Houve um tempo em que eu me lembrava de tudo.
Não tudo, tudo.
Tudo aquilo que seria normal a um ser humano se lembrar. Meu nome, o meu endereço. O que havia jantado na noite anterior. Estas coisas.
Parece pouco, mas é muito para mim. São as pequenas fotografias do dia a dia, que se juntam formando o álbum ao qual chamamos de vida.
As minhas fotos se apagaram, como as antigas polaroides de baixa qualidade. As cores evaporaram, deixando pequenos quadrados de papel em branco embaralhados sobre a mesa. Um ou outro ainda carrega um borrão esfumaçado dentro dele.
A minha cabeça funciona agora de uma forma estranha. Eu vou lembrando o que está acontecendo, até que de repente pufe, tudo se apaga. Desaparece.
Vez por outra me aparece uma lembrança antiga, de uma foto que já se via há muito tempo apagada. Ela reaparece como se fosse nova, com todas as suas cores intactas. Desfila por algum tempo na minha memória, e quando menos espero, desbota novamente. O que era mesmo?
Eu não escolho o que vou lembrar, nem quando vou lembrar. Muito menos por quanto tempo. Sou refém do acaso.
Você deve estar se perguntando como sei disto tudo se esqueço até mesmo do meu nome, certo?
Eu escrevo.
Adquiri este hábito, que se tornou a minha principal muleta para enfrentar a minha deficiência. Hoje carrego comigo um diário, onde coloco as coisas mais relevantes. Como uma memória artificial para manter a minha sanidade. As fotos antigas que me surgem do nada e também as coisas que me acontecem dia a dia. Como quem eu sou e quem me ajuda.
Sim, quem me ajuda.
Você já deve ter percebido que as coisas não são fáceis para mim. Desde o acidente, eu tenho passado muitas dificuldades para me manter. Quem dá um trabalho a quem pode, em alguns minutos, nem mesmo lembrar que trabalha ali?
Eu atravessava a rua. Estava nervoso, mas não lembro o motivo. Apenas estava. Minha mente estava distante e eu não percebi o carro vermelho que fez a curva em alta velocidade. Nem atentei para o barulho infernal da freada que antecedeu o impacto.
Eu anoto o que posso em relação a quem me ajuda. É bom lembrar quem são os amigos. João sempre me ajuda. Já me deu comida e bebida, embora eu não me lembre do que comi ou bebi. Também me deixou dormir em sua varanda, quando a chuva veio forte e passar a noite deitado na calçada não era uma boa opção. Gostaria de lembrar onde era a casa de João, mas não lembro.
Chamam-me de Reset. Várias pessoas já me falaram isso. O nome de verdade eu não lembro, e já procurei o diário inteiro e não achei. Achei o nome bacana, embora não entenda direito o que quer dizer. Algo a ver com computadores. Deve ser importante e moderno. Eu gosto.
Não gosto de Ana. Ela passa por mim todos os dias como se eu nem existisse. Pega o seu café na loja e quase pisa nos meus pés na escada. Acho que ela devia ter mais cuidado. Um dia pode tropeçar em mim e cair. Pancadas na cabeça não fazem bem, ah não fazem mesmo!
Esqueci o nome da dona da cafeteria. De novo. Ela sorriu e me disse que não ia contar mais, pois eu me esqueci de anotar. O sorriso dela é lindo. Aliás, ela é linda. Eu sou branquelo. Como nem sempre consigo um lugar para tomar banho, às vezes a fuligem das ruas me deixa um pouco menos branquelo. E o sol no verão me deixa um pouco vermelho. Anotei isso com um asterisco no diário.
*Cuidado com o sol no verão. Ele te deixa vermelho e ardido. Melhor ficar na sombra.
Eu às vezes esqueço, e acabo ardido. E vermelho.
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Reset
Mystery / ThrillerO que fazer quando as suas memórias desbotam como Polaroides antigas? Como a realidade se mostra para quem não consegue seguir o fluxo dos acontecimentos? Reset passa por isto desde o seu acidente. E agora é acusado de assassinato. Como defender-se...