No pensamento de Jung, a psique não pode ser reduzida a mera expressão do corpo, o resultado da química do corpo ou de algum processo de natureza física. Pois a psique também tem participação da mente ou espírito (a palavra grega nous capta melhor o pensamento de Jung sobre este ponto) e, como tal, pode transcender e, ocasionalmente, transcende a sua localização física. Em capítulos subseqüentes, veremos com maior precisão como Jung deriva a psique de uma combinação de natureza física e espírito ou mente transcendente, nous. Mas, por agora, é suficiente notar que psique e corpo não são coincidentes, nem um deriva do outro. Também o ego, que é predominantemente tratado por Jung como um objeto completamente psíquico, só em parte repousa numa base somática. O ego está baseado no corpo somente no sentido de que experimenta a unidade com o corpo, mas o corpo que o ego experimenta é psíquico. É uma imagem do corpo e não o próprio corpo. O corpo é experimentado "a partir da totalidade de percepções endossomáticas",9 ou seja, a partir do que a pessoa pode conscientemente sentir do corpo. Essas percepções do corpo "são produzidas por estímulos endossomáticos, dos quais somente alguns transpõem o limiar da consciência. Uma considerável proporção desses estímulos ocorre inconscientemente, isto é, subliminarmente ... O fato de serem estímulos subliminares não significa necessariamente que o seu status seja de mera natureza fisiológica, como tampouco seria verdadeiro a propósito de um conteúdo psíquico. Por vezes, são capazes de transpor o limiar, ou seja, de se converter em percepções. Mas não há dúvida de que uma vasta proporção desses estímulos endossomáticos são simplesmente incapazes de consciência e tão elementares que não há razão alguma para atribuir-Ihes uma natureza psíquica". 10
Na passagem acima, observamos que Jung traça a linha da fronteira da psique para incluir a consciência do ego e o inconsciente, mas não a base somática como tal. Muitos processos fisiológicos nunca transitam para a psique, nem mesmo para a psique inconsciente. Em princípio, são incapazes de se tornar alguma vez conscientes. É evidente que o sistema nervoso simpático, por exemplo, é em sua maior parte inacessível à consciência. Quando o coração pulsa, o sangue circula e os neurônios disparam, alguns processos somáticos, mas não todos, podem tornar-se conscientes. Não está claro em que medida a capacidade do ego para penetrar na base somática pode ser desenvolvida. Iogues treinados afirmam ser capazes de exercer considerável controle sobre processos somáticos. Ficaram conhecidos por querer a própria morte, por exemplo, e ter simplesmente paralisado o coração por sua livre e espontânea vontade. A capacidade de um iogue para mudar a temperatura superficial na palma da mão à SUavontade foi testada e verificada: ele podia deliberadamente alterá-Ia por dez ou vinte graus. Isso demonstra uma considerável capacidade para penetrar e controlar o corpo, mas ainda deixa muito território intocado. Até que profundidade da subestrutura celular pode o ego penetrar? Pode um ego treinado reduzir um tumor canceroso, por exemplo, ou dominar eficazmente a hipertensão? Muitas indagações subsistem.
Cumpre ter em mente que existem dois limiares: o primeiro separa a consciência do inconsciente, o segundo separa a psique (consciente e inconsciente) da base somática. Discutirei esses limiares em maior detalhe em capítulos ulteriores, mas deve ser assinalado, desde agora, que se trata de amplos limiares, os quais devem ser concebidos como fronteiras fluidas, não como barreiras fixas e rígidas. A psique, para Jung, abrange a consciência e o inconsciente, mas não inclui todo o corpo em sua dimensão puramente fisiológica. O ego, sustenta Jung, está baseado no soma psíquico, isto é, numa imagem do corpo, e não no corpo per se. Portanto, o ego é essencialmente um fator psíquico.
A Localização do Ego
Todo o território da psique é quase completamente coincidente com a extensão potencial do ego. A psique, conforme Jung a define nesta passagem, está restringida por, e limitada a, onde o ego pode, em princípio, chegar. Isto não significa, entretanto, que a psique e o ego são idênticos, uma vez que a psique inclui o inconsciente e o ego está mais ou menos limitado à consciência. Mas o inconsciente é, pelo menos, potencialmente acessível ao ego, mesmo se o ego, na realidade, não tenha muita experiência de contatos com ele. A questão, aqui, é que a própria psique tem um limite, e esse limite é o ponto em que os estímulos ou conteúdos extrapsíquicos não podem mais, em princípio, ser conscientemente experimentados. Na filosofia kantista, de que Jung era adepto, essa entidade não-experimentável é denominada a Ding an sich, a coisa em simesma. A experiência humana é limitada. A psique é limitada. Jung não era um pan-psiquista, ou seja, alguém que afirma que a psique está em toda a parte e organiza tudo. O corpo situa-se fora da psique, e o mundo é muitíssimo maior do que a psique.