Capítulo 1

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Tudo começou quando Emilly Park foi transferida para o grande centro da cidade. Havia conseguido seu primeiro emprego no Banco Real logo que se formou e por dois anos foi a funcionária exemplo. Agora conseguia sua grande promoção. Transferência para uma filial maior, um cargo mais alto e um bom apartamento a poucos quilômetros do trabalho. Tudo conforme os seus planos. Só havia uma coisa que estava totalmente fora de suas expectativas, aquelas irritantes ligações.

Tiveram início poucas semanas após ela finalizar sua mudança e iniciar seu trabalho no novo estabelecimento. Ligações estranhas nas quais ninguém respondia mesmo com sua insistência. Havia apenas o silêncio e um chiado incomum como a estática de uma televisão antiga. Isso irritava seus tímpanos e a fazia xingar por alguns minutos. Porém decidiu não dá muita atenção. Convenceu-se de que era apenas um tolo cometendo um engano bobo, depois imaginou que se tratava de trotes das crianças mal-educadas. Havia finalmente percebido que a maioria de seus vizinhos tinha filhos ainda na idade de aprontar tais inutilidades. Com os dias e a insistência, Emilly forçava um pouco mais a audição, até que conseguiu identificar ao fundo uma respiração ofegante do outro lado da linha. Ficou enojada e quase quebrou o telefone ao lançá-lo contra a parede por mero instinto enquanto sua mente se questionava se aquilo não deveria se tratar de um pervertido. Enfurecida, tornou a pegar o telefone e soltou todo tipo de ofensa sobre aquele estranho. Não deixaria que ele atrapalhasse seus planos perfeitos.

Depois desse episódio, decidiu que não atenderia mais, porém não parecia algo viável. Recebia ligações de familiares e relacionadas ao trabalho que não poderiam ser simplesmente ignoradas. Tentou relevar e apenas desligava assim que percebia se tratar do pervertido. Infelizmente ficou insustentável. Resolveu testar outra opção. Trocou o número do telefone e tomou todo o cuidado em só informar a família, trabalho e outros que fossem estritamente necessários. Resolveu o problema por algumas poucas semanas até que tudo recomeçou. Para piorar, o estranho decidiu se pronunciar, pegando-a totalmente de surpresa em uma noite chuvosa de sábado. Ela acabava de sair do banho quando o telefone tocou. Ainda estava enrolada em seu roupão e enxugava os longos cabelos alaranjados. Hesitou por um segundo, mas lembrou-se que um colega de trabalho tinha combinado de ligar aquela noite. Infelizmente o que ouviu foi a respiração ofegante e finalmente a voz do sem nome. Era calma e monótona, mas gélida e cortante. Fez seus pelos da nuca se arrepiarem, suas pernas falharem um segundo e sua garganta travar. Não teve controle das próprias palavras e permaneceu muda enquanto ele se divertia do outro lado, chamando-a por apelidos carinhosos como se fosse um tipo de amante apaixonado.

As palavras doces arrepiavam sua medula e o conteúdo a aterrorizava ainda mais. Pequenos detalhes aparentemente irrelevantes, mas que faziam parte de sua intimidade. Enquanto declarava um amor irracional ele descrevia como adorava o fato dela sempre puxar repetidamente uma mecha do cabelo quando nervosa, verificar duas vezes se as portas do carro estavam trancadas toda vez que estacionava, colocar os sapatos perfeitamente alinhados na lateral da porta sempre que chegava em casa, assistir um episódio de um seriado específico toda noite enquanto acabava com um pote de sorvete mesclado, sua pequena cicatriz atrás da orelha que ela sempre escondia com os cabelos, a forma como torcia os lábios sempre que seu chefe ligava, seu amor exagerado por cobras e sua total falta de interesse em ter filhos muito bem escondida na desculpa de que deveria se estabilizar financeiramente antes de pensar nisso.

Tudo aquilo não fazia o mínimo sentido para ela. Como ele podia saber até os dias da semana que ela tinha especificado para fazer seus banhos de sais e tratamentos de beleza? Ela precisava desligar. Interromper aquela ligação desconcertante e cortar esse elo que se formou à espreita de sua vista. De um fôlego só ela desligou, mas era tarde. Já estava coberta em dúvidas e medos. Ele havia tecido majestosamente sua teia ao redor da mente dela sem deixar brechas para escapatória. Em um impulso feroz, revirou o apartamento em busca de câmeras ou escutas. Algo deveria aparecer. Breve engano. No meio de lâmpadas espatifadas, espuma e almofadas partidas ela se viu encurralada e a partir daquela noite pesadelos a assaltaram diariamente. Um estranho mar de estranhos e fios enroscando-se ao seu corpo, apertando-a tão forte que rasgava sua pele.

Dias após ela estava exausta e em um estado penoso. Era consumida por uma sombra que a seguia por todo lugar. Havia perdido peso e tinha olheiras profundas nos olhos encovados. Estava sendo completamente controlada, mas naquela manhã pronunciou ao próprio reflexo que acabaria com isso. À noite, quando retornou do trabalho, tomou seu banho demorado e foi folhear um livro ao lado do telefone. Não demorou para ouvi-lo tocar. Jogou o livro de lado e atendeu liberando tudo que tinha acumulado durante esses dias. Não deu chances para que falasse. Quando finalizou sua última ameaça percebeu algo paralisante. A respiração daquele homem estava muito alta e muito próxima.

Só teve tempo de virar antes que tudo escurecesse. Quando retomou a consciência, a cabeça latejava, seu corpo não obedecia, sentia um peso sobre os quadris e algo pontiagudo pressionar seu esterno. Reconheceu o sorriso torto e os olhos acastanhados. Um antigo amigo muito querido da faculdade que sempre demonstrou seus sentimentos românticos por ela. Pensou que aquela era realmente uma forma miserável de morrer. Por fim, sentiu apenas uma dor excruciante no peito antes de se tornar uma casca vazia. Um corpo incapaz de contar tal infortúnio e seu decepcionante fim.


Fora dos planosOnde histórias criam vida. Descubra agora