Fevereiro
Joana
Agora
Para mim o amor não existe. Fui ensinada desse modo. Esse sentimento só leva a duas coisas: dor e sofrimento. Toda a alegria que vier dele é mero engano e é passageiro. A minha mãe costumava-me dizer que a única alegria que podia tirar da vida era o meu sucesso pessoal e partilhá-lho com outra pessoa era estúpido, o que de certa forma é irónico porque ela vivia apenas para o meu pai. Penso que agora está mais estável em relação a isso. Por vezes o amor abala-nos de maneiras imagináveis, mas como muito batalhado é apenas um efeito colateral do sentimento mais puro e humano que algum dia irá existir. Talvez será por nunca lhe ter conhecido a verdadeira face que o amor de Inês e Tiago era-me indiferente. De maneira geral importava-me que as coisas corressem bem mas nunca o suficiente para imaginar o casamento e a amargura que seria caso eles acabassem. De qualquer maneira, não me pareceu que Inês estivesse suficientemente dentro daquela relação. Ela era esquiva, fria e demasiado independente. Viva para ser ela e para a imagem que criavam dela também. Não tinha o mínimo sentido de dar-se a outra pessoa, de querer algo compartilhado, de não viver apenas para si mas para o outro. Em casa a situação familiar dela era o suficiente para conhecer o amor. Não era perfeita mas bastava. Os pais amavam-se muito e apesar de serem ambos profissionalmente muito ocupados, arrajavam sempre tempo para passar com a filha e darem-lhe todo o carinho e atenção que um filho requer. Ela não se importava. Sentia que tinha tudo aquilo na mão e que não tinha de se preocupar em perder.
A perda veio noutra situação. Um ano antes e pouco antes da sua morte, Fevereiro. Num dia depois de estarmos juntas na biblioteca a estudar, decidimos fazer uma pausa e ir fumar um cigarro. Apoiámo-nos contra a parede da entrada, ela forneceu-me o cigarro já aceso e tentei que o fumo permanece-se o máximo tempo possível dentro dos meus pulmões. Já ela fazia aquilo com uma naturalidade e sexualidade inimaginável, era deveras bonito de se ver. Do meio do nada, Inês quebrou o silêncio de respirações cortadas pelo cigarro.
-Sabes, sinto que os meus fios se estão a partir.
Ingenuamente olhei para a roupa dela á procura de um fio descosido ou assim. Ela olhou para mim e abanou a cabeça em desaprovação.
-Os fios da vida, tipo aquilo que te liga a ela, 'tás a ver?
Interiormente eu não estava a ver nada. Continuei a fumar e apenas abanei a cabeça como se estivesse a entender. Ela prosseguiu:
-Quero entender o porquê de se viver, eu sei que isto é tudo muito bonito, estudar, casar, ter filhos e tal, mas porquê? Porquê é que a vida tem de ser assim?
-Taxa de natalidade? Progresso?
Ela tornou a abanar a cabeça em desaprovação.
-Espero que nunca te apercebas que vives apenas para morrer.
-Eu não vivo para...
O telemóvel dela tocou a meio da minha frase, ela atendeu e respondeu com um ok á pessoa do outro lado da linha. Enfiou o telemóvel no bolso de trás das calças e pôs a mochila azul escura ás costas.
-Eu tenho de ir. -mandou o cigarro para o chão e apagou-o pisando-o com força. - Vou ter com o Tiago.
Foi-se embora e não se designou-o a olhar para trás. Já estava habituada. Ela não era esquisita como eu, era intrigante e aquilo fazia-a parecer ainda mais, viver para a imagem que criavam dela. Ou seria mesmo ela? Queria sempre acreditar que havia algo de mais profundo nela, mas cada vez que chegava mais perto disso mais me queria ir embora e deixá-la.
Quem não se assustava com isso era o Tiago, talvez o único. Ele era o tipo de rapaz que qualquer mãe queria que a filha namorasse. Era bonito, moreno de olhos castanhos claros e usava uns óculos redondos que lhe davam toda a credibilidade de fofinho e do tipo não-perigoso-para-a-minha-filha. Era um ano mais velho que ela, estava no 12 ano em humanidades. Queria ser professor de inglês e jogava basketball numa equipa conhecida. Pouco mais sabia sobre ele, também não era de estranhar, eles nunca andavam juntos. Não sei se era para manter a sua reputação de rebelde que ela só se encontrava com ele em casa ou então no cinema onde ambos entravam e saíam separados. Gabo o rapaz pela paciência de encaixar neste molde de relação inventado por ela para ter o melhor dos dois mundos. Sei que nunca o traiu, mas por vezes fazia-me questionar porque estava ela com ele no final de contas.
Fiquei durante um bocado especada a pensar nisso e a acabar o cigarro, até a ponta já me queimar os dedos e ter de o atirar para o chão chatiada. Levantei-me e segui até casa. Acaso do destino, Tiago morava numa casa uns dois quarteirões antes do meu e ao seguir para casa avistei-o na sua mota parada á beira da entrada para sua casa. Pensei em chamar por ele para lhe dizer olá mas viu-me primeiro e correu ao meu encontro com o capacete na mão. Os seus óculos estavam pendurados na sweat verde escura com o mapa mundo em preto. Não percebi o porquê até olhar para os seus olhos, vermelhos de choro ainda com lágrimas a quererem jorrar daqueles olhos cor de avelã. Limpou os olhos á manga já molhada quando chegou ao pé de mim.
-Joana diz-lhe que lamento muito, okay? Não queria que nada disto tivesse acontecido, eu gosto realmente dela.
Eu não estava a entender nada. Quando o ia questionar sobre o pedido de desculpas já ele se tinha afastado a fungar alto como se estivesse a guardar na profundidade da alma dores que não podem escorrer pelos olhos. E talvez tenha razão. Mas ali fiquei eu novamente especada, sem saber se devia seguir caminho para casa e estudar ou ir dar a mensagem recebida a Inês. Obtei pela Inês, não me apetecia estudar matemática.
Demorei cerca de meia hora a chegar a casa dela pois tive de apanhar um autocarro. Assim que me vi diante da sua porta repensei se devia estar mesmo ali. Se algo se estivesse passado eu não faria a mínima ideia do que fazer, afinal de contas, o que sei eu de amor quanto mais de sofrer por ele. Dei duas batidas na porta e um passo atrás devagar. Rapidamente Inês abriu a porta. Estava de pijama rosa ás bolinhas e tinha uma expressão demasiado neutra na cara, esperava-a ver mal. A Inês nunca está mal.
-O que fazes aqui?
Tinha sido um erro cá vir. Ela estava chatiada. O que teria eu feito?
-Passei pelo Tiago á bocado e ele disse-me para te dizer que lamenta muito e que gosta realmente de ti. -comecei a puxar os elásticos no meu pulso de forma a provocar dor.- Passou-se alguma coisa?
Ela olhou para mim, talvez a ponderar se me dizia ou não. A segunda opção foi a escolhida.
-Vai para casa Joana. Até amanhã. -e fechou-me a porta na cara.
Desta vez não me fiquei, bati novamente á porta, estava farta de ser a vítima, um zé ninguém, queria que ela entendesse que era alguém importante, necessária para a vida dela. Mas a única coisa que saiu depois de ela abrir foi algo do género:
-Não sei porque ainda acho que tens sentimentos, esse coração é pior que a filha da puta de uma pedra.
Dei meia volta e fui-me embora deixando-a sem tempo para resposta. Senti-me aliviada durante um tempo como se tivesse tirado um peso da alma, mas rapidamente me senti mal. Tinha sido cruel, imatura até. Quiz voltar para trás e pedir-lhe desculpa, mas lembrei-me de todas as outras vezes que não tinha pensado em mim e segui caminho. Desta vez não apanhei o autocarro e contentei-me com o pôr de sol e umas músicas escolhidas a dedo para pensar em tudo menos nela. Então pensei no amor, pensei no Tiago choroso e na face imaculada e arrogante de Inês, em como numa relação há sempre alguém que sofre por causa do outro. Por um momento senti-me bem de não ser amada, nunca ia sofrer um dano tão profundo, e depois, numa fração de segundos, quiz chorar bem alto.
Ninguém amaria alguém como eu.
Por fim, vencida pelo cansaço, sentei-me na borda do passeio a olhar para o vazio e tentei encontrar palavras para descrever o estranho sentimento de não ser amada. E não me saiu nada porque nada assim o era. Então chorei. O mais alto que pude e esperei que alguém me ouvisse.
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A minha escolha
Mistero / Thriller"A verdade não depende da história em si, depende apenas de quem a conta." Joana só quer encaixar na sociedade e quando conhece Inês, uma força da natureza, tudo parece certo. Até que Inês é assassinada tendo como única testemunha Joana. Ela ao ten...