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I

Carla abriu os olhos e a luz que entrava pela janela a cegou por alguns instantes. O dia acabara de raiar e ela havia dormido apenas três horas, mas se sentia disposta e pulou da cama, indo tomar um banho e se trocar.

Enquanto caminhava pelo corredor, ouviu Maria cantarolando na cozinha e a lembrança de uma pequena índia a chamando para brincar veio à sua mente, trazendo junto, a dor da perda e da saudade de um tempo e pessoas que jamais voltariam.

Diante da porta do quarto de Carolina, a dúvida se devia ou não entrar lhe assaltou, mas o desejo de vê-la e saber como estava foi mais forte.

A moça dormia serenamente e Carla se aproximou silenciosamente, como sempre fazia. Odiava-se pelo estado em que a deixara, mas seria muito pior se tivesse sido Santiago a espanca-la. Havia maneirado nos golpes o máximo possível. Ainda assim, Carolina havia ficado em um estado deplorável.

Devagar, tocou seus cabelos longos, negros e lisos. Derramavam-se sobre o travesseiro em um emaranhado de fios. Com o dedo, percorreu sua face, embebida naquele ato sublime de tocá-la.

Amava-a como jamais amou nada ou alguém. Se Marcos tivesse insistido em matá-la, era certo que, apesar de todo o respeito que lhe dedicava pelo muito que havia feito por ela, ele encontraria a morte em suas mãos. Talvez, ainda encontrasse.

Um raio de luz se insinuou pelas cortinas e tocou a face da bela em sua cama. Com cuidado para não a acordar, Carla fechou melhor as cortinas e sentou na poltrona ao lado do leito, velando o sono daquela a quem começou a amar no dia em que aceitou o toque da morte.

Recostou a cabeça no espaldar da poltrona e os risos contidos em suas lembranças preencheram seus ouvidos levando-a ao passado, de encontro ao momento em que o destino começou a conspirar para destruir tudo que amava e leva-la até o momento atual de sua vida.

Carla Maciel era uma criança feliz, nunca fora de falar muito, mas ao lado dos pais que tanto amava, era sempre risonha e brincalhona.

Seu pai, fora em outra época, um campeão de artes marciais. Infelizmente, um acidente de moto causou sérios danos a uma de suas pernas e ele abandonou o esporte, mudou de cidade e decidiu trabalhar na área em que se formara como professor. Foi lecionando que conheceu sua mãe, também professora.

Foi amor à primeira vista, assim contava seu pai quando a menina perguntava como se conheceram.

Quando tinha quatro anos, seus pais foram convidados a participar de um projeto de alfabetização de índios e ribeirinhos em regiões longínquas do país. O projeto, que envolvia também assistência médica, entre outros benefícios, exigia que residissem em uma das aldeias beneficiadas.

Havia sido uma decisão difícil, mas seus pais aceitaram o convite e permaneceram na aldeia por seis anos. Lá, Carla cresceu, aprendeu a língua indígena, sua cultura, sua caça e valores. Adorava a vida no meio da selva e seus amigos. Mas, o momento do dia que mais apreciava, era quando seu pai a chamava para sua aula de artes marciais, não pela razão do esporte e, sim, por dividir aquele momento com o homem que era seu herói.

Então, o projeto chegou ao fim e a família teve de partir de volta a civilização. No entanto, não foram muito longe. Durante a viagem, um caminhão desgovernado bateu no carro em que a família viajava e seus pais morreram quase que instantaneamente.

A menina foi a única sobrevivente. Passou horas à espera de socorro, sentindo a dor física e a espiritual, enquanto observava os corpos de seus pais, compreendendo lentamente que havia ficado sozinha e que não haveria mais risos, nem beijos de boa noite, nem abraços carinhosos.

Crimes do AmorOnde histórias criam vida. Descubra agora