Vera olhou para fora e viu a morte. Era uma senhorinha corcunda, lenço azul na cabeça, apoiada numa bengala rústica, como um pedaço de pau tomado do chão. Não, essa senhorinha não era Vera. Vera Takahashi era uma enorme halterofilista nipônica com quase dois metros e vinte de altura. Resolveu usar sua força para combatê-la. O soco na maçã do rosto arrancou sangue e a dentadura da velhinha que foi parar na calçada. A morte deu um sorriso banguela para Vera. A mulher contraiu todos os músculos que reluziam, cobertos de óleo, exceto pelo biquíni amarelo minúsculo do tipo asa delta. Alguém devia tirar uma foto dela naquele instante para transformar num modelo 3D a ser imortalizado como a expressão máxima da virilidade feminina. O músculo cardíaco, forte, estressado e cansado deu suas últimas batidas e parou. Vera tombou diante da morte como um imenso saco de carne e ossos.
"Morreu jovem e forte. Viveu intensamente, treinou loucamente, tomou hormônios equinamente, venceu torneios repetidamente. É melhor morrer cedo, pois não se vive para sempre."
Escreveram essa merda aí para colocar como epitáfio em seu túmulo, mas o que foi mais surpreendente é que o autor venceu o concurso anual de epitáfios. É claro, ele morreu de desgosto.
"Artur Joggen — morreu velho e amargurado. Ele sempre quis escrever um romance best-seller, ganhar um Jabuti, mas só colecionou fracassos literários, sendo o seu maior, vencer o concurso de epitáfios."
A morte saltitou e fez uma cambalhota por cima do túmulo de Artur. Ele havia escrito mais de cinco mil epitáfios. Ela vestia um maiô azul que mal dava conta de segurar as pelancas brancas e macilentas em ordem. Tinha ido no dentista na noite anterior, fez questão de ter dentes novinhos para sair nas fotos do enterro de Artur.
— Viva o Artur! — gritou a morte, meio bêbada depois de beber umas quatro garrafas de pinga.
As pessoas que estavam no enterro ficaram olhando sem entender nada. Quem era aquele velhinha louca, avó dele? Apenas um guri deu um viva animado. A morte sorriu para ele deu uma bala azul e disse — Bom menino!
"Ricardo Fagundes morreu jovem demais. Engasgou-se com uma bala logo após o enterro do primo de seu pai e morreu asfixiado. Ricardinho vai deixar saudades. Era um garoto doce, alegre e bicampeão da liga nacional de microscopia eletrônica."
A imagem mais famosa de Ricardinho do Eletroscópio, "Lágrima de cão sob luz matinal" estava exposta no Museu Nacional de Microfotografia em Barreiras/ES. Era linda como um sol para o qual você poderia olhar sem ficar cego. Marcos de Carvalho, diretor do museu, ficou comovido pela morte prematura do pequeno prodígio e montou uma exposição que atraiu pessoas de todo o sistema solar. Houve um pequeno congestionamento no espaçoporto da cidade e o museu não conseguiu comportar todos os visitantes. Protestos violentos se seguiram e no embate entre a polícia montada e os fãs enlouquecidos de Ricardinho, a soldado Alícia, caiu de sua montaria, Paparazi, e morreu após rompimento vertebral seguido de paralisia pulmonar.
"Alícia Carolina Alves era poetisa, mas seu livro "Discordância Máxima" provocou a cassação de sua licença editorial por vinte anos. Sem poder mais ganhar a vida com seus textos belos, porém, polêmicos, conformou-se em tornar-se policial da Força Montada de Ursos Polares do Estado do Espírito Santo."
O enterro de Alícia foi um escândalo transmitido ao vivo na internet e alcançando a incrível marca de 92 milhões de visualizações. Uma velha de burca azul sacou um exemplar proibido de "Discordância Máxima" e recitou o longo poema. As autoridades tentaram impedi-la, mas foram rechaçadas pela companhia de Alícia. #DiscordânciaMáxima tornou-se trending topics mundial em apenas duas horas, e no dia seguinte, o primeiro ministro Dias Moreira caiu. Caiu literalmente da rampa do Congresso Nacional quando uma tempestade de ventanias súbitas passou por Brasília deixando estragos. Ele não resistiu aos ferimentos e morreu.
"Godofredo Dias Moreira, foi o Ministro da Educação responsável pelo Plano Piauí. A venda do estado para o Império Nipônico rendeu ao Brasil o acordo de importação do sistema educacional e a fundação de Noba Tereshina, capital educacional dos Estados Federados do Brasil. Sua legado para com o país é enorme, tendo sido eleito Primeiro Ministro por quatro vezes."
A cremação pública do Primeiro Ministro ocorreu na capital que ele fundou, no alto da escadaria do Palácio da Educação.
— Você sabia que o Primeiro Ministro detestava ser chamado por seu primeiro nome? — indagou a morte, atrás de óculos escuros monumentais e vestindo um longo azul, luxuosíssimo e apinhado de diamantes.
O príncipe regente, Manoel Alberto de Orleans e Bragança retrucou — Mas é claro, ainda mais pelos nipos, chamavam-no de Godofuredo-san.
— Com licença, senhora... — um oficial do governo, todo engomadinho veio até o príncipe — Alteza, a campanha #ConcodânciaMáxima foi um sucesso!
— Já não era tempo, não é, Alencar. Três horas de atraso em relação à previsão do modelo é tolerável. — e dispensou-o com um gesto.
— Vai fazer muita falta, o Dias Moreira...
A velha concordou — Ah, é verdade. Mas não tem jeito, quando chega a hora, a hora chega. Falando nisso, Alteza devo dizer que o senhor está acima do peso. Deveria encontrar um tempo em sua agenda para fazer exercícios antes que seja tarde.
O príncipe olhou intrigado para a velha. Quem era mesmo aquela senhora? Ele tinha certeza que já a vira em algum lugar.
— Tchau, voltaremos a nos ver. — ela foi saindo de fininho se esbarrando em autoridades do governo, aqui e ali. Foi até uma barzinho de sushi, a dois quarteirões do palácio e pediu Sashimi de Fugu, o peixe mais venenoso do mundo. Ela sabia perigosamente e relaxar nos raros momentos em que não tinha alguém morrendo em sua jurisdição. Mas a eficiência das rotas era algo de que se orgulhava. O auxiliar do chef cometeu um erro fatal e uma gota do veneno do Fugu respingou em seus lábios.
"Noryo Nonaka, neo-sansei, morreu buscando seu sonho de abrir seu próprio negócio no ramo da cozinha experimental nipo brasileira. Dedicado aprendiz, infelizmente sofria de síndrome de desastramento crônico periódico. Seu maior feito foi a invenção do sushi de bucho de bode ao molho teriyaki."
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Dona Morte Veste Azul
Short StoryMiniconto surreal que trará estranhamento e talvez um risinho, ou dois, com o canto da boca. Foto da capa por Cristian Newman no Unsplash