Chegar neste lugar, estar vivenciando este momento não foi fácil como muitos pensaram. As pessoas olhavam para minha vida se achando no direito de julgar e dizer que agora eu e minha mãe tínhamos dinheiro para viajar, como se em algum momento houvessemos pedido ajuda e usado a grana de alguém. Muito pelo contrário. Só eu sei o quanto passamos, só nos duas reconhecemos todas nossas dificuldades. Muita gente teve o privilégio de ter um pai ajudando, mantendo a casa, mas minha vida passou longe disso. Só quem viveu uma situação como a minha entende, e não chegamos aqui sem suar.
Meu pai sumiu do nada quando eu era uma criança. Não me lembrava dele, não sabia quem era, mas também não fazia questão. Vi minha mãe se virar sozinha, sair de manhã e chegar a noite. Me criei sozinha. Era assim ou morreriamos de fome. Muitas vezes minha mãe exausta, chegava com o arroz e o feijão de cada dia para mim e ia deitar com fome. Olhar para essa mulher e querer reconhecer um pai que nos fez sofrer por anos era quase como me pedir para matar a mulher que já morria por mim toda vez que acordava, por um pecado que ela não cometeu.
O quanto de olhos julgadores eu não vi quando ele - conhecido por muitos como meu pai, mas por mim como um mero ninguém - voltou prometendo um lar, mas no dia seguinte só restava eu e minha mãe numa casa pequena, com um aluguel absurdo de setecentos reais. Há quem falou que isso era o valor a ser cobrado, mas para alguém que recebia um salário mínimo não havia como fazer uma despesa digna e viver bem. Faltava tudo, a miséria era nítida, a fome bateu à porta mais vezes do que podíamos contar, mas não faltou amor. Jamais - mesmo nos piores dias - vi minha mãe praguejar sobre algo, ela sempre agradecia, e eu tinha orgulho dessa mulher por ser tão forte mesmo na fraqueza.
Cheguei em dado momento a ter que sentar e ouvir sermões sobre eu ter sorte na vida por ter um pai que me 'garantia' um auxílio de cento e cinquenta reais. Houveram sim motivos para rir da vida, e esse era um deles. Quando eu tive essa mera 'oportunidade', - se é assim que posso chamar de receber essa grana enorme aos olhos dos outros, de um pai que não se esforçava para me ajudar em nada - minha mãe utilizava para comprar uma coisa ou outra quando a necessidade vinha a calhar. Roupas, só de bazar. Comida, só o arroz e o feijão que sustentava tarde e dia. Brinquedos, se não fossem doados eu nunca teria um. E a hipocrisias rolavam soltas a cada ano que passava e eu crescia.
Trabalhar? Trabalhei, e só desse jeito para dar uma guinada na vida, entre cuidar da filha de algum vizinho em tempo integral, ou limpar a casa de uma madame rica do outro canto da cidade. Jamais estaria aqui se não fosse pelo esforço que nós duas fizemos, por cada batalha que enfrentamos, por cada não que precisamos dizer.
Há ainda aqueles que me julguam, dizendo que me aproveitei da morte de um pai, - por conta da grana que parava na minha conta por causa do seguro de morte que ele providenciou - que eu não quis ter por perto, mas a decisão não foi minha, não mandei ele embora com meus dois anos de vida, nem mesmo o ameacei para dar meia volta quando decidiu reaparecer anos depois. Tudo foi escolha dele, e cada centavo do benefício que eu recebia era usado para pagar livro de uma faculdade que eu havia ralado para entrar sem pagar.
Abraço minhas pernas por fim contemplando o mar. Não era a primeira vez de frente para ele, mas era a primeira em muito tempo. Se hoje eu tinha a oportunidade de sair de um estado à outro, tinha a consciência tranquila de que não roubei de alguém. Toda a vista a minha frente custou algo, custou um não para um passeio no shopping, custou outro não para comprar um par de tênis novos, uma comida diferente, uma corrida num carro particular, precisei poupar, e era isso que ninguém entendia. Quem já me viu com pouco acreditava que podia gritar para os quatros cantos que agora eu jogava dinheiro fora só porque era beneficiada por um pai morto. Eu tinha tanto direito quanto o filho de um bandido preso por anos, eu tinha direito porque miséria como a minha jamais desejaria que alguém passasse na vida.
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Minha decisão
ChickLitQuando algumas perguntas não conseguem ser respondidas, o que você faz? E se a resposta surgir de repente, você a deixa entrar? Desire passou por mal bocados a vida inteira. Criada apenas pela mãe, a garota viveu em meio as dificuldades, problemas e...