O escaravelho de ouro

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Oh!  oh!  esse sujeito está dançando como um louco!
Ele foi picado pela Tarântula.
All  in the Wrong


Muitos anos atrás, travei amizade com  um  certo sr. William  Legrand.  Era ele de antiga família huguenote, e fora rico outrora; mas uma série de infortúnios haviam-no reduzido à penúria. Para evitar a consequente mortificação com suas calamidades, partiu de New Orleans, a cidade de  seus antepassados, e se estabeleceu na ilha de Sullivan, perto de Charleston, na Carolina do Sul.
Essa ilha é das mais singulares. Consiste de pouca  coisa  além  de  areia do mar e tem cerca de cinco quilômetros de extensão. Sua largura em nenhum ponto excede o meio quilômetro. Fica separada do continente por uma laguna quase imperceptível, que corre morosa através do pantanal de caniços e lodo, refúgio favorito das aves aquáticas. A vegetação, como se pode supor, é escassa, ou, quando muito, anã. Não se vê árvore de qualquer magnitude por ali. Perto da extremidade oeste, onde se ergue Fort Moultrie, além de algumas miseráveis construções de madeira, ocupadas, durante o verão, pelos fugitivos da poeira e da febre de Charleston, pode-se encontrar, na verdade, a eriçada palmeira salba; mas a ilha toda, com exceção dessa extremidade oeste, e de uma faixa de praia dura e branca na costa, é coberta por uma densa vegetação do cheiroso mirto, tão apreciado pelos horticultores da Inglaterra. O arbusto aqui muitas vezes atinge uma altura entre cinco e seis metros e forma um matagal quase impenetrável, impregnando o ar com sua fragrância.
Nos recessos mais recônditos desse matagal, não muito longe da extremidade leste, ou a mais remota, da ilha, Legrand erguera para si uma pequena cabana, que ocupava na ocasião em que, por mero acidente, vim a conhecê-lo. Isso logo amadureceu numa amizade — pois muito havia no recluso para suscitar o interesse e a estima. Achei-o bem-educado, dotado  de incomuns faculdades espirituais, mas contaminado pela misantropia, e sujeito a perversas disposições de entusiasmo e melancolia alternadamente. Tinha consigo muitos livros, mas raramente os empregava. Seus principais passatempos eram a caça e a pesca, ou as caminhadas pela  praia  e através da murta, buscando conchas ou espécimes entomológicos; — sua coleção destes era digna da inveja de um Swammerdamm.  Nessas excursões, ia em geral acompanhado por um preto velho, de nome  Júpiter, que fora alforriado antes dos reveses da família, mas que não podia ser persuadido, fosse por meio de ameaças, fosse de promessas, a abandonar o que considerava seu direito de seguir cada passo de seu jovem “Massa Will”. Não é improvável que os parentes de Legrand, crendo-o dono de um intelecto razoavelmente inquieto, houvessem dado um jeito de instilar essa obstinação em Júpiter, com vistas a supervisionar e tutelar o viandante.
Os invernos na latitude da ilha de Sullivan dificilmente são severos e, no fim do ano, é um acontecimento raro de fato que um fogo seja considerado necessário. Perto de meados de outubro de  18—,  ocorreu,  entretanto, um dia de notável friagem. Pouco antes do pôr do sol, atravessei a custo como sempre a vegetação perene até a cabana de meu amigo, a quem não fazia uma visita havia várias semanas — minha residência ficando, nessa época, em Charleston, a uma distância de quinze quilômetros da ilha, quando as facilidades de ir e vir eram muito aquém do que são hoje. Ao chegar  à cabana, bati, como de costume e, sem obter resposta, procurei pela chave que sabia estar escondida, destranquei a porta e entrei. Um belo fogo ardia na lareira. Era uma novidade, e de modo algum desagradável. Tirei meu sobretudo, acomodei-me numa poltrona junto às achas crepitantes e  aguardei pacientemente a chegada de meus anfitriões.
Pouco após o escurecer eles chegaram e saudaram-me com  a  mais cordial das boas-vindas. Júpiter, sorrindo de orelha a orelha, atarefou-se em preparar algumas aves aquáticas para o jantar. Legrand achava-se num de seus acessos — que outro nome dar àquilo? — de entusiasmo. Havia encontrado um bivalve desconhecido, formando um novo gênero, e, mais do que isso, havia caçado e capturado, com ajuda de Júpiter,  um  scarabæus que, assim acreditava, era totalmente novo, mas a respeito  do  qual desejava ter minha opinião no dia seguinte.
“E por que não esta noite mesmo?”, perguntei, esfregando as mãos acima do fogo e desejando que a inteira raça dos scarabæi fosse para o inferno.
“Ah, se ao menos eu soubesse que estava aqui!”, disse Legrand, “mas já faz tanto tempo desde a última vez em que nos vimos; e como poderia eu adivinhar que justamente nesta noite me faria uma visita? Quando voltava para casa, cruzei com o tenente G——, do forte, e, muito estupidamente, emprestei-lhe o escaravelho; de modo que vai ser impossível que o veja até amanhã. Fique aqui hoje à noite, que  mandarei  Jup buscá-lo ao raiar do dia. É a coisa mais adorável da criação!”
“O quê? — o raiar do dia?”
“Que bobagem! não! — o escaravelho. É de uma brilhante cor dourada — mais ou menos do tamanho de uma noz grande —  com  duas  manchas negras cor de azeviche numa ponta do dorso, e outra, um pouco mais alongada, na outra. As antennæ são—”
“Num tem lata ni'uma nelas não, Massa Will, já cansei de falar pro senhor”, interrompeu-o Júpiter; “o escar'vel'o é de ouro puro ele tudinho, por dentro e por fora, menos as asas — nunca segurei escar'vel'o  mais pesado na minha vida.”
“Bem, suponho que sim, Jup”, respondeu Legrand, um pouco mais gravemente, assim me pareceu, do que a situação exigia, “há alguma razão para deixar as aves queimar? A cor” — aqui ele virou para mim — “de fato quase basta para justificar a ideia de Júpiter. Nunca se viu  um  lustre metálico mais brilhante do que esse emitido por sua casca — mas  isso você só poderá julgar pela manhã. Entrementes, posso lhe dar uma ideia da forma.” Dizendo isso, sentou-se a uma mesinha, sobre a qual havia pena e tinta, mas nada de papel. Procurou em uma gaveta, mas não encontrou nenhum.
“Não importa”, disse, enfim, “isso servirá”; e sacou do bolso do colete o que tomei por um pedaço muito sujo de almaço, executando sobre ele um grosseiro esboço com a pena. Enquanto o fazia, conservei-me sentado junto ao fogo, pois continuava com frio. Quando o desenho  foi  completado, ele mo estendeu sem se levantar. No momento em que eu o apanhava, um audível rosnado se fez ouvir, sucedido por algo raspando a porta. Júpiter abriu-a e um enorme terra-nova, pertencente a Legrand, entrou rapidamente, saltou sobre meus ombros e cumulou-me de carinhos; pois eu lhe dedicara grande atenção em visitas anteriores. Quando cessou de fazer festas, olhei para o papel e, para falar a  verdade,  peguei-me  deveras perplexo com o que meu amigo havia desenhado.
“Bom!”, eu disse, após contemplá-lo por alguns minutos, “eis de fato um estranho scarabæus, devo confessar: para mim é novidade: nunca vi nada parecido antes — a menos que fosse um crânio, ou uma  caveira  — com que se parece mais do que qualquer outra coisa que eu já tenha observado.”
“Uma caveira!”, repetiu Legrand — “Oh — é — bem, guarda algo dessa aparência quando posto no papel, sem dúvida. As duas manchas negras superiores parecem ser olhos, hein? e a mais extensa na parte de baixo é como uma boca — e o formato do todo é oval.”
“Talvez assim seja”, disse eu; “mas, Legrand, receio que lhe  faltem pendores artísticos. Devo esperar até ver o próprio besouro,  se  quero  formar alguma ideia de sua aparência peculiar.”
“Bem, não sei”, disse ele, um pouco ofendido, “desenho razoavelmente — desenharia, pelo menos — tivesse tido eu bons professores, e posso dizer com orgulho que não sou nenhum imbecil.”
“Mas, meu caro colega, então está de brincadeira”, disse eu, “isso aqui é um crânio bastante passável — na verdade, devo dizer que é um crânio deveras excelente, segundo as noções vulgares sobre tais espécimes da fisiologia — e seu scarabæus deve ser o scarabæus mais estranho do mundo, se se parece com isso. Ora, podemos conceber um bocado de superstição muito emocionante com base nessa sugestão. Presumo que chamará o inseto de scarabæus caput hominis, ou algo dessa natureza — existem muitas designações semelhantes na História Natural. Mas  onde estão as antennæ que mencionou?”
“ A s antennæ!”, disse Legrand, que parecia cada vez mais inexplicavelmente irritado com o assunto; “estou certo de que deve  ter  visto as antennæ. Desenhei-as tão distintamente quanto  aparecem  no  inseto original, e presumo que seja suficiente.”
“Bem, bem”, eu disse, “talvez  o tenha feito — ainda assim não as  vejo”;   e estendi-lhe o papel de volta sem mais qualquer comentário adicional, não desejando perturbar seu temperamento; mas eu estava muito surpreso com o rumo que os acontecimentos haviam tomado; seu mau humor me desconcertava — e, quanto ao desenho do besouro, não havia positivamente quaisquer antennæ visíveis, e no todo guardava de fato uma semelhança muito próxima com a figura ordinária de uma caveira.
Ele recebeu o papel com grande enfado e já estava prestes a amassá-lo, aparentemente para atirá-lo ao fogo, quando um relance casual no desenho pareceu de repente prender sua atenção. Num instante, seu rosto ficou violentamente vermelho — no seguinte, excessivamente pálido. Por alguns minutos, continuou sentado examinando o esboço minuciosamente. Finalmente se levantou, pegou uma vela na mesa e foi sentar sobre uma arca de marujo no canto oposto da sala. Aí mais uma vez procedeu a um meticuloso exame do papel, virando-o em todos os  sentidos.  Entretanto nada disse e sua conduta causou-me imensa perplexidade; contudo, julguei prudente não exacerbar o crescente amuo de seu temperamento com qualquer comentário. Em seguida, tirou do bolso do casaco uma carteira, enfiou o papel cuidadosamente ali e guardou ambos em uma escrivaninha, que trancou. Ele agora se mostrava cada vez mais composto em seus modos; mas seu ar original de entusiasmo havia  desaparecido  por completo. Contudo, parecia menos taciturno do que abstraído. Com  o avançar da noite mostrou-se cada vez mais absorto em  devaneios,  dos quais nenhum comentário espirituoso de minha parte conseguia demovê-lo. Fora minha intenção passar a noite na cabana, como frequentemente fizera antes, mas, vendo meu anfitrião naquele humor, julguei  apropriado  me retirar. Ele não insistiu para que eu ficasse, mas, quando eu partia, apertou minha mão com cordialidade ainda maior do que a usual.
Foi cerca de um mês depois disso (e ao longo desse intervalo não tive notícia alguma de Legrand) que recebi uma visita, em Charleston, de seu homem, Júpiter. Eu nunca vira o bom preto velho parecendo  tão desconsolado, e temi que alguma grave calamidade houvesse se abatido sobre meu amigo.
“Bem, Jup”, disse eu, “qual o problema agora? — como anda seu senhor?” “Ora, pra falar a verdade, massa, ele num anda  tão bem  como devia.” “Não anda bem! Fico realmente triste em saber disso. Do que se queixa
ele?”
“Diacho! aí é que tá! — meu senhor  nunca se queixa de nada  — mas  ele tá muito doente.”
“Muito doente, Júpiter! — por que não disse logo de uma vez? Ele está acamado?”
“Não, isso não! — ele num para sossegado — aí é  que  o sapato me  aperta — tô com a cabeça inchada por causa do pobre Massa Will.”
“Júpiter, eu gostaria de entender do que você está falando. Disse que seu senhor está doente. Ele não lhe contou que mal o aflige?”
“Ora, massa, num vale a pena se apoquentar por causa  disso — Massa  Will diz que num tem problema ni'um com ele não — mas então, o que faz  ele ficar andando de um lado pro outro, olhando onde pisa, com a cabeça baixa e os ombros caídos, branco como um ganso?  E também  segurando  um sifão o tempo todo —”
“Um o quê, Júpiter?”
“Um sifão com números na tabuleta — os  números  mais esquisitos que  eu já vi na vida. Tô começando a ficar com medo, falo pro senhor. Eu tenho que ficar de olho nele o tempo todo. Outro dia ele me escapou antes do sol aparecer e sumiu o bendito dia inteiro. Eu tava com uma bela vara pronta p-pra dar um corretivo nele quando voltasse — mas  sou tão molengo  que num tive a coragem, no fim — ele parecia todo mazelento.”
“Hein? — como? — ah, sei ! — no geral, acho que foi a melhor coisa, não ter sido severo demais com o pobre coitado — nada de chibatadas, Júpiter
— pode muito bem ser que ele não aguente — mas você não faz a menor ideia do que causou essa enfermidade, ou, antes, essa mudança de comportamento? Ele não sofreu nenhum aborrecimento desde nosso último encontro?”
“Não, massa, num teve aborrecimento ni'um depois disso — é  o antes que me preocupa — foi bem no dia que o senhor teve em casa.”
“Como? o que você quer dizer?”
“Ai, massa, tô falando do escar'vel'o — pronto, taí.” “Do quê?”
“Do escar'vel'o — tenho certeza absoluta que Massa Will  foi  picado nalgum lugar da cabeça por aquele escar'vel'o de ouro.”
“E o que o levou a supor tal coisa, Júpiter?”
“Pinças pra isso ele tem, massa, e também tem boca. Nunca vi um escar'vel'o assim — ele chuta e morde tudo que chega perto. Massa Will primeiro catou ele, mas teve que largar ele logo, falo pro senhor — daí foi nessa hora que ele deve ter tomado a picada. Eu mesmo num  gostei  nem um pouquinho do jeito daquela boca, não senhor, então eu é que não ia pôr meu dedo naquele escar'vel'o, mas daí eu peguei ele com um  pedaço  de papel que eu achei. Embrulhei ele no papel e enfiei um pedaço na boca dele
— foi assim que eu fiz.”
“E você acha, então, que seu senhor realmente foi picado pelo escaravelho, e que a picada o deixou enfermo?”
“Eu num acho coisa nenhuma — eu sei. Por que ele fica sonhando com  ouro o tempo todo, se num foi porque levou uma picada do escar'vel'o de ouro? Eu já tinha ouvido falar que escar'vel'o de ouro fazia isso.”
“Mas como sabe você que ele sonha com ouro?”
“Como eu sei? ah, porque ele fala dormindo — é por isso que eu sei.”
“Bom, Jup, talvez tenha razão; mas a que feliz  circunstância devo atribuir a honra de sua visita hoje?”
“Como assim, massa?”
“Você traz algum recado do senhor Legrand?”
“Recado ni'um, massa, mas trago aqui esse papelzinho”; e assim Júpiter estendeu-me um bilhete, que dizia o seguinte:

Meu caro ——
Por que não o vejo há tanto tempo? Espero que não tenha sido tolo a ponto  de se ofender com alguma pequena brusquerie de minha parte;  mas  não, isso é improvável.
Desde nosso último encontro tenho tido grandes motivos para ansiedade. Tenho algo a lhe contar, embora mal saiba como fazê-lo, ou se é que devo fazê-lo, afinal.
Não tenho andado lá muito bem faz alguns dias, e o pobre e velho Jup me aborrece quase além do suportável com seus bem-intencionados cuidados. Pode acreditar numa coisa dessas? — ele preparou uma longa  vara, outro dia, com a qual pretendia me castigar por haver escapulido e passado o dia, solus, entre as colinas do continente. Acredito piamente que foi somente meu aspecto enfermiço que me poupou de umas chibatadas. Nada acrescentei à minha coleção desde a última ocasião em que nos encontramos. Se puder, de algum modo, e julgar conveniente, acompanhe Júpiter até aqui. Venha. Gostaria de vê-lo esta noite, para tratar de assunto importante. Asseguro-lhe que é assunto da maior importância. Sempre seu,
William Legrand

Havia alguma coisa no tom desse bilhete que me deixou incomodado. O estilo todo diferia substancialmente do de Legrand. Com que poderia estar sonhando? Que novo capricho se apoderava de seu cérebro excitável? Que “assunto da maior importância” podia ele ter a tratar? O relato de Júpiter a seu respeito não pressagiava nada de bom. Eu temia que a contínua pressão do infortúnio houvesse, enfim, desarranjado até certo ponto a razão de meu amigo. Sem hesitar mais um  instante, então, preparei-me para acompanhar o negro.
Ao chegar no píer, notei uma gadanha e três pás, tudo aparentemente novo, no fundo do bote em que deveríamos embarcar.
“O que significa tudo isso, Jup?”, perguntei. “Gadanha, massa, e pá.”
“De fato; mas o que essas coisas estão fazendo aqui?”
“É a gadanha e as pás que Massa Will mandou eu comprar pra ele na cidade, e precisei dar um dinheirão dos diabos por elas.”
“Mas o que, em nome de tudo que há de mais misterioso, seu 'Massa Will' pretende fazer com gadanhas e pás?”
“Isso eu é que num sei, e o diabo me carregue se num acho que nem ele também não sabe. Mas é tudo culpa do escar'vel'o.”
Percebendo que nenhuma explicação satisfatória poderia ser obtida com Júpiter, cujo intelecto parecia inteiramente absorvido no “escar'vel'o”, entrei no bote e estiquei a vela. Com a brisa agradável e firme logo chegamos à pequena angra a norte de Fort Moultrie, e uma caminhada de cerca de três quilômetros nos conduziu à cabana. Legrand estivera nos esperando com ansiosa expectativa. Agarrou minha mão com um empressement nervoso que me alarmou e fortaleceu as suspeitas que eu já  acalentava.  Suas feições estavam pálidas até para um fantasma e em seus olhos encovados cintilava um brilho antinatural. Após alguma inquirição acerca de seu estado de saúde, perguntei-lhe, sem imaginar  coisa melhor  que  dizer, se obtivera de volta o scarabæus do tenente G——.
“Ah, claro”, respondeu, corando violentamente, “peguei-o na manhã seguinte. Nada vai me separar desse scarabæus. Sabia que Júpiter tem toda razão acerca dele?”
“Em que sentido?”, perguntei, com um triste pressentimento no coração. “Em supor que o escaravelho é de ouro de verdade.” Disse ele, com ar da
mais profunda seriedade, com o que me senti indizivelmente chocado.
“Esse escaravelho vai fazer minha fortuna”, continuou, com um sorriso triunfante, “restituir-me as posses familiares. É de causar alguma admiração, então, meu apreço por ele? Uma vez que a Fortuna achou  por bem mo concedê-lo, tudo que tenho a fazer é usá-lo apropriadamente e chegarei ao ouro de que ele é o indicador. Júpiter, traga-me aquele scarabæus!”
“Arre! o escar'vel'o, massa? Prefiro não me meter com aquele bicho — melhor o senhor mesmo pegar.” Nisso Legrand se levantou,  com  um  ar grave e altivo, e trouxe-me o besouro que deixara guardado em  um  estojo de vidro. Era um lindo scarabæus e, nessa época, desconhecido dos naturalistas — sem dúvida um grande achado, do ponto de vista científico. Havia duas manchas negras arredondadas junto a uma das extremidades, no dorso, e uma mais alongada, na outra. A casca era excepcionalmente dura e reluzente, com toda a aparência de ouro polido. O peso do  inseto  era deveras notável e, levando tudo em consideração, dificilmente se  podia culpar Júpiter por sua crença respeitante ao espécime; mas que Legrand compartilhasse dessa opinião era algo que eu não podia, sob nenhuma circunstância, admitir.
“Mandei chamá-lo”, disse ele, em um tom grandiloquente, após eu ter completado meu exame do besouro, “mandei chamá-lo para que pudesse contar com seu conselho e assistência no cumprimento dos desígnios do Destino e do escaravelho”—
“Meu caro Legrand”, exclamei, interrompendo-o, “certamente não  está bem, e melhor seria se tomasse determinadas precauções. Deve se recolher à cama, e permanecerei a seu lado por alguns dias, até  ter superado isso. Está febril e”—
“Sinta meu pulso”, disse ele.
Tomei-lhe a pulsação e, para falar a verdade, não encontrei o mais leve indício de febre.
“Mas pode estar enfermo e mesmo assim não ter febre. Permita-me ao menos dessa vez lhe passar uma prescrição. Em primeiro lugar, vá para a cama. Em seguida”—
“Você se equivoca”, interveio ele, “estou tão bem quanto seria de se esperar, no presente estado de empolgação em que me encontro. Se de fato quer me ver bem, deve aliviar essa empolgação.”
“E como isso pode ser feito?”
“Muito fácil. Júpiter e eu estamos de partida para uma expedição pelas colinas, no continente, e, nessa expedição, precisaremos da ajuda de alguém em quem possamos confiar. É o único de nossa confiança. Sendo bem ou malsucedidos, essa empolgação que ora vê em mim será igualmente mitigada.”
“Fico ansioso em obsequiá-lo da melhor maneira”, repliquei; “mas está afirmando que esse besouro infernal guarda alguma ligação com sua expedição pelas colinas?”
“Isso mesmo.”
“Pois nesse caso, Legrand, não posso tomar parte em procedimento tão absurdo.”
“Lamento — lamento muito — então o tentaremos nós mesmos.”
“Tentar por si mesmos! O homem certamente enlouqueceu! —  mas espere! — quanto tempo pretendem se ausentar?”
“Provavelmente, a noite toda. Deveremos começar imediatamente, e voltar, em todo caso, ao nascer do sol.”
“E me promete, por sua honra, que quando essa sua extravagância houver terminado, e o negócio do escaravelho (bom Deus!), acertado a seu contento, voltará para casa e seguirá meu conselho sem discutir, como se vindo de seu próprio médico pessoal?”
“Sim; prometo; e agora a caminho, pois não temos tempo a perder.”
Com o coração pesado acompanhei meu amigo. Começamos  por  volta  das quatro da tarde — Legrand, Júpiter, o cão e eu. Júpiter levava consigo a gadanha e as pás — insistindo em carregar tudo sozinho — mais por medo, assim me pareceu, de deixar alguma daquelas ferramentas  ao alcance de seu mestre, do que por qualquer excesso de diligência ou préstimo. Sua conduta era obstinada ao extremo e “esse diacho d'escar'vel'o” foram as únicas palavras que deixaram seus lábios durante a jornada.  De  minha parte, eu ficara encarregado de um par de lanternas furta-fogo, enquanto Legrand se dispunha a levar o scarabæus, que ia preso à ponta de um pedaço de chicote; ele o girava de um lado para outro, com  ares  de feiticeiro, conforme caminhava. Quando observei essa última evidência indiscutível de aberração mental em meu amigo, mal pude conter as lágrimas. Achei melhor, entretanto, condescender com sua fantasia, pelo menos por ora, ou até ser capaz de adotar medidas mais enérgicas com alguma chance de sucesso. Nesse meio-tempo empenhei-me, mas em vão, em sondá-lo com respeito ao intuito da expedição. Tendo conseguido induzir-me a acompanhá-lo, parecia pouco inclinado a manter  conversa sobre qualquer assunto de menor importância, e a todas minhas perguntas não se dignava a responder outra coisa além de “veremos!”.
Atravessamos o braço de mar na ponta da ilha usando um esquife e, subindo pelo terreno elevado no litoral do continente, prosseguimos na direção noroeste, por uma extensão de terra excessivamente bravia e desolada, onde nenhum sinal de passadas humanas se via. Legrand ia na frente com determinação; parando apenas por um instante, aqui e ali, para consultar o que pareciam ser determinados marcos  feitos  por  ele mesmo em uma ocasião anterior.
Desse modo excursionamos por cerca de duas horas e  o  sol  mal começara a se pôr quando entramos numa região  infinitamente  mais lúgubre do que qualquer outra que havíamos visto. Era  uma  espécie  de platô, próximo ao cume de uma colina quase inacessível, densamente arborizada da base até o pico, e coberta de imensos rochedos que pareciam soltos no solo e que em muitos casos eram impedidos de se precipitar nos vales abaixo meramente pelo arrimo das árvores contra as quais se apoiavam. Profundas ravinas, em várias direções, emprestavam uma atmosfera ainda mais austera à solenidade do cenário.
A plataforma natural que havíamos  galgado abrigava uma densa touceira de sarças, na qual logo percebemos que  teria  sido  impossível  penetrar senão com a gadanha; e Júpiter, por ordem de seu senhor, procedeu  à abertura de uma picada para nós até a base de um gigantesco tulipeiro que assomava, junto com uns oito ou dez carvalhos, na elevação, e suplantava em muito todos eles, bem como todas as demais árvores que eu um dia já vira, pela beleza de sua folhagem e sua forma, pela ampla disposição de  seus galhos e pela majestade geral de sua aparência. Quando chegamos a essa árvore, Legrand virou para Júpiter e lhe perguntou se achava que era capaz de trepar ali. O velho homem pareceu titubear um pouco com a pergunta, e por alguns momentos não respondeu. Após algum tempo, aproximou-se do imenso tronco, contornou-o vagarosamente e examinou-o com escrupulosa atenção. Após completar seu escrutínio, disse apenas:
“Sim, massa, Jup consegue trepar em qualquer árvore que ele já viu na vida.”
“Então ponha-se a subir, quanto antes possível, pois logo estará escuro demais para enxergar o que estamos fazendo.”
“Até onde é pra subir, massa?”, inquiriu Júpiter.
“Suba pelo tronco principal primeiro, depois eu lhe digo por  onde prosseguir — e olhe — espere! leve esse besouro com você.”
“O escar'vel'o, Massa Will! — o escar'vel'o de ouro!”, gemeu o negro, encolhendo-se, descorçoado — “pra que eu tenho que levar o escar'vel'o pra cima da árvore? — o diabo me carregue se vou fazer isso!”
“Se está com medo, Jup, um negro grande e forte como você, de segurar um besourinho morto inofensivo, por que não o leva com  esse  cordão — mas se não levar de um modo ou de outro, serei obrigado a quebrar sua cabeça com esta pá.”
“O que é isso agora, massa?”, disse Jup, evidentemente aquiescendo de pura vergonha; “o senhor tem  sempre que  implicar  com  este preto velho. Eu só tava brincando. Eu, com medo do escar'vel'o! e eu ligo a mínima pro escar'vel'o?” E, dizendo isso, segurou cuidadosamente a ponta do cordão e, mantendo o inseto o mais longe possível de sua pessoa  que  as circunstâncias o permitiam, preparou-se para subir na árvore.
Quando novo, o tulipeiro, ou Liriodendron tulipiferum, o  mais  magnífico dos habitantes da floresta, tem um tronco peculiarmente liso,  e  muitas vezes cresce até grandes alturas sem galhos laterais; mas,  em  idade madura, a casca se torna rugosa e desigual, enquanto muitos ramos curtos aparecem em seu caule. De modo que a dificuldade de escalada,  no presente caso, reside mais na aparência do que na realidade. Cingindo o imenso cilindro da melhor forma possível com seus braços e pernas, agarrando certas saliências com as mãos e apoiando os dedos dos pés descalços em outras, Júpiter, após escapar de cair  por  muito  pouco  em uma ou duas ocasiões, enfim se contorceu até chegar à primeira grande forquilha, e pareceu considerar o negócio todo como virtualmente concluído. O risco da empresa estava, de fato, terminado agora, embora o escalador estivesse a cerca de cinco metros do chão.
“Pra que lado eu vou agora, Massa Will?”, perguntou.
“Continue pelo galho mais grosso — aquele desse lado”, disse Legrand. O negro obedeceu prontamente e, ao que parecia, sem maiores dificuldades; escalando cada vez mais alto, até que nenhum vislumbre de sua figura dobrada pudesse ser colhido através da densa folhagem que o envolvia. Um pouco depois sua voz foi ouvida, numa exclamação inarticulada.
“Até onde mais é pra ir?”
“Em que altura você está?”, perguntou Legrand.
“Alto pra burro”, replicou o negro; “dá pra ver o céu pelo topo da árvore.”
“Esqueça o céu, mas preste atenção no que eu vou falar. Olhe para baixo pelo tronco e conte os galhos embaixo de você, desse lado. Por quantos galhos você passou?”
“Um, dois, três, quatro, cinco — já passei cinco galhos, massa,  desse  lado aqui.”
“Então suba mais um.”
Em alguns minutos a voz se ouviu outra vez, anunciando que o sétimo galho fora atingido.
“Agora, Jup”, gritou Legrand, evidentemente muito empolgado, “quero que avance por esse galho o mais longe que puder. Se vir alguma  coisa  estranha, me avise.”
Nesse ponto, a pouca dúvida que eu ainda pudesse alimentar acerca da insanidade de meu pobre amigo foi finalmente descartada. Não me restava alternativa senão concluir que estava tomado pela demência, e fiquei seriamente ansioso em levá-lo para  casa. Enquanto  refletia sobre o melhor a fazer, a voz de Júpiter se ouviu mais uma vez.
“Tô com medo de tentar ir muito longe nesse galho — o galho tá morto quase ele todinho.”
“Você disse que o galho está morto, Júpiter?”, gritou Legrand com a voz trêmula.
“É, massa, mortinho da silva — bateu as botas  — foi dessa pra melhor.” “O que em nome dos céus devo fazer?”, perguntou Legrand, parecendo
sofrer de extrema aflição.
“O que fazer!”, disse eu, feliz com a  oportunidade  de  interpor  uma opinião, “ora, voltar para casa e recolher-se à cama. Vamos!  — seja um  bom rapaz. Está ficando tarde e, além do mais, lembre do que prometeu.”
“Júpiter”, gritou ele, sem me dar a mínima atenção, “está  me  escutando?”
“Tô, Massa Will, escutando tudinho.”
“Experimente o galho direito, então, com a sua faca, e veja se acha que está muito podre.”
“Tá podre sim, massa, certeza 'bsoluta”, respondeu o negro após alguns instantes, “mas não tão podre quanto a gente  imagina. Eu posso tentar  ir um pouquinho mais por esse galho se for sozinho, é verdade.”
“Sozinho! — do que você está falando?”
“Estou falando do escar'vel'o. Esse escar'vel'o é danado de pesado. Acho que se eu soltasse ele primeiro, daí o galho não quebrava só com o peso  dum negro.”
“Seu patife dos infernos!”, gritou Legrand,  aparentemente muito aliviado, “o que está querendo dizer com uma bobagem dessas? Pode apostar que se deixar o besouro cair eu quebro seu pescoço. Olhe bem, Júpiter! — está me ouvindo?”
“Tô, massa, num precisa berrar com o pobre negro desse jeito.”
“Bom! agora escute! — se você tentar seguir por esse galho até o mais longe que achar seguro, e não deixar o besouro cair, vai ganhar um dólar de prata assim que descer aqui embaixo.”
“Já fui, Massa Will — está feito”, respondeu o negro muito prontamente
— “já tô quase na ponta agora.”
“Quase na ponta!”, berrou entusiasmado Legrand, “está dizendo  que chegou na ponta desse galho?”
“Logo, logo, massa — o-o-o-o-oh! Sinhormisericordioso! que negócio  é esse aqui em cima da árvore?”
“Então!”, gritou Legrand, em júbilo, “o que é?”
“Bom, é só um crânio — alguém deixou isso aqui  em  cima da  árvore, e os corvos limparam ele até o último pedacinho da carne.”
“Um crânio, você disse! — muito bem! — como ele está preso no galho?
— o que está segurando ele aí?”
“Certeza 'bsoluta, massa; peraí, precisa olhar. Puxa, é a coisa mais esquisita, palavra — tem um baita prego no crânio  prendendo  ele  na árvore.”
“Bom, Júpiter, agora faça exatamente como eu mandar — está escutando?”
“Tô, massa.”
“Preste bastante atenção! — ache o olho esquerdo do crânio.” “Hum! uuh! essa é boa! arre, num tem olho esquerdo ni'um.”
“Maldita seja sua estupidez! sabe diferenciar sua mão direita da esquerda?”
“Sei, isso eu sei — já aprendi isso — minha mão esquerda é o que eu uso pra cortar lenha.”
“Certamente! porque você é canhoto; e o seu olho esquerdo é do mesmo lado da sua mão esquerda. Bom, agora acho que consegue encontrar o olho esquerdo do crânio, ou o lugar onde o olho esquerdo ficava. Já achou?”
Nisso houve uma longa pausa. Finalmente, o negro perguntou:
“O olho esquerdo do crânio fica do mesmo lado da mão esquerda do  crânio, também? — porque o crânio não tem nem sombra de  mão  pra contar história — deixa pra lá! achei o olho esquerdo agora — taqui o olho esquerdo! o que que é pra fazer com ele?”
“Deixe o besouro descer por ele, o mais longe que o cordão alcançar — mas cuidado pra não soltar o cordão.”
“Prontinho, Massa Will; a coisa mais fácil, passar  o  escar'vel'o  pelo buraco — veja se dá pra enxergar ele daí debaixo!”
Durante esse diálogo, nenhuma parte do corpo de Júpiter pôde ser vista; mas o besouro, que ele fizera descer, estava visível agora na  ponta  do cordão, e cintilava, como um globo de ouro polido, sob os  derradeiros  raios do sol poente, alguns dos quais ainda iluminavam  debilmente o cume onde nos encontrávamos. O scarabæus pendia livre de qualquer galho e,  se deixado cair, teria pousado aos nossos pés. Legrand pegou a gadanha imediatamente e abriu com ela um espaço circular, com três ou quatro metros de diâmetro, bem abaixo do inseto, e, tendo feito isso, ordenou a Júpiter que soltasse o cordão e descesse da árvore.
Cravando um pino na terra com grande cuidado, no preciso ponto onde o besouro caíra, meu amigo agora tirava do bolso uma fita  métrica.  Prendendo uma extremidade dela no ponto do tronco da árvore que ficava mais próximo ao pino, ele a desenrolou até chegar ao pino, e  depois continuou desenrolando, na direção agora já determinada pelos  dois  pontos, o da árvore e o do pino, pela distância de cinquenta pés — Júpiter ia carpindo os arbustos com a gadanha. No local desse modo atingido, um segundo pino foi enterrado, e em torno dele, como um centro, um círculo grosseiro, com mais de um metro de diâmetro, foi traçado. Pegando agora uma pá ele mesmo, e dando outra para Júpiter e uma para mim, Legrand instou-nos a cavar o mais depressa que conseguíssemos.
Para ser sincero, nunca foi muito de meu agrado entregar-me a passatempos desse tipo, em tempo algum, e, naquele momento em particular, eu teria de bom grado declinado da tarefa; pois a noite se aproximava, e me sentia extremamente fatigado com todo o exercício até  ali empreendido; mas não via modo de escapar e receava perturbar a serenidade de meu amigo caso recusasse. Na verdade, pudesse eu ter contado com a assistência de  Júpiter, teria sem  hesitação tentado carregar o lunático de volta para casa à força; mas tinha demasiada convicção sobre a disposição do preto velho para esperar que fosse  me  ajudar,  sob quaisquer circunstâncias, em uma contenda pessoal com  seu senhor.  Não me restava dúvida de que este fora contagiado por algumas das inúmeras superstições dos sulistas acerca de dinheiro enterrado, e que sua fantasia encontrara confirmação no achado do scarabæus, ou, talvez, na obstinação de Júpiter em afirmar que era “um escaravelho de ouro  de  verdade”.  A mente inclinada à loucura facilmente se deixa levar por tais sugestões — sobretudo quando fazem coro a suas ideias preconcebidas —, e então veio- me à lembrança a declaração do pobre coitado de que o besouro era “o indicador de  sua fortuna”. Com  tudo isso, sentia-me tristemente aborrecido e perplexo, mas, enfim, concluí que devia extrair o melhor da situação — cavar com toda a boa vontade e quanto antes convencer o visionário, pela evidência ocular, da falácia das opiniões por ele entretidas.
Tendo acendido as lanternas, pusemo-nos todos a trabalhar com um zelo digno de causa mais racional; e, com o clarão banhando nossas figuras e as ferramentas, não pude deixar de pensar que grupo mais pitoresco compúnhamos e quão estranhos e suspeitos nossos esforços deveriam ter parecido a qualquer intruso que, por acaso, calhasse de topar com nosso paradeiro.
Cavamos com grande determinação por duas horas. Pouco falamos; e nosso principal estorvo consistia nos ganidos do cão, que tomava extraordinário interesse em nossos afazeres. Após algum tempo, ele se mostrou tão obstinadamente ruidoso que passamos a recear que alertasse algum caminhante sem rumo que pudesse estar nos arredores;  —  ou melhor, essa era uma apreensão de Legrand; — quanto a  mim,  teria exultado com qualquer interrupção que me houvesse permitido conduzir o extraviado de volta para casa. O barulho foi enfim silenciado do modo mais eficaz por Júpiter, que, deixando o buraco com um empedernido ar de resolução, amarrou a boca do animal com um de seus suspensórios, e  depois voltou, com uma risadinha gutural, a sua tarefa.
Quando o tempo mencionado expirara, havíamos atingido uma profundidade de um metro e meio, e contudo sinal algum de tesouro se manifestou. Uma pausa geral se deu e comecei a ter esperanças de que o absurdo estivesse chegando ao fim. Legrand, entretanto, ainda que evidentemente muito desconcertado, limpou a testa cuidadosamente e recomeçou. Havíamos escavado por todo o círculo de um metro e pouco de diâmetro, e agora alargávamos ligeiramente esse limite, e prosseguimos a uma profundidade de mais meio metro. Ainda nada apareceu. O caçador de ouro, de que eu sentia uma piedade sincera, enfim deixou o poço escavado, com a decepção mais amarga marcada em cada traço de seu semblante, e começou, de modo vagaroso e relutante, a vestir seu casaco, que atirara fora no início do trabalho. Entrementes, não aventei comentário algum. Júpiter, a um sinal de seu senhor, começou a juntar as ferramentas. Isso feito, e o cão tendo sido desamordaçado, retomamos em  profundo  silêncio  o rumo de casa.
Havíamos dado, talvez, uma dúzia de passos nessa direção, quando, soltando uma sonora praga, Legrand marchou na direção de Júpiter e o agarrou pelo colarinho. O negro atônito abriu os olhos e a boca na máxima amplitude, vergou os ombros e caiu de joelhos.
“Seu patife”, disse Legrand, sibilando as  sílabas  entre os  dentes cerrados
— “seu vilão preto do inferno! — diga, estou mandando! — me responda neste instante sem nenhum rodeio! — qual — qual é o seu olho esquerdo?”
“Ai, Deus meu, Massa Will! não é esse aqui meu olho esquerdo, com  certeza 'bsoluta?”, grunhiu o aterrorizado Júpiter, pondo a  mão  sobre  o órgão direito da visão, e mantendo-a ali com uma tenacidade desesperada, como que num pavor imediato de que seu mestre tentasse arrancá-lo.
“Foi o que pensei!  — eu sabia!  — viva!”, urrou Legrand, liberando o negro e passando a executar uma série de piruetas e cabriolas, para grande perplexidade de seu criado, que, pondo-se de pé, olhava, emudecido, de seu senhor para mim, e depois de mim para seu senhor.
“Vamos! temos de voltar”, disse este, “o jogo ainda  não  terminou”;  e mais uma vez liderou o caminho para o tulipeiro.
“Júpiter”, disse, quando chegamos ao pé da árvore, “venha aqui! o crânio estava preso no galho com o rosto virado para fora ou com o rosto virado para o galho?”
“O rosto tava pra fora, massa, assim os corvos puderam bicar os olhos à vontade, sem dificuldade.”
“Bom, nesse caso, foi por esse olho ou por esse que você passou o besouro?” — aqui Legrand tocou um olho e depois o outro de Júpiter.
“Foi esse, massa — o olho esquerdo — como o senhor falou”, e dizendo isso o negro indicou seu olho direito.
“Tudo bem então — vamos tentar novamente.”
Nisso meu amigo, em cuja loucura eu agora enxergava, ou imaginava enxergar, certos indícios de método, removeu o pino marcando o lugar  onde o besouro caíra, para um outro ponto cerca de três polegadas a oeste de sua posição anterior. Partindo agora com a fita métrica do ponto mais próximo do tronco em relação ao pino, como antes, e prosseguindo em estendê-la numa linha reta até a distância de cinquenta pés, um local foi indicado, distante, vários metros, do ponto onde estivéramos a escavar.
Em torno da nova posição um círculo, pouco maior  do  que  o anteriormente feito, foi agora traçado, e mais uma vez pusemo-nos a trabalhar com as pás. Eu estava terrivelmente cansado, porém, mal compreendendo o que ocasionara a mudança em meus pensamentos, já não sentia grande aversão pelo trabalho imposto. Fora tomado pelo mais inexplicável interesse — não, empolgação, até. Talvez houvesse qualquer coisa, em meio a todo aquele comportamento extravagante de Legrand — algum ar de presságio, ou de deliberação, que me impressionasse. Cavei avidamente e, de vez em quando, peguei-me de fato buscando, com algo muito próximo de uma genuína expectativa, o tesouro imaginado, cujas visões haviam levado meu companheiro à demência. No momento em que tais caprichos do pensamento haviam em grande medida me possuído inteiramente, e após termos trabalhado por cerca de uma hora e  meia, fomos mais uma vez interrompidos pelos uivos violentos do cão. Sua inquietude, no primeiro caso, fora, evidentemente, ocasionada por um espírito brincalhão ou impulsivo, mas ele agora assumia um tom mais austero e grave. Quando Júpiter tentou mais uma vez amordaçá-lo, opôs-se furiosamente e, pulando dentro do buraco, começou a cavar a terra freneticamente com suas patas. Em poucos segundos,  havia desenterrado um amontoado de ossos humanos, compondo dois esqueletos completos, entremeados a diversos botões de metal, e o que pareciam ser restos de lã apodrecida. Um ou dois golpes de pá  revelaram  a lâmina de  uma grande faca espanhola e, ao cavarmos um pouco mais, três ou  quatro  moedas soltas de ouro e prata vieram à luz.
Ao ver isso a alegria de Júpiter mal pôde ser contida, mas  o semblante  de seu mestre exibia um ar de extremo desapontamento. Ele  insistiu conosco, entretanto, que continuássemos com nossos esforços, e nem bem suas palavras foram pronunciadas eu tropecei e caí, ao prender a ponta de minha bota em um grande anel de ferro que começara a aparecer entre a terra solta.
Agora trabalhávamos com determinação e nunca passei dez minutos de excitação mais intensa. Durante esse intervalo desenterramos em boa parte uma arca oblonga de madeira, que, por sua perfeita preservação  e  magnífica dureza, havia sido claramente sujeitada a algum processo de mineralização — talvez o do dicloreto de mercúrio. A caixa tinha aproximadamente um metro de comprimento, noventa centímetros de largura e oitenta centímetros de altura. Estava firmemente presa por cintas de ferro fundido, rebitadas e formando uma espécie de treliça sobre toda a estrutura. Em ambas as laterais da arca, perto do topo, havia três anéis de ferro — seis ao todo —, por meio dos quais uma preensão firme seria possibilitada para seis pessoas. Nossos máximos esforços conjugados serviram apenas para deslocar o cofre muito ligeiramente em seu leito. Percebemos na mesma hora a impossibilidade de remover um peso tão grande. Felizmente, os dois únicos fechos da tampa consistiam de ferrolhos de correr. Nós os puxamos — tremendo e ofegando de ansiedade. Num instante, um tesouro de valor incalculável cintilava sob nós. A luz das lanternas que verteu dentro do poço refletiu de volta ao incidir sobre uma pilha confusa de ouro e joias, um brilho e um fulgor que ofuscaram completamente nossos olhos.
Não pretendo descrever os sentimentos com que contemplei aquilo. A estupefação era, é claro, predominante. Legrand parecia exausto pela excitação, e poucas palavras disse. As feições de Júpiter  exibiram,  por alguns minutos, uma lividez tão mortal quanto é possível, pela natureza das coisas, o semblante de um negro assumir. Parecia entorpecido — atônito. Pouco depois prostrou-se de joelhos no poço  e, enterrando  os  braços  nus até os cotovelos no ouro, deixou que ali ficassem, como que  apreciando o luxo de um banho. Finalmente, com um profundo suspiro, exclamou, como em um solilóquio:

Contos de imaginação e mistério - Edgar Allan PoeOnde histórias criam vida. Descubra agora