Joanesburgo, 2008
O sol começava a se por por volta de 17h40 da tarde. Ao fundo, montanhas arbóreas da área rural na comunidade de Soweto próximo à Joanesburgo - a maior cidade da África do Sul - começava a sobressair os tons avermelhados que o sol poente irradiava. A cidade é caracterizada pela história de Nelson Mandela, líder Africano vencedor do Nobel da Paz em 1993 e um dos símbolos mais importantes na luta anti racista e contra o movimento Apertheid[1].
O museu de Nelson Mandela é um dos pontos turísticos mais visitados de Joanesburgo, e a partir deste museu, muitas instituições possuem parcerias com trabalhos voluntários para algumas comunidades em toda África do Sul. Muitos jovens intercambistas chegavam e partiam da Hope Health, a maior colônia que abrigava estudantes, profissionais da saúde e voluntários do programa médico na cidade. A saúde nas comunidades africanas era muito escassa, então todo o tipo de ajuda era mais que bem vinda.
Cosima chegara com sua grande mochila de Camping nas costas em um dos polos de acolhimento à voluntários, onde passaria os próximos dois meses. Era uma jovem estudante de biomedicina, estava no 4° semestre e estava iniciando seu projeto de pesquisa sobre doenças auto imune. Foi escolhida a dedo pela universidade de Coimbra - onde morava com seus pais em Portugal - para desenvolver e estudar seu projeto com um intercâmbio voluntário pago pela faculdade. Era uma jovem brilhante de 19 anos, muito à frente da sua turma que possuía o sonho e a vontade de desvendar e curar doenças que ainda não haviam cura.
Foi recepcionada por Mood, uma das voluntárias do projeto, ela quem cuidava da chegada dos novos estudantes e suas respectivas acomodações e atividades. O local era imenso, parecia até um acampamento sofisticado acoplado ao fundo do grande hospital.
Havia uma recepção em um dos prédios principais que dava acesso à todos os outros ambientes. O refeitório ficava à esquerda e seguindo o corredor central da recepção, haviam os inúmeros dormitórios. Cada quarto possuía quatro acomodações com armários encostados na parede dispostos em frente as camas. No local também havia um ambulatório, salas para atividades e algumas poucas salas de aula, um pátio que também servia de estacionamento e em um outro complexo mais afastado e próximo à estrada, estava o grande Hospital Comunitário (HC) e era no laboratório que o hospital possuía onde Cosima iria 'trabalhar' e fazer a maioria das atividades quando não estivesse em campo.
- Acho que te mostrei tudo Cosima! Aqui é um bom lugar para fazer pesquisas. Mas seja forte com muita coisa que verá aqui! Muita gente sai com o emocional abalado. Aqui estão suas chaves, se precisar de algo pode ir até a recepção. Logo conhecerá seus colegas de quarto; alguns foram ajudar na comunidade de Ga-Mogopa hoje cedo, estão prestes a chegar. - Mood sorria e entregava as chaves para Cosima adentrando a recepção. - Descanse agora, amanhã pela manhã passo suas atividades iniciais. Te encontro ás 10h na sala 3 com os demais.
- Obrigada Mood! Estou ansiosa para começar! - Disse segurando suas chaves e alguns papéis para preencher. - Boa noite!
Cosima sabia que tinha feito uma boa escolha. Sempre desejou fazer algum tipo de trabalho comunitário e sorria para si mesma. Buscou se organizar e desfazer as malas, deixar sua cama e seu canto do quarto com a sua cara, no móvel ao lado da cama deixou seu livro favorito para ler sempre que buscasse alguma luz. Tratava-se de um livro com diversos poemas para todas as ocasiões, havia lhe ajudado muito desde o término de seu último relacionamento há 6 meses atrás, sua ex namorada sem mais nem menos a deixou e ainda mandou o recado: "estou com alguém mais interessante" e assim saiu da vida de Cosima do mesmo jeito que entrou, de forma rápida e melancólica.
Um dos motivos para ter se inscrito neste programa era para simplesmente respirar um novo ar, se reencontrar, conhecer e ajudar pessoas e como pensava, nada melhor do que 'fazer o bem' para reaquecer o coração.
Por conta do cansaço de uma longa escala de Lisboa até Joanesburgo, Cosima tomou um banho e se vestiu para dormir, estava sem fome alguma - mesmo sabendo que estava próximo ao horário do jantar descrito no cronograma que recebeu - , se acomodou em sua cama e abriu na página 13 do seu livro favorito, que constava o seguinte poema:
''Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas
Atiro a rosa do sonho nas tuas mãos distraídas''- Mario Quintana.
Acolheu o livro ao peito, as luzes do quarto estavam apagadas, somente sua lâmpada individual acima de sua cabeceira estava acesa. Permitiu-se aconchegar e o sono foi tomando conta de seu corpo, deixando seus sentidos cada vez mais distante...
Adormeceu.
•••
Duas horas depois, chegava ao quarto uma garota loira, de cachos bagunçados e com tanta poeira nas botas que deixava rastros pelo lugar acompanhada de uma garota ruiva, com sardas pela face corada e de cabelos longos e cacheados. Eufórica ainda pelo trabalho que realizaram pela comunidade de Ga-Mogopa, com crianças carentes.
Delphine estava alegre e eufórica pelo pouco que pode oferecer de atenção e carinho para aquelas crianças, mas estava odiando a bagunça que fazia ao chegar com as botas sujas de terra. A loira adentrou o quarto rapidamente, queria tirar a roupa o mais rápido possível e tomar banho para descansar.
No dia seguinte iria conhecer os novos voluntários e iniciar as atividades com os recém chegados. Ela era uma das voluntárias que passou mais tempo em campo e não pretendia abandonar aquele lugar tão cedo. Pediu transferência para a universidade de Joanesburgo - cursava o penúltimo semestre de Biomedicina - para poder ficar mais próxima do projeto Hope Health onde passou o ano anterior no acampamento, seu grau de satisfação em ajudar o próximo não permitia que Delphine voltasse à sua cidade natal, Toronto, no Canadá, então decidiu que iria cursar o último ano naÁfrica do Sul e ainda iria prestar serviços voluntários.
Gracie, a acompanhava falando alto, sobre tudo o que presenciaram. Delphine se deu conta de que havia uma pessoa dormindo com os óculos tortos no rosto devido a posição e um livro jogado no peito, Cosima ocupava a cama que estava vazia há algumas semanas quando dois dos estudantes deixaram o acampamento.
- Shiiu Gracie! Temos uma nova colega de quarto! - Falou baixo, se aproximando da cama - Ela vai acordar se não fizermos silêncio.
- Ela parece nerd... Que livro é esse que está em cima dela? - Gracie já estava se despindo e falando em tom moderado.
- ''Poemas para todas as horas'' É.. ela parece nerd!- Delphine tirou os óculos da morena cuidadosamente, e os colocou no móvel ao lado da cama, puxou o livro rapidamente e o colocou ao lado do óculos, fazendo com que Cosima resmungasse ainda dormindo. Consumida pelo cansaço, não acordou. - Encantadora... - Delphine pensou. Aproveitou para apagar a lâmpada que estava sobre a cabeceira da cama e cobriu a menina.
- O que você tá fazendo sua louca! Vai acabar acordando ela...
- Pelo visto ela está muito cansada. De onde você acha que ela é? Tem cara de portuguesa! Está lendo um livro em português... - Delphine contemplava a face de Cosima que dormia profundamente.
- Sai daí! Vai tirar essas botas sujas e amanhã você descobre. Aposto que ela vai fazer parte da nossa equipe. - Gracie já adentrava no banheiro.
Delphine sentou-se na cama ao lado, tirando as botas e tentando fazer silêncio. Ainda olhava para Cosima, algo naquela garota despertava coisas boas em Delphine, ela só não sabia ainda o quê. Não haviam trocado nenhuma palavra, seus olhares não haviam se encontrado...
Delphine só sabia sobre ela o pouco que acabou de ver.
Um livro de poesias e um rosto sereno, que fazia Delphine sorrir, sem nem saber o porquê.
♫ Quando vi, já veio sim
Tomou parte de mim
Levou embora o meu pesar... ♫[1] Apertheid foi o nome dado ao sistema político que esteve em vigor na África do Sul e que exigia a segregação racial.
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Outrória
Hayran KurguOutrória significa uma história do passado, que aconteceu em outro tempo, passado. História de um passado gostosinho (ou nem tanto) de lembrar