NUNO E FLOR

5 2 0
                                    

Borboletas não gostam de gente de concreto. Assim como músicos não gostam de lugares onde o som não propaga. Quem gosta de vácuo é astronauta e olhe lá. Quando escuto algo tento encontrar alguma familiaridade. É uma forma de me proteger do mistério. Logo eu que sempre fui avesso às surpresas. Ao entrar no bar para saber do cardápio, se valeria à pena comer, é meu primeiro dia fora do Brasil, percebi que na América Latina as semelhanças chegam a assustar. O som ao fundo era Ivan Lins, inconfundível. Um bar, o que chamam na minha terra de pé sujo, tocando MPB. Ainda não tinha trocado notas de real por pesos. Ao sair nem tive a chance de ouvir, fui beijado.

- Disfarça, como se a gente se conhecesse, disse a mulher ao meu ouvido.

Estava abraçada a um perfume muito comum. Me beija de novo, ele está olhando.

Tradicional Feira Tristán Narvaja. Antes eu tinha entrado em uma loja pequena que vendia discos antigos. O homem vestia camiseta cinza e shorts alaranjado, a menina de turbante e colar com argolas vermelhas. O casal de brasileiros pedia um disco de Gal Costa, de 1969, para ouvir Divino, Maravilhoso. O que leva a nós brasileiros a sair do Brasil para adquirir coisas brasileiras? Bom, coisa deles dois. Foi nesse momento, conquistado pelo cheiro do churrasquinho de rua, que vi na outra esquina a mulher inquieta, sozinha.

É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte.

Nesse instante ela me puxou pelo braço. Corre! Acompanhei o olhar paranoico da mulher: um homem alto estava perseguindo. Atravessamos a Avenida 18 de Julio bem no momento que um ônibus passou. O sujeito se atrapalhou entre o congestionamento e buzinas. Descemos para a Rambla, a orla local.

Algumas pessoas se exercitavam nos aparelhos públicos. Bem ali, como se não tivesse passado por qualquer desespero, a mulher sentou com as pernas soltas em cima do Rio da Prata e sorriu de olhos fechados.

- Você apertou a minha mão como se fosse pudim. Ah, meu nome é Flor.

Pensei em dizer várias coisas, até me defender. Mas não.

- E você apertou minha boca como se fosse o primeiro beijo. Prazer, Nuno.

Estendi a mão na mesma hora em que Flor me puxou pelo pulso.

- Isso tudo é pra encostar em mim? Que foi? Incomoda você não ser o que toma a inciativa?

É a primeira vez que percebi que ela não mostra um raciocínio linear.

Ela, disse Flor sobre si mesma, é esquizofrênica. O que também me inclui, né? No mais, me chamo Patrícia. E você – ela disse com expressão sisuda, olhou de cima – é o sujeito que ela escolheu hoje.

- Quem é você, afinal?

Ficou em silêncio. Perguntei mais duas vezes e ela não reagia. O pôr do sol nesse ponto do mundo, em pleno verão, estava fantástico. O chão foi se abrindo como uma literatura fantástica de Gabriel Garcia Marques, polaroides caíam variadas, todas retratando minha mãe, minha Nova Iguaçu, minhas músicas, meus caminhos e minha irmã, a única de olhos fechados.

*

Não me reconheço no retrovisor.

- Viu a nova notícia?

Carneiro sempre foi quem mais falava na banda sobre notícias.

- Vi não.

- A vida já é difícil demais para a ficarmos deixando os desentendidos darem ordens, os imbecis passarem por inteligentes, os desconhecidos se meterem em nossas intimidades, os incapazes nos tacharem de inúteis. O mundo, amigo, não tem solução.

Carneiro sempre foi pragmático. Parece piorar com a idade.

- Esquecer pode ser a fórmula da felicidade.

Mas isso não foi real. É um sonho, um delírio. Despertei em uma cama.

*

- Onde estamos?

- No meu hotel que, por um acaso, é o seu também. Que foi? Vai dizer que não lembra do que fizemos ontem?

- Quem é você?

O nariz arrebitou, mas que mulher iluminada. Não faço ideia de quem seja, de onde eu esteja.

- Essa brincadeira não tem graça. Vamos lá comer carne no porto. Vai se arrumar.

- Porto?

- Sabe que todas as coisas possuem olhos? Eu te vejo, você me vê, tua mão me vê, o lençol tá vendo tudo, a janela é os olhos das paredes.

- Meu Deus, quem é essa mulher insana?

- Nuno, insana não. Esquizofrênica diagnosticada com muito orgulho.

Parece que aqui o infinito é realmente um dos deuses mais lindos. É, Renato Russo, sei que uso palavras repetidas – ainda mais por esquecer – mas quais são as palavras que nunca são ditas?

Esqueço por algum trauma? Cometi algo errado? Estou fugindo de alguém? Está fugindo de você mesmo, disse Flor.

Há uma sensação incomum que toma o corpo quando estamos diante do abismo. Não é somente medo, ou seu grau mais grave, pavor, não. É uma espécie de inércia sobre o desconhecido. A memória falha, no meu caso, essa anomalia injustificável, me levava a desconfiar de tudo. Até de mim.

*

Comecei a cantarolar de forma involuntária Valerie, Amy Winehouse, como se fosse esse o nome da uruguaia solícita que me auxiliava na loja de sapatos. Uniformizada e com uma franja exageradamente cortada quase na raiz deixando toda a testa limpa com uma cortinazinha marota como um rodapé ao contrário. Já a menina ao lado chama mais atenção. Usava batom em tom azulado nos lábios finos. O cabelo batia liso no ombro e o jeito de dobrar as pernas com joelho pontudo na hora de experimentar sapatos era um charme. Sentei ao lado enquanto esperava que a uruguaia da franja trouxesse um par pelo qual me interessei.

— Que foi?

— Achei o sapato feio.

— Também achei — ela respondeu.

— Então por que experimentar?

— E quem disse que precisa ser bonito para experimentar?

Um aroma de morango, acho que do perfume que ela usava, misturava com o acre que não sabia de onde vinha. "Foi o seu olhar o que me encantou, quero um pouco mais..."

— Prazer, Nuno.

— Flor.

Tento decifrar quem é a mulher. Se é do tipo que coloca frutas de cera na fruteira, lambe a tampa do iogurte e acorda de madrugada para trabalhar. Se é do tipo que busca laços para embrulhar presentes ou teimosa que morre abraçada ao navio que afunda. Do tipo que dá petelecos na seringa mais por mania que por utilidade. Percebi. Era do tipo mais legal: fala com estranhos.

— Posso te morder?

A BALADA DO ESQUECIDO

Este conto é o prelúdio do romance A Balada do Esquecido (2018, Luva Editora). O livro pode ser encontrado no meu site () e através das redes:

@thiagokuerques (Instagram) / @thiagokuerques (Twitter) / Facebook.com/ThiagoKuerquesEscritor

PRELÚDIO DE "A BALADA DO ESQUECIDO"Where stories live. Discover now