Faltam poucas horas para o show começar. Avisar-me que, dentro de uma hora, as luzes se apagarão não me ajuda em nada.
Que diferença faz as luzes acesas ou apagadas para mim?
Ainda bem que Rebeca - minha irmã – está sempre ao meu lado. Nesse momento, a presença dela me conforta e me dá forças.
- Dará tudo certo Raul. Lembra que ninguém mais nos impedirá de sermos felizes. Estamos livres!
E no momento que as luzes se apagaram.
- Chegou a hora Raul. Vai lá e arrasa!
- Obrigado Rebeca. Eu te amo!
- Que Deus nos abençoe!
E ás vezes, passa um filme em nossas cabeças. Ainda na barriga de minha mamãe - a Dona Maria - algumas complicações ocorreram durante sua gestação. Durante minha infância, não é difícil imaginar, o quão áspero ela foi. Alguns contratempos que são multiplicados quando, nem ao menos, possamos enxergar quem nos dirige a palavra.
De tanto me falarem, eu sempre imaginei o quão belo a vida poderia ser e o que isso poderia representar, principalmente nos meus momentos de maior angústia; Ouvia muitos falarem de tais belezas. - Aquela cachoeira. - Aquela pintura. - Que linda essa foto. No entanto, para mim, sempre fora uma silenciosa escuridão.
E eu sentia tudo o que me falavam; minha imaginação é tão fértil, posso imaginar tanta coisa que possa ser bonita aos olhos das pessoas. Penso que, se um dia eu pudesse enxergar de verdade, iria até me decepcionar. O que já criei dentro de mim, me basta.
Mas preciso falar de minha irmã, Rebeca. Ela passou a tomar conta de mim, desde a morte de nossa mãe. Ela sempre foi fã de música clássica, estilo que passamos a amar, quando ouvíamos a Dona Maria, no piano. Sim, nossa mãe era pianista.
Em nossas conversas, falávamos de tudo. Principalmente sobre música. E certa vez – ainda criança – me maravilhei com o que estava escutando.
Na ocasião, perguntei de quem era e o quanto gostaria de tocar.
- É Chopin.
- Quem sabe Raul. Tocar só depende de ti.
A Rebeca consegue dar cores aos meus sonhos. Sim, eu sei que existe e imagino todas elas.
O estilo musical de uma pessoa é bem particular. Embora influenciados pelos mais próximos, nunca será o mesmo para todos. Ainda assim, como na política, futebol ou credo religioso possamos sofrer o desrespeito daqueles que não concordam. No caso, nosso padrasto, Alfredo.
E certa vez, em uma de nossas inúmeras conversas, ele – nosso padrasto – nos flagrou no auge de um papo cabeça e musical.
Não poderia ser mais desanimador do que escutar que eu não posso. "Raul, tira essa ideia da cabeça. Tu não pode! Como iria enxergar as teclas do piano? Quer passar mais vergonha ainda? Deixa de ser ridículo! "
E eu sempre me lembro dela. Minha mãe - A Dona Maria.
Ela era pianista e professora de música. Morreu tão jovem. O câncer é tão triste. Cruel demais.
Lembro-me de quando tocava para mim, difícil explicar o que eu sentia.
Mas o fato de não enxergar aguçou meus ouvidos. Estou à frente de muitos músicos. Tenho o ouvido, praticamente, absoluto e já sabia identificar as notas que a mana tocava, antes mesmo de ter aprendido a tocar algum instrumento.
E Rebeca tomou o lugar de nossa mãe. Com novas responsabilidades e, muitas vezes, reprendida por nosso padrasto que, muitas vezes usava a violência para tal.
Mas, de alguma forma, passei a praticar piano. Às escondidas. Mas eu praticava, enquanto nosso padrasto trabalhava na obra. E assim aprendi muito. Aprendi também a mentir ou omitir o que não era importante aos outros.
Sendo Rebeca, a minha primeira professora de piano, eu usava o dia para estudar e tocar. O tempo passava e algumas coisas melhoravam e outras nem tanto.
Quanto mais eu aprendia piano, mais ignorante, seu Alfredo, se tornava. E suas palavras me feriam e muito. Preferia levar um murro a ter que escutar algumas coisas. Muitas vezes, me sentia abaixo de um ser miserável.
Com o passar do tempo tudo aumentava, potencializado por nossa vontade de vencer, nossos ódios e meu engrandecimento musical que, mesmo às escondidas, melhorava em muito.
E em determinado momento aconteceu o que era esperado. Eu superei minha mestra.
- Nossa Raul! Essa obra é de Bach e tu foste perfeito. Nem eu consigo executá-la com tamanha precisão e sentimento.
Elogios se multiplicavam e outras pessoas passaram a me conhecer. Eu não era mais o ceguinho, filho do bêbado. Eu era o Raul. O Pianista.
E comecei a fazer amigos. E quando menos eu esperava – graças a Rebeca - um show foi marcado. Expectativas de todas as partes, minha chance de vencer. Meu Deus, e agora?
Só me restava treinar mais e mais. E assim o fiz.
E na véspera da apresentação, logo após, mais uma agressão de nosso padrasto. Rebeca decidiu dar um basta. Ela não quis me falar nada, nem o que faria, apenas:
- Raul. Hoje nos tornaremos livres de tudo. Livre desse babaca, Livre para alcançarmos voos maiores. Livre para sermos felizes.
Com essa promessa, me levou, no dia seguinte, ao teatro municipal. - Dará tudo certo Raul. Lembra que ninguém mais nos impedirá de sermos felizes. Estamos livres!
E no momento que as luzes se apagaram.
- Chegou a hora Raul. Vai lá e arrasa!
- Obrigado Rebeca. Eu te amo.
- Que Deus nos abençoe Raul!
E as primeiras notas ecoaram no teatro São Pedro. Quase ao mesmo tempo, em que a polícia aparecia para levar Rebeca. Suspeita pelo assassinato de nosso padrasto.
Nem todos livres.
Mas ambos felizes.
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O Pianista
Short StoryFaltavam poucas horas para o show começar e Raul queria provar, principalmente para ele mesmo, que seu padrasto estava errado. Raul era cego, mas também era um pianista. Um ótimo pianista. Com apoio de Rebeca - sua irmã - ele faria seu primeiro show...