As Reticências

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Abuso dos três pontinhos;

            É um vício de escrita, é verdade, uma maldita preguiça

            Que interrompe a frase pela metade

            Mutilando o parágrafo e prolongando uma vírgula

            Para que o raciocínio não se complete

            Más reticências, tríade indesejada

            Contaminando a folha escrita de lacunas

            O preto da tinta das letras

            Perdendo-se em meio ao oceano leitoso do branco

            Humilhante derrota, essa da inspiração que se esvai

            Numa hemorragia de ar

            Faltam palavras para completar o período

            As preposições esmorecem

            O verbo tomba desmaiado, intransitivo

            O advérbio se acovarda

            O sujeito é oculto, resvalando para o indeterminado

            Há muito que o objeto direto se furtou

            A oração subordinada se rebelou

           

            Nada; apenas linhas, pautas, margens

            E três pontos a prometerem um desfecho vindouro

            O lápis se revolve e o grafite toma o rumo

            Miserável vício, esse das reticências,

            Avatares das invisíveis entrelinhas, para onde escapuliu o significado

            Tudo é incompleto, ausente, truncado,

            Tudo promete de mais e cumpre de menos

            Em todo esclarecimento, há uma senda para o mistério

            Atrás do visível se esconde a assombração do invisível

            Vontade de preencher essas lacunas

            Como se preenche o ícone enigmático duma Gestalt

            De pisar as reticências e se deixar levar

            Abrindo a picada onde o mato se fecha

            Como piloto que enxerga vias numa imensidão de água

            [Deixo a cargo dos leitores o término deste poema]

            Reticências

            Apenas três pontinhos

            ...

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