Abandona-me, dor.

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     Esta noite sonhei com o mar. Sonhei com a terrível escuridão que se esconde nas suas profundezas, a escuridão que aprisiona a minha alma  e me amedronta desde aquele fatídico dia. Eu não consigo mais, estou petrificado como se olhasse nos olhos de Medusa. Mereço o meu castigo.

     Acordado e fumando o pensativo cigarro, não consigo impedir a dor que esvai dos meus olhos. Escapa de mim no estado líquido, escapa de mim... Nem no meu não merecido descanso consigo escapar dos meus demónios. Não existe uma maneira de não sonhar com o que eu fiz? Deixem-me! Eu mereço tudo, mas por favor, deixem-me! Não consigo mais lembrar-me do que lhe fiz, da cara medonha que ela fazia enquanto desesperava por oxigénio. Nem a absoluta e magnífica beleza do oceano consegue diluir o pecado que se sucedeu.

    Enfim, a memória da minha filha, a minha querida filha, merece melhor. Talvez o seu destino foi o melhor para ela. É melhor adormecermos na imensidão do juvenil oceano do que sermos impossibilitados de levarmos uma  vida digna devido às nossas origens. Quem sou eu senão um triste e fracassado homem rural? Nada, simplesmente nada. Não podia ajudá-la, não podia criá--la.

     O meu único propósito na vida é sonhar. Imaginar os meus pecados a formarem ramos na água do oceano enquanto desaparecem de mim, como uma tinta negra e pecadora que sai do pincel após pintar, e deixar, a sua marca na tela que é a vida. Talvez um dia isso acontecerá, quando a minha estagnação nesta província rural me deixar. Quando, finalmente, fizer as malas e partir em direção à sepultura líquida da minha filha. Talvez, um dia...

      Por enquanto, apenas sonho com a memória das minhas mãos no tenro pescoço da Margarida.


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⏰ Last updated: May 02, 2019 ⏰

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Tormentas OceânicasWhere stories live. Discover now