4. Inocência

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Já se passaram dois dias desde que alguém entrou no meu quarto. Meu pai descobriu algumas coisas interessantes, apesar de achar que são besteira: A janela do lado de fora do meu quarto estava aberta e, pelo lado de fora da casa, era muito fácil de se escalar. Mesmo com esses fatos, ele diz que não é possível ser um ladrão ou algum tipo de invasor, porque ninguém iria invadir uma casa só pra apagar as luzes do meu quarto. É incrível como ele é despreocupado, mas consegue ser um pai protetor da mesma forma, afinal, ele anda fazendo patrulhas de noite pela casa, com aquele seu bastão de basebol.
  Eu tento esquecer aquilo e prosseguir, mas é difícil. Mal chegamos nesta casa e eu já tenho certeza de que ela é mal assombrada ou que temos uma horrível vizinhança. Nessas últimas duas noites, barulhos e ruídos me perturbaram e me deixaram aflita, alguns feitos pelo meu pai — que me deixam com medo de qualquer forma, porque eu sei lá se realmente é ele — e outros que eu tenho certeza que não é ele. Eu quero ir embora, mas sei que não posso pedir isso pra eles.

— Tenho que admitir, Joel, agora vivemos bem. — Minha mãe grita da cozinha, do nada. Ela vem até a sala e me entrega o dinheiro para as compras. — Vá você e seu irmão ao mercado.

— Por que você não manda a Naomi?

— Porque estou mandando você. — Ela responde. Essa resposta sempre me dá uma sensação de raiva e impotência.

— Obedeça sua mãe, Lara. — Meu pai a apoia, como sempre. — E eu não te falei, Gloria? Essa casa não é qualquer merda não.

— Olha a boca. — Gabriel disse do sofá, tirando os olhos do tablet.

— Desculpa, filho, mas é a verdade. Antes a gente vivia em um lugar pequeno, sujo e em meio ao perigo, com todo aquele tiroteio todo dia.

— Concordo. — Minha mãe diz, voltando a cozinha.

— Mas eu não. — Digo, pegando na mão do meu irmão e o tirando do sofá. — Vamos no mercado, Gabriel.

  Parto com ele para a porta, ignorando os meus pais tentando me convencer de que aqui é bom para nós. Eu sei que não devo reclamar da nossa melhora financeira, mas não me sinto nem um pouco bem aqui. O mercado mais próximo é de frente a nossa casa, atravessando a rua. Essa é uma coisa que não tenho o que reclamar, pois, pra quem é a empregada da casa, é muito bom não se cansar indo pra lá e pra cá para comprar as coisas.
  Logo ao sairmos de casa, topamos com o pequeno Allison na calçada. O filho mais novo da família, o mesmo que vimos no primeiro dia, anda com seu pequeno triciclo na rua. É 11:50, quase de tarde, e não tem ninguém na rua além dele.

— Enzo! — Gabriel grita para ele, acenando.

— O que? Você conhece ele agora? — Pergunto baixo. Ele me olha com uma cara de "isso é óbvio".

— Sim, o papai e o amigo do papai disseram que agora ele é meu amigo. — Responde. — Enzo! — Grita para ele novamente.

  O garoto apenas para de andar com seu triciclo no meio da rua e encara Gabriel com semblante inexpressivo. O silêncio só me faz perceber como o bairro é completamente sereno e quieto, não se ouve nem mesmo barulhos de carros nem de qualquer casa. Enzo apenas encara-nos com seus olhos grandes, estáticos e profundos demais para uma criança.

— Não vai responder, garoto? — Indago impaciente. Nos cantos de sua boca, surge um pequeno sorriso. — Estranho.

— Vou ficar aqui com ele. — Gabriel me olha sorrindo. Não dá para negar que ele fique com um amigo só porque ele era estranho... Até dá, mas não sem parecer babaca.

— Vai. — Digo, e o empurro.

Gabriel se junta a Enzo, mas ele não trocam nenhuma sequer palavra, apenas se encaram. Se eles fizeram alguma outra coisa, eu não sei, afinal, entrei quase no mesmo instante no mercado. Não duro muito tempo lá dentro, não há muito o que eu deveria comprar, apenas o necessário para ter algo no almoço e sobrar para a janta, e melhor ainda se sobrar para amanhã.
  Saio com duas escolas não muito pesadas do mercado e olho para um lado e para o outro, mas nada de ver o Gabriel e o novo amigo dele. Me preocupo, porém nada tão grande que me faça segurar essas sacolas por mais tempo. São duas crianças, devem estar sendo pentelhas por algum canto do bairro ou, no pior dos casos e no caso que eu me preocuparia, na casa dos Allison.

  De dentro do meu quarto, observo a rua da frente pela janela, esperando Gabriel aparecer logo, mas a demora me aflige. A aflição só me leva a pensar muito, nas coisas que meu irmão possa estar passando ou em qualquer outra coisa. O tempo passa devagar, barulhos do ambiente e estranhos no lado de fora da casa se intesificam e o suor desce frio. É estranho sentir medo de o quê duas crianças de 10 anos podem fazer? Sim, eu sei que é.
  O céu começa a se fechar e nuvens negras começam a surgir com o tempo, mas nada que ameace algo maior do que uma chuvinha. Já é quase final de tarde, quando, finalmente, ouço gritos infantis na rua. Então, corro para a janela para ver.

— Corre! — Gabriel vem correndo na frente, e Enzo vem com seu triciclo atrás dele.

— Gabriel! — Grito da janela, mas ele nada ouve.

  Desço as escadas apressadamente e abro a porta com força, então corro até Gabriel, o puxando e o envolvendo em meus braços. Gabriel respira arfante e dava para sentir isso enquanto o abraço. Enzo, que para logo em seguida, me encara com um rosto inocente.

— O que você pensa que está fazendo correndo atrás dele? — Devolvo seu olhar sonso com uma expressão de raiva. — Hã?

— Que? A gente tava correndo de um moço estranho. — Gabriel olha para mim, se solta de meus braços e vai para o lado do menino. — Qual o seu problema? Estranha...

— O que? Eu estava tentando te proteger! Você que sumiu do nada com esse... Ele.

— Idiota! — Ele responde dando lingua. Enzo apenas me fita em silêncio em meio a toda desordem. — Se quisesse proteger nós, estava lá pra pegar aquele velho.

— Proteger a gente. — Corrigo-o inconscientemente. — E que velho? Nem sabia que existiam outras pessoas além de nós e a família dele.

— O Enzo me levou até um lugar longe daqui. A gente estava tentando caçar! — Diz entusiasmado. — Mas aí o velho apareceu bravo.

— O que? Que história é essa?

— Bem, o Enzo me levou lá, então ele pegou o seu estilingue e começou a tentar acertar os animais que estavam na rua. A gente estava caçando como homens! — Seu entusiasmo aumentava. Olho para Enzo e vejo um estilingue em suas mãos e o que parece sangue nas pontas dos dedos. — Os gatos, cachorros e pássaros só sabiam correr, e quem tentava ir pra cima de nós, o Enzo pegava e pou pou! Aí o velho apareceu, dizendo que não podíamos fazer aquilo.

— Cacete, não é óbvio? Qual o problema de vocês? Não consigo digerir isso.

— O velho só sabia falar e falar, então o Enzo foi corajoso e acabou com a discussão. — Gabriel ri e dá tapinhas no ombro de Enzo.

— O-o que ele fez?

— Atirou uma pedra bem certo nele. — Diz. O choque de uma criança atirando em um idoso consegue superar o de meu irmão contando tamanha crueldade com um sorriso no rosto. Meu corpo se paralisa, não por isso, mas pelo fato de que a minha pergunta foi respondida. Não é estranho ter medo dessa criança de 10 anos. — O velho caiu na hora e demoroooou muito pra levantar, mas levantou bem bravo.

— Gabriel, pra dentro. — Falo, friamente. Pego em sua mão e o puxo para o meu lado.

— Está com medo? — Enzo finalmente abre a boca, mas não só pra dizer isso, mas também pra rir pausadamente.

— Gabriel, entra. — Repito, o puxando e nos afastando do garoto.

— Ele fugiu por pouco. — Ele continua rindo.

  Com uma mão, seguro o braço de Gabriel apertado, e com a outra, palpava a porta para encontrar a maçaneta sem tirar os olhos de Enzo. Ao encontrá-la, abri e caminhei para trás lentamente, prestando atenção naquele garoto. Ele ria devagar e me olhava com aqueles olhos grandes e inocentes de crianças.

— Eu não deixo as coisas fugirem duas vezes. — Diz e levanta de maneira lenta o estilingue.

  Bato a porta.
  Algo bate na porta — uma pedra.

O Medo Mora ao LadoOnde histórias criam vida. Descubra agora