A velha balançava-se na cadeira. Movia-se repetida e lentamente, para frente e para trás, quase que em transe. A cada ciclo que se recomeçava, a cadeira de balanço – negra como o céu virgem da meia noite, sem lua ou estrelas, feita de ébano maciço e incrivelmente polido e lustroso – rangia como que em protesto. Há quantos anos sentava-se sobre ela, naquela mesma varanda e repetia silenciosamente – exceto pelo crepitar da madeira – aqueles movimentos hipnotizantes de vai-e-vem? Parou subitamente e pensou. Talvez uns 70, 75?! Era muito tempo na história dos homens. Não que ela fosse um homem, ou que se tivesse se sentado apenas naquela mesma varanda, sob aquele mesmo teto durante a sua... vida. Afastou o pensamento com um sacudir da cabeça, como que dissipando uma névoa mental espessa e cinzenta. Voltou a balançar, ignorando os estalos de protesto da cadeira.
Pousou as mãos sobre o cesto de vime que estava em seu colo, aninhado como um gato dócil, atento, mas, de alguma forma, à espreita, de alguma forma, perigoso. De dentro do cesto retirou um longo fio negro, incrivelmente e desafiadoramente mais escuro que a cadeira na qual a velha se balançava. Era um simples fio de tear, que poderia ter sido parte de qualquer novelo de lã, pronto para ser agarrado contra sua vontade por duas longas agulhas de tricô, pronto para fazer parte de uma peça de roupa que aquecesse, inutilmente, um pobre coitado durante um alvo e rigoroso inverno.
No entanto, havia algo de diferente naquele simples e longo fio de tear. A cada movimento ele reluzia sob os raios do sol poente, que descia vagarosamente no horizonte, a poucos minutos de se esconder atrás das colinas para descansar e dar lugar a uma noite amena e sem graça. Escura. Não será noite de lua. O único som que se ouviria seria o farfalhar de folhas das árvores próximas e o cricrilar enérgico de grilos escondidos na grama.
A velha pôs sobre a coxa fina e murcha, coberta pelo longo vestido azul escuro que chegava aos tornozelos, o fio negro e alienígena. Avaliou-o com certo desinteresse, como que para ela fosse algo normal, como se o fio de espessura de um lápis fosse feito de material ordinário e sem valor.
Aos olhos de qualquer outra pessoa, de qualquer pessoa, o fio negro, maleável e brilhoso que descansava sobre a perna da velha, que reluzia sobre o sol poente e tremeluzia como que contendo fumaça em seu interior – como que contendo vida – seria tão espetacularmente estranho e singular que a deixaria em êxtase, quase sem fôlego. De início, a beleza da coisa apagaria de sua mente qualquer pensamento que estivesse instalado, suprimiria qualquer angústia em seu coração, apaziguaria e acalentaria a alma. Logo estivesse sendo engolida e sufocada por tamanha venustidade, viria outra sensação. A súbita ideia de impotência, de inferioridade e de... finitude, suplantaria a felicidade de outrora. Qualquer pessoa sentir-se-ia enojada, fraca, nauseada. O gosto de bile subiria à boca, amargo e esverdeado. Perguntar-se-ia a si mesma como não percebera que aquele fio longo e sombrio se parecia com uma cobra, desconfiada e selvagem, o veneno novo e recém-fabricado escorrendo por longas e prateadas presas. Veria então que o brilho inusitado para um fio de lã sob o espectro alaranjado do fim de tarde era na verdade o reflexo da luz nas escamas ásperas e frias da serpente. Por fim, se a pessoa visse aquele fio – que deixava o cesto para a mão da velha e depois descansava preguiçosamente sobre sua coxa – perceberia que a fumaça que parecia contida em seu interior e espiralava e rodopiava em assimetria, tortuosamente, como que procurando em desespero uma saída, gritando silenciosamente por perdão e misericórdia, fazendo juras falsas e votos vãos de mudança, perceberia então sua alma, dançando como aquela fumaça, dentro de um espaço finito e ínfimo. Toda uma vida aprisionada num fio de tear. Todas as palavras não ditas e arrependidas, todos os desejos saciados, todas as mentiras e todas as verdades proferidas. Cada segundo de sua vida assistida como uma cena num teatro escuro e sem plateia. Cada etapa representada num ato de uma peça barata e vagabunda, daquelas que não causam impacto a um indivíduo sequer. Os sonhos também estariam lá, pois realizados ou não, fizeram parte de sua vida, uma infinidade de desejos virtuais formados de obscenidades e de honradas virtudes. Essa imensidão de sentimentos de dor e de alegria, categoricamente contrastados, opostos como branco e preto, dia e noite e tão complementares um do outro, como ordem e caos, equilibrados sobre uma balança cósmica fielmente calibrada daria lugar, então, ao mais nobre sentimento de todos e somente a ele. Olhando o fio, agradeceria por tudo vivido ou não. Agradeceria pela oportunidade, pela viagem, aonde quer que tivesse chegado, aonde quer que tivesse sido o destino. Onde quer que estivesse agora. Estaria em paz e mergulhada em gratidão. No fio, ainda sobre a coxa da velha, a fumaça cinzenta se acomodaria, lenta e obedientemente, sem mais lutar contra o inevitável. Apreciaria aquele pôr do sol estonteante. Único. Seu.
Ninguém nunca vira aquele fio, somente a velha.
Parou de se balançar no móvel de ébano. Pinçou o fio pelo meio, suspendendo-o diante dos olhos, despertando-o do sono. Suas mãos eram enrugadas, secas e pálidas. Manchas de velhice pipocavam sobre a pele do dorso esquelético e frio como estrelas no céu noturno. Embora velha, murcha como uma maçã passada, com olhos fundos, cabelos brancos e pele flácida, era firme. Segurava o fio entre o polegar e o indicador direitos sem tremer. Olhou-o com atenção, mas ainda com perceptível desinteresse, sem precisar aproximá-lo ou afastá-lo para acomodar a visão. Sequer abriu mais os olhos, as pálpebras superiores enrugadas e caídas a meio mastro. Fitou-o por alguns segundos mais, sem desviar o olhar, sem se incomodar com a quietude lancinante do campo plano a sua volta, recortado do resto do mundo por colinas e montanhas, que guarneciam aquele pedaço de terra como gigantes armados. O fio negro e reluzente, agora calmo e sereno, como se em câmera lenta, escorria dos dedos pontudos para baixo, com suas metades milimetricamente equidistantes.
Despertou do transe e curvou-se para o lado em direção ao chão, os ossos estalando e rangendo, um som espantosamente semelhante ao crepitar da cadeira sobre a qual sentava. Próximo dos pés – da cadeira e da velha, que se mesclavam em uma ilusão – estava uma tesoura grande, de aparência pesada e perigosamente afiada. Era de ferro escuro como chumbo. Por nenhuma razão aparente, dava a impressão de ser tão velha quanto a mulher que a segurava, o que não poderia ser possível, pois não havia um traço sequer de ferrugem, nenhum ponto de oxidação. Muita coisa parece ser impossível nesse mundo. Mistérios que temperam a vida e alimentam sonhos. Levantou a tesoura e testou-a, um movimento automático e sem necessidade, sabia que estava boa para ser usada, sempre estivera. Ainda assim, abriu e fechou as garras cinzentas três vezes, um polegar em um buraco, o dedo médio no outro. Caía-lhe bem a tesoura, como uma luva. Parecia ter sido feita sob medida para a mão da velha, mesmo com aqueles vinte centímetros de comprimento de ferro puro, rijo e inflexível.
Aproximou a tesoura do ponto médio onde segurava o fio, protagonista de sua própria existência. Abriu a bocarra do instrumento, encaixando o fio sobre a mandíbula num movimento lento, mas regrado de alguém que sabe o que está fazendo, pois é precedida de muitos e muitos anos de experiência.
Fechou os dedos, a tesoura respondendo ao seu comando e apertando o fio entre suas lâminas opacas e frias. Tudo passou a acontecer como se o mundo estivesse mergulhado em âmbar, o tecido do tempo destacado da realidade. Era uma impressão, é claro, mas quase tangível e concreta. Eram esses momentos que sempre surpreendiam aquela velha murcha e franzina, não importava quantas vezes o repetira em sua existência. A marcha lenta estava além de seu controle, da sua vontade. Era como se o universo estivesse saudando uma memória, exaltando uma história tão comum e ímpar. Única dentro de um oceano de iguais. Aquele momento de lentidão que era para ser sentido, inalado, visto, ouvido. Internalizado.
Cada vez mais os dedos da velha se fechavam, e com eles seguiam-se as lâminas da tesoura. Logo, a maxila férrea encontra o fio, abaixo, e o pressiona contra a mandíbula. Afiada como era, partiu o fio em duas metades equivalentes, como ordenara a velha, sem cerimônia. Como que feito de lã, escorreram de ambos os lados da tesoura, que permanecera fechada no ar, como o bico cerrado de um régio e triunfante tucano.
As metades se atiraram ao chão, ansiosas pelo seu encontro com o piso de madeira. Mas antes de atingirem seu objetivo final, perderam sua negritude. Não havia mais brilho e o tremeluzir causados pelo sol, que ainda olhava a cena de seu camarote nos céus. O fio adotara, quando se partira em dois, um aspecto acastanhado, marrom, como barro seco. Se realmente contivera vida, como demonstrava, agora era o reflexo da morte. As metades chegaram finalmente ao chão, num ruído surdo, um suspiro último, impossível de ser ouvido. Lá, permaneceram em seu aspecto cadavérico, sem a beleza que um dia possuíram. A velha olhou, encantada e orgulhosa, os fios deitados sobre o chão, mesclando-se com o piso de madeira. Antes, o fio que pegara do cesto possuía um encanto único, capaz de despertar os mais diversos sentimentos numa pessoa. Porém, aquela mulher que se balançava sobre uma cadeira de ébano, na varanda, todos os fins de tarde sob o sol poente, com sua cesta de vime aninhada no colo, aquela mulher velha não se admirava com o fio negro que cortara. Ao contrário de qualquer pessoa, fascinava-se com o resultado de seu trabalho, com a mordida cruel e inexpressiva da tesoura e com as duas metades de tamanhos iguais e cor de terra que se alçavam ao chão. Ninguém seria capaz de compreender a beleza da coisa, o seu significado intrínseco e a satisfação de ver um tornar-se dois. Poderia não ser mais o fio que era, mas agora estava na lembrança, no âmago da velha. Ela já não se lembraria do momento em que tirou o fio do cesto, quando o estendeu sobre a coxa e refletiu sobre ele, ouvindo sem interesse as histórias que lhe contava. Mas decerto lembrar-se-ia da tesoura envolvendo-o, da força que exercera sobre ela para partir o fio negro nas duas metades marrons. Decerto, jamais esqueceria daqueles milésimos de segundo em que, agora, dois fios caíam em direção ao chão. Não se esqueceria do ruído mudo que provocaram ao chocar contra o chão. Levaria consigo para sempre o mudar gradual, porém rápido, do negro ao castanho, simbolizando a essência da transformação, do além do real, além do passado, do presente e do futuro, de algo que nem mesmo ela sabia o que era, mas que existia. Três palavras surgiam-lhe na cabeça. Era incrível como essas três palavras expressavam em sua grafia a proporcionalidade direta da duração a que se dispunham a significar.
Começo, meio e fim.
A velha fechou os olhos. Retomou o suave balançar, para frente e para trás. O vai-e-vem preguiçoso e melancólico tão familiar e rotineiro de uma cadeira robusta que rangia nervosamente e uma mulher esquelética, pequena e ereta, de face chupada, que respirava profundamente. As duas pareciam ser um ser apenas. Alguma coisa poderosa e mística, sempre presente, mas constantemente e instintivamente evitada. Pareciam estar sempre à espreita, à sombra. O tipo de coisa que uma pessoa só consegue enxergar pelo canto do olho, pois olhando de frente essa coisa desaparece, como se nunca tivesse estado lá. As mãos enrugadas e pontiagudas estavam descansando sobre os braços da cadeira, a tesoura, ainda estava pendurada na mão esquerda, como uma extensão de seu corpo, tão importante como um fígado ou um rim.
Sentiu, ao longe, o doce aroma de laranjas. Inspirou fundo, o ar primaveril e morno daquela tarde entrando pelo longo e fino nariz, descendo até os pulmões, inflando-os. O odor cítrico despertando boas lembranças. Sorriu. Era um sorriso fino, sem dentes, mas suave e quase inocente. Sentiu uma lufada de ar roçar-lhe o rosto, o vento vindo do leste balançando as árvores que cercavam a casa, distantes umas das outras por espaços irregulares, e seguindo seu caminho, sem se importar com a presença da velha que balançava.
Em algum lugar próximo, um pássaro levantou voo, o som do bater de asas ecoando vagarosamente pelos ouvidos da velha, chegando em seu cérebro. Mesmo de olhos fechados, estava atenta a tudo. Não precisava enxergar para ver. Não precisava ouvir para escutar. Não precisava tocar para sentir. Assim como não precisava estar viva para existir. Ela sabia onde todas as coisas estavam, onde todas as engrenagens do mundo se encaixavam, quais se moviam e quais eram movidas. Ela era experiente. Ela sempre existira, pelo menos assim parecia ser, e não seria capaz de dizer o contrário, se assim o fosse.
O mundo era como essa sua pequena casa, no campo. Conhecia cada palmo dela, cada imperfeição e cada peculiaridade. Vivera anos ali, desde quando se tem lembrança. Desde que se casara com o homem com quem até hoje dividia a cama. Não só a cama, mas a rotina também, e os bons e maus momentos, e a... vida. Era quase uma indagação, sentia a interrogação descolar da mente para pontuar aquele pensamento. Por um breve momento de sua existência teve dúvida. E duvidar era perigoso. Se questionasse sua natureza por segundo que fosse, tudo poderia desmoronar, colapsar. Entrar em curto.
Pegou-se surpresa com o desenrolar dessas reflexões. Era velha e havia passado por muita coisa durante todos esses anos. Divagava. Cada ideia, pensamento ou lembrança abria uma porta que dava para mais portas, como galhos numa árvore, que se ramificam infinitamente até que... bem, até que a árvore morra. Já era difícil manter um raciocínio claro e limpo. Aprendera a ver além do que era real, além até mesmo dos sonhos, mas seus devaneios e fantasias de fim de tarde eram mais sólidos e racionais que as leis da física. Era tão velha e nunca ficara louca, nunca perdera a sanidade por um momento sequer. Sempre atenta – quase fria – a tudo o que acontecia. Não podia simplesmente pegar um fio negro daquela cesta de vime, cortá-lo, assisti-lo definhar e mudar de cor e se deixar abater com aquele mesmo desfecho repetitivo. Assim como se mantinha indiferente ao seu serviço, de cortar os fios todas as tardes, ignorava o restante do mundo e as pessoas dele, mas nunca sem deixar de saber o que se passava. Apenas não tomava para si as mazelas do mundo e as dores das pessoas. Evitava ouvir suas histórias, tão cheias de queixas, sofrimento e lamúria. Por isso refugiava-se naquele lugar distante, com seu marido como única companhia. O marido que no momento estava a alguns quilômetros de casa, provavelmente pastoreando as poucas vacas que possuíam, ou talvez colhendo algumas frutas e legumes que já estivessem maduros. Logo, logo ele mesmo estaria de volta, trazendo os frutos do trabalho dele, antes que o sol se escondesse definitivamente atrás das colinas e montanhas até o dia de amanhã. E hoje à noite não haveria lua no céu.
Diante desses pensamentos, sentia-se quase onipresente, como se pudesse ver – mesmo de olhos fechados – todas as pessoas do mundo. Homens e mulheres em seus trabalhos banais, sufocados pela rotina. Crianças todas tão iguais em suas atividades infantis, correndo umas atrás das outras, tão imersas em seus mundos de fantasia e ilusão. Enxergava imagens projetadas em suas pálpebras cerradas de jovens enamorados, trocando carícias e sorrisos lascivos, exibindo-se para o mundo.
Havia também dor, horror e sofrimento. Via homens banhados em sangue, desmembrados, rostos em agonia eterna e mentes perdidas dentro de si mesmas. Homens em guerra que davam suas vidas por caprichos de outros homens, os quais eram todos desprovidos de moral e empatia, sentados em cadeiras altas, em palácios de concreto e mármore, a milhas de distância dos comuns. Crianças famintas e desnutridas, roubando pães e frutas velhos e secos para enganar a barriga. Jovens dormindo nas ruas, ao frio e vento, ignorados pelos transeuntes, invisíveis, alienígenas no próprio mundo.
Assistiu, impotente, a mulheres sendo sufocadas, ensanguentadas, espancadas, esfaqueadas, estupradas, violadas, abusadas, ameaçadas...
...
...violentadas por homens incapazes de respeitá-las, incapazes de compreender que elas não são suas propriedades, que elas não lhes devem submissão. Homens incapazes de amar as mulheres. Sentiu um nó no estômago, o coração apertado, uma mão gélida e espinhosa comprimindo-o com força, prestes a explodi-lo. O medo subindo a espinha e se instalando em sua mente.
Repreendeu-se mais uma vez por esses sentimentos humanizados. Não deveria ser de sua natureza incomodar-se com as outras pessoas. Pelo menos não neste grau. No entanto, era difícil depois de tantos anos destacar-se do mundo, como mera observadora, reduzir-se a uma simples ferramenta, como a tesoura era para ela.
Mesmo isolada, apaixonara-se pelas pessoas.
Como que se castigando a si mesma, voltou ao trabalho. Pôs a mão dentro do cesto e retirou outro fio negro e brilhoso. Exatamente igual ao primeiro, mas diferente no comprimento. Este era muito menor que o anterior, cerca da metade do tamanho. Da mesma forma, agitava-se quando tocado por aquelas mãos compridas e esqueléticas. Ao contrário do primeiro fio, que ainda residia em duas metades sobre o soalho, próximo aos pés da velha, o novo companheiro recusava-se a aquietar-se. Era como se ele não conseguisse encontrar dentro de si a paz e a serenidade que o fio mais longo havia conquistado pouco antes de ser abocanhado.
Ainda mais estranhamente, este fio parecia tão único, como se nada tivesse em comum com o anterior. Exceto, obviamente, sua natureza. Quando tremeluzia, imagens enevoadas pareciam se formar, numa velocidade que os olhos humanos seriam incapazes de acompanhar. Imagens que contavam histórias, que se encaixavam como peças de um quebra-cabeças e formavam uma pintura imaculada, cândida e virtuosa.
Porém, um sentimento de melancolia se abateu sobre a velha. A pintura estava inacabada. Olhando bem, mal tivera sido começada. Estavam faltando peças que preenchessem os espaços e que dessem continuidade àquela história. Prestou atenção no tamanho do fio que segurava em uma das mãos e entendeu.
Tão jovem...
Pouca história caberia ali, o que não queria dizer que seria menos significante que o fio maior de pouco tempo atrás. Pelo contrário, aquele que ela segurava, que desesperadamente se debatia, mesmo imóvel, negro e reluzente, tinha muito a mostrar. Mesmo finito como era, não deixava de ser único e belo à sua maneira.
Intrigada, a velha encarava o fio com tamanha curiosidade – a mesma curiosidade que despejara sobre todos os fios ao longo de sua existência. Como que sentindo o olhar pesaroso da senhora de trevas, o fio estremeceu. Imagens reproduziram ao longo de seu diminuto comprimento. Imagens que não estavam de fato presentes, mas que se formavam atrás dos olhos enevoados e oblongos da velha.
Eram cenas que haviam pertencido à alguma pobre alma e cuja vida estava prestes a ser interrompida por aquelas mãos compridas, pálidas e cruéis,
Cruéis? Trata-se de ato cruel, afinal?
cenas que agora seriam compartilhadas com a senhora de ébano, que sem pedir permissão tomaria consciência de toda uma intimidade, de todo um universo próprio e particular que não era dela. Mas era sim. Quando punha a fria mão dentro da cesta e puxava o fio negro, passava a ser dona do futuro e do passado, com nada que fosse mais importante que não o presente. O tempo desacelerava, na verdade, o tempo deixava de existir. Era finito e infinito. Histórias sendo contadas diante de seus olhos, a intimidade sendo vasculhada a cada canto, sem pudor ou orgulho.
A velha passava a ter conhecimento de uma nova sensação. Era eletrizante, percorria cada fibra de sua existência como uma descarga elétrica em fios de alta tensão. Sentia-se como se fosse dona de tudo. Como se fosse imponente e imparável, nada estaria além de si. Ela era o ponto final e nada além. Não haveria de existir qualquer entidade mais poderosa do que ela mesma. Tudo e todos no fim se curvariam a ela, e simplesmente porque tudo chegava ao fim, exceto ela. A velha sempre existira e para sempre existiria.
Olhou mais uma vez para o fio em sua mão, esta coisa pequena e frágil que agora a encarava com desdém, como se a desafiasse a pegar a pesada tesoura e cortá-lo no meio como fizera com seu semelhante.
Vamos, corte-me! Morda-me! Deixe-me em pedaços.
conseguia ouvi-lo dizer no fundo de sua cabeça, em eco.
Enrubesceu de raiva. O calor da ira percorrendo todo o seu corpo franzino, colorindo de vermelho suas bochechas. Sentiu o sangue ferver e correr dentro de suas veias em compasso com o coração acelerado que respondia à adrenalina provocada pelo ódio puro.
Ódio. Sentimento puramente humano.
Suas artérias pulsavam e o som reverberava em seus ouvidos como tambores em um galpão vazio.
Apertou com força o fio rebelde em uma das mãos. Não satisfeita, pousou a outra mão sobre a primeira e apertou com mais força, como se fosse estrangulá-lo. Não seria a tesoura a responsável por cessar a vida deste. Faria com as próprias mãos.
Inferno!
Apertava o fio negro com tanta força que o sangue abandonou suas mãos, deixando-as pálidas. Podia ouvir os ossos do punho rangendo uns nos outros; os dos dedos estalando de fúria.
A velha prendia a respiração durante seu acesso, seu corpo já não era capaz de se concentrar em outra tarefa que não estrangular o pobre fio, que permanecia indefeso e solícito dentro de suas mãos, indiferente ao que acontecia.
cruéis...
Quando seus pulmões queimaram devido à necessidade de ar e suas narinas e boca escancararam para que o oxigênio fluísse por seus tecidos novamente, despertou do estado pétreo e obcecado que adquirira. Arregalou os olhos como estampada surpresa e afrouxou as mãos, o suficiente para que o sangue refluísse por seus dedos e devolvesse sua cor; mas o fio permanecia fielmente preso a elas. A velha fitava o vazio respirando forte, cada golfada de ar que entrava parecia forçar um punhado de gás carbônico para o exterior juntamente com a raiva que se instalara.
Quando sua respiração normalizou, baixou os olhos e encontrou o fio enjaulado em suas mãos. Lentamente as abriu, como uma flor de lótus desabrochando solitária em algum curso d'água, e descobriu o fio negro, inocente, descansando sobre a palma de sua mão.
A velha estremeceu. Ondas de tremor percorriam todos os seus músculos como pesados trens deslizando sobre trilhos. Colocou os braços em torno de si mesma na tentativa de controlar os tremores, mas sem efeito. Seus olhos marejaram, mas gota sequer de lágrima rolou por seu rosto.
Chorar é humano. Recomponha-se!
Concentrada em não deixar as lágrimas seguirem caminho por entre suas rugas e marcas da idade
Infinita. Velha. Fim de tudo o que existia.
como águas percorriam córregos e riachos, enchendo-os até se tornarem voluptuosos rios, profundos e ameaçadores; concentrada para não demonstrar fraqueza e humanidade,
Humanidade é fraqueza
conseguiu também controlar seus espasmos caprichosos.
É fraqueza...
Sua mente clareou finalmente, e como um acidentado em um leito de hospital se recupera de uma amnésia, relembrou-se de seu ritual precioso. Pôs o fio insubmisso – que agora parecia sereno e indiferente, como se nada tivesse acontecido
Vamos, corte-me! Morda-me! Deixe-me em pedaços.
Teria sido imaginação?
sobre a coxa, como fizera milhares e milhares de vezes antes. Alisou-o e acariciou-o, quase maternalmente.
Fraqueza.
Debruçou-se para pegar a tesoura que repousava fria e dura, soberana como um general romano. Pôs os dedos nas aberturas ovais das lâminas. Afastou-os um do outro e escancarou a boca ferrosa e cinza feito tempestade. Levantou a tesoura mais alto, como um troféu, seu brilho cinzento refletindo nos olhos da velha como a lua refletia num lago à meia-noite. Aproximou os dedos com tamanha rapidez que a as lâminas se encontraram num estalar metálico, beliscando o vazio. Afastou-os mais uma vez e repetiu o movimento. Mais um estalar
Som do fim.
e pareceu se satisfazer.
Levantou o fio negro, que voltava a se agitar – imóvel – como que pressentindo seu fim e o que viria depois.
Nada estaria além de si. Ela era o ponto final
Colocou o fio entre as duas lâminas, exatamente na metade, milimetricamente igual à esquerda e à direita.
Éons de experiência.
Separou ainda mais as lâminas para que o corte fosse feito. Apertou os dentes frios da pesada tesoura um contra o outro, pressionando o fio e destruindo cada fibra que o compunha.
Sem surpresas, o fio partiu ao meio e suas metades foram de encontro ao chão de madeira. A medida que caíam, iam perdendo a cor negra e em seu lugar tomava o acastanhado tão conhecido da velha. A cor negra e lustrosa se esvaía como
Como a vida...
como água escorrendo pelo ralo de uma pia. Os, agora dois, fios castanhos jaziam no chão.
E nada além.
A velha olhou para o horizonte, vendo o sol descendo no céu. Parecia uma pintura aquarela: diversos tons de amarelo, laranja e vermelho preenchendo a parte superior da tela. Abaixo, tons suaves de verde recobriam as colinas.
Hipnotizada pelas cores do céu poente, voltou a balançar sua pesada cadeira de ébano. Parecia estar em paz novamente, quase contente por ter se despido de todos os sentimentos que haviam inundado seu corpo e maculado sua mente.
Fechou os olhos e inspirou profundamente. Estava satisfeita consigo mesma. Controlara-se. Não se deixaria cair no profundo abismo da melancolia humana. Não se dera ao luxo de ser quem não era.
Ela era o ponto final
E nada além.
Com um sorriso fino de canto de boca e de olhos fechados, a senhora do ébano enfiou a mão comprida e enrugada na cesta de vime que repousava sobre o chão de madeira. Vasculhou o fundo, serpenteou pela superfície. Fazia esses movimentos mecanicamente, sem precisar olhar ou se preocupar com o que viria. Ela cortava os fios com sua tesoura, mas não os escolhia; não havia preconceitos em seu âmago (não havia tempo para essas pequenezas),
Tão humanas
não havia interesses nem vieses, nem vontades a serem satisfeitas,
Não era cruel
não havia motivos ou razões. Havia
Destino.
a velha, sua cesta e a tesoura.
Parou de remexer os fios. Seus dedos congelaram em volta de um em particular. Com certeza seria semelhante aos outros, negro como fumaça, talvez de um tamanho diferente. Figuras se formariam e contariam histórias silenciosas. Puxou a mão da cesta e carregou consigo seu mais novo companheiro. Sua presa se elevava a medida que o braço se erguia. Abriu a mão na altura da coxa, exibindo um fio maior do que os que havia pegado e sentenciado anteriormente. Estava enrolado sobre si mesmo, como uma cobra prestes a atacar, e mesmo assim, preenchia quase toda a palma da mão da velha. Ao ver o fio, ficou sem reação. Seu coração
Não tenho
parou no tempo: uma sístole interrompida, cada fibra muscular congelada em seu lugar. Imóvel.
Encarou o fio como se fosse um estranho. Um alienígena bizarro vindo dos confins do universo e que decidira se aventurar pela Terra. Porém, aquela criatura esquisita e anormal que se aninhava na palma de sua mão era tão conhecida e familiar quanto poderia ser. A velha não precisaria investigar as cenas que se formariam, não haveria curiosidade nem segredos íntimos para serem partilhados entre os dois. Já bem os conhecia. Não havia segredos. Conhecia o fio alienígena do início ao fim
Ela era o ponto final
Não,
mas não haver-se-ia nada que pudesse ser feito. Afinal, não cabia à velha escolher. As regras há muito haviam sido escritas, ela as obedecia. Levantava a tesoura e
Não era cruel
os cortava, dava fim às riquezas e misérias. Todos iguais no fim. Até mesmo
Não, por favor!
o fio
Dourado
que segurava naquele momento.
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A velha
Short StoryIsolada do mundo, a velha reflete sua própria existência. O suave balançar de sua cadeira, a companhia íntima de seus pensamentos e o seu trabalho monótono e repetitivo compõem a pintura de sua realidade eternal.