ATO I - Rezando para te pegar sussurando

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"Você consegue sentir a desonestidade
Está em sua respiração
Enquanto você passa por tudo com indiferença
Mas até isso é um teste
Constantemente consciente de tudo
Meu ouvido solitário
Prensado contra as paredes do seu mundo."

Beyoncé – Pray You Catch Me

...

Em anos de turva existência, jamais intentei a ser um homem religioso. Dogmas, doutrinas e credos não atraiam minha essência ou seduziam-me em meio a fracassos. Cri somente naquilo que meus dedos pudessem tocar, na força que meu intelecto e desejo pudessem fluir. Em braços direitos e esquerdos que os que me tem amor podem oferecer. Confiei estritamente naquilo que vejo e sinto. E falhei.

Talvez, eu devesse ter orado.

O relógio digital cor de carmim reluzia num letreiro escuro, apontando duas e meia da tarde. Verão a pino, a bela Jeju comumente se manteria iluminada por raios de sol cortantes e incandescentes, beijando o solo esverdeado e as águas cristalinas que espalhavam-se pela ilha em suas cavernas, praias e parques naturais. Pássaros coloridos piariam no topo das copas das arvores, anunciando a beleza local, encantando enamorados. Vida pulsaria, correndo as veias, espalhando doçuras e risada, envoltas na áurea pacífica de férias. Certamente eu sorriria nesse cenário, abobalhado, fotografando todo fragmento de paz que ali surgisse.

Mas eu não era um homem comum, e hoje, não era um dia comum. Chovia, dentro e fora.

Jeju chorava gotas frias e lerdas, como se céu e inferno houvessem parado somente para apreciar o meu caos, aplaudindo-o com fervor. Caia fina e autoritária, pintando céus e oceanos de preto e cinza, desenhando a paleta monocromática do profundo das águas até o horizonte perder a vista.

Estava gelado, eu sabia. Minha veia dramática não resistiria em abrir o jogo de janelas provençais do chalé somente para observar, necessitando do toque. Acariciei as gotas, fazendo-me delas. Também chovia aqui dentro

Amargo, o riso fugia entre os dentes. Eu era o predador no longo mar, como um tubarão faminto em busca de alimento. Tão seguro em sua majestade que morri como jamais previ: Me afoguei. Morto em sua própria casa. Que tipo de piada esnobe o universo gostaria de me ensinar sobre o amor?

No centro da palma haviam alguns tufos de fios louro mel, estes que reconheci sendo meus. Sorri para ele e depois, a meu próprio reflexo maldito, borrado no vidro embaçado. Minha postura silenciosa brigava com meu próprio eu, e logo, os questionamentos vieram junto a resposta. Que horas a fúria iria me comer? Rompante agressivo repleto de acusações. Um espelho quebrado, enfeite de porcelana ao chão e histeria. Que tal, um bater no próprio peito, gritando para os olhos embebidos em deslealdade meio litro de palavrões?

Não o faria.

Não pela falta de capacidade ou motivos, mas pela letargia que desacelerou meu corpo. Tudo corria lento, como passos de formiga. Poderiam ser duas e meia ou três da manhã, o dia no éden ou o apocalipse repleto de bestas.

Não consigo respirar, mas se pudesse, o que eu sopraria para dentro?

Jeju tornou-se minha rota especial, bem planejada a dedo para a comemoração de dez anos de casados. Yoongi não estremeceu de animação, mas ao pisar ali, se tornou genuinamente animado. O riso morava frouxo na boca, analítico a cada possível exploração e momentos bonitos para viver. Mas o chalé antigo não possuía minha bebida favorita em seu frigobar, o levando ao centro da cidade para que eu pudesse me banhar em soju. Um bom marido, o melhor. Dez minutos após a partida, o destino cometeu sua primeira falha, trazendo torrencial chuva sob o solo da ilha.

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