Capítulo Único

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 Catxuréu era chamada de Deusa da morte desde o momento em que Tupã soprou vida sob as formas humanas, era ela a responsável por guiá-los para Guajupiá no momento em que seu sopro de vida se esvaia. Acompanhava-os na travessia à Terra sem males, onde encontrariam seus ancestrais.

Para si, aquilo era um trabalho que não a incomodava. Todos os bons encontravam o paraíso, enquanto os maus sofriam ainda naquela vida para pagarem por seus erros. Se seus espíritos estivessem arrependidos no momento de sua partida, os guiaria sem rancor até a Terra prometida. Eles eram destinados a um paraíso sem doenças, fome e guerras, já ela, passaria o resto da eternidade vagando pela terra, guiando e recolhendo espíritos que deixavam este plano.

Era algo injusto a certo ponto. Cultuavam Jaci e a Ceuci, mas recorriam somente a Catxuréu, quando lhe pediam para não levar alguém que estava a beira da morte ou para pedirem que acompanhasse um ente morto a Guajupiá. Contudo, ela não se importava, seu coração era grande demais para guardar rancor das criações de Tupã.

Observou as escondidas a humanidade, vagava de aldeia em aldeia e levava consigo os que já não pertenciam mais àquelas terras.

Viu quando os homens brancos invadiram seu território e sujaram suas mãos com o sangue de seu povo. Viu Tupã se revoltando, provocando chuvas fortes e lançando raios assustadores. Viu Iara tentar expulsá-los, agitando os mares e destruindo várias caravelas. Entretanto, Catxuréu não podia fazer nada além de sua função, então, continuava apenas a guiar os espíritos daqueles que morriam durante este processo.

Vagava por suas terras e viu tudo!

Viu os anos passarem correndo. Viu doenças, guerras e destruição. Viu amor, carinho e compaixão.

Nesse processo seu coração se alegrou, entristeceu, partiu-se e recompôs-se.

E durante um dia, depois de muitas coisas vistas e revistas. Deparou-se com algo que partiu, novamente, seu coração em pedaços. Viu uma família de fazendeiros sendo mortos por bandidos. Eles levaram tudo de precioso que encontraram no local, mas deixaram um bebê sem os pais para trás.

Recolheu as almas dos falecidos. Viu o desespero passar por eles ao perceberem que não pertenciam mais ao mundo dos vivos, depois a dor ao se lembrarem do filho e aos poucos a consciência foi deixando seus espíritos. As lembranças da vida passada sendo apagadas e esquecidas, seguindo Catxuréu sem relutâncias até o seu destino.

Ela fez o seu trabalho e voltou para observar o bebê, que chorava em seu berço com o corpo de sua mãe morta ao chão, contornada pelo seu sangue.

Ficou triste ao pensar que logo ele morreria de fome e seria obrigada a levá-lo junto de si.

Ela odiava levar espíritos de crianças. Criaturas tão jovens que ainda tinham tanto a viver. Mas, era a sua função! Tinha que manter a ordem natural, e infelizmente, levar consigo as almas que àquele plano já não mais pertenciam.

Com o coração entristecido, deixou a cabana que os fazendeiros viviam e voltou a andar pelas terras. Voltou a sua tarefa consciente que logo voltaria àquele local, para recolher mais uma alma.

Mas, para a sua felicidade, nunca tivera de voltar àquele local.

Passou por cidades superpopulosas e por pequenos municípios, visitou aldeias em lugares remotos e viu ainda, a pequena parcela de seu povo que ainda tinha fé em si.

Quando foi a vez de visitar novamente, uma cidadezinha no interior de São Paulo, viu algo que a fez sorrir.

Pela janela do primeiro andar de um velho casarão, observou uma senhora ensinando um garotinho de 7 anos sobre os deuses, a criança tinha os olhos arregalados e atentos na senhora. A boca às vezes se abria em um 'O' quando ela contava algo que o impressionava. Ouviu como ele tinha admiração em falar sobre Anhangá e isso a fez entortar a face em uma careta, havia tantos deuses para se admirar e ele escolhia justo aquele que trazia desgraça e cuidava do submundo, o lugar no qual só os perversos iriam após a morte.

Observado pela morteOnde histórias criam vida. Descubra agora