve ter sido pior do que imaginava, pensei. Não era possível! Além de terem mudado o idioma do trem de norueguês para francês, eu nunca tinha ouvido falar de uma estação chamada 1950. Estava eu tão alheio ao mundo que não estava sabendo de uma estação nova em Oslo? Só havia uma palavra para isso: estranho. As portas se abriram e saí do trem, ainda apertando minha testa dolorida. Eu estava numa estação completamente diferente de qualquer uma que eu conhecia em Oslo. Uma moça de sapatos pretos, saia até o joelho e luvas delicadas passou apressada por mim, senti um cheiro inconfundível do perfume Channel. Com certeza uma turista francesa, pensei. Caminhei pela estação procurando a saída e avistei a placa: Sortie. Isso conseguiu me deixar ainda mais confuso. Será que Oslo havia construído uma estação francesa no meio da cidade? Estranho.

Resolvi caminhar por perto da estação para ver essa parte da cidade ainda desconhecida por mim e, ao subir o último degrau da estação para a rua olhei para baixo. O que vi foi mais assustador que a neblina densa do trem, mais assustador que um grito agudo no meio de um quarto vazio: meus pés não eram meus pés. Eram pés de criança, pequenos e com chinelos. Suando frio usei-os para correr o mais rápido que pude até a vitrine mais próxima que achei e, com um medo que vinha do lugar mais profundo da minha alma, olhei para meu reflexo: olhava diretamente para mim um menino. Não mais um homem de 60 anos que eu estava costumado a ver no espelho, mas um menino de aproximadamente 9 anos, com cabelos pretos, usava uma blusa de lã de manga comprida e um shorts acima do joelho. E no ímpeto da minha alma eu sabia, apesar de todo tipo de loucura com que isso iria soar eu sabia, aquele menino era eu. Eu deveria ter ficado com medo, em pânico, enlouquecido, mas não. Me senti ansioso, vivo, entusiasmado.

Atrás da minha imagem vi uma banca de jornal e, já sabendo o que iria encontrar, olhei a data em um dos jornais: 6 de outubro de 1950. Era isso, não havia outra explicação, eu havia voltado no tempo. Eu estava na minha infância, em Paris, com 9 anos de idade. Eu poderia mudar toda a minha história! Todos meus arrependimentos e erros poderiam ser mudados, esquecidos, apagados! Eu iria começar praticamente do zero, iria fazer as escolhas certas dessa vez. E eu sabia por onde começar: pelo primeiro arrependimento da minha vida. Numa placa azul no canto da parede vi em qual rua estava e, para minha sorte, não estava longe de onde precisava ir. Andei rapidamente três quarteirões e avistei na esquina o armazém que eu procurava. Entrei de fininho e fiquei observando. O funcionário, sufocado de trabalho, atendia três clientes ao mesmo tempo e atrás dele vi duas garrafas de vinho na beirada da prateleira. As garrafas estavam tão na ponta que qualquer toque provavelmente as derrubaria no chão. E não era por acaso, elas haviam sido colocadas naquela posição de propósito: eu as havia colocado lá.

Eu me lembro muito bem: como um menino travesso que era, naquele dia eu havia colocado as garrafas na ponta da prateleira para o funcionário as derrubar e seu patrão gritar com ele. O que eu não esperava é que ele seria demitido e seria terrivelmente difícil para ele encontrar outro emprego, já que o vinho havia espirrado sobre o vestido de uma mulher irritante que fez um escândalo do acontecido. Na época quando vi isso tudo acontecer me arrependi muito, mas não me entreguei por medo e saí de cabeça baixa. Dessa vez seria diferente. Engatinhando silenciosamente para trás do balcão, agarrei as duas garrafas com o maior cuidado possível para não as derrubar e saí rapidamente do armazém. Olhei para trás e vi o funcionário trabalhando, pensei em todo o problema que tinha conseguido poupar para ele e me senti aliviado. Eu tinha mudado algo no percurso do tempo, apesar de pequeno, algo para melhor. E, com uma garrafa em cada braço, saí caminhando pela rua orgulhoso do que tinha feito. Essa era apenas a primeira situação de muitas que eu mudaria.

Próxima estação (conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora