Estou aqui. Agora. Não sei o que sou, nem sei onde estou. Estou perdido numa infinidade de pensamentos e observações, numa verdadeira encruzilhada mental. Uma teia que eu próprio construí e subitamente me prendeu.
Observo tudo em meu redor. Olho para baixo, para o meu próprio corpo, deitado a jazer neste "ser ou não ser", num partir ou não partir derradeiro que me arrasta para os confins do tempo. Sou um mero isto que ninguém pensa existir. Transcendo o físico. Pairo, mais leve que o ar, por cima do meu corpo. Avalio-me. Poderei dizer que me autoanaliso, mas o que há para analisar numa figura espectral, fantasmagórica que se limita a pairar e a observar. Eu sou tudo em todo o lugar. Eu transcendo o tempo. Não sinto, apenas observo. Não intervenho por não ter esse poder que apenas aos vivos está confinado.
O corpo que ocupa o espaço aos meus pés é real. Sou simultaneamente eu e eu não o sou. Talvez eu seja tudo aquele que aquele corpo imóvel e cuja única preocupação é respirar quis ser em tempos lúcido e leves dos constrangimentos físico que, neste momento, me assolam. Olho para baixo. O que vejo? Um amontoado de osso e carne. Sem espírito. Inerte, imóvel, rebaixado ao mero estatuto de "espaço", de "algo". Pensando melhor, eu talvez seja a minha consciência. A única coisa viva dentro de mim. O meu corpo, que sempre fora a minha prisão e à qual não posso escapar (todos os meus caminhos, todos os meus destinos vão dar aquela prisão corpórea, grotesca, que não vive, mas segue – o quê? – nem ela sabe, apenas segue o que quer que seja). Não lhe escapo, mas esta prisão tornou-se incapaz de reter. Ou melhor, foi tornada incapaz de me reter por esta luz áspera que cresceu nos meus olhos. E foi aí que escapei.
Os médicos fazem de tudo para me acordar. Eu faço de tudo para renascer, mas ao mesmo tempo não faço nada. A última decisão é minha e só a mim me pertence. A azáfama dos médicos e das enfermeiras merece a minha compaixão, mas todos eles perdem o seu tempo com este ser apático, com este algo que se coloca no caminho do destino e que nada mais é do que uma mera pedra no caminho de quem passa, um obstáculo à sua passagem e à correria existencial. A minha família? Sempre julguei tê-la. Um pai, uma mãe, uma irmã. Que é deles feito não sei. Desde que os médicos trabalham freneticamente para me trazer de volta, para me confinar de novo aquela máscara social que se assemelha à dama de ferro. A verdade é que estou sozinho. Talvez sempre o tenha estado mesmo na multidão citadina, mas nunca o percebera
Descartável. Essa será a melhor palavra. O mundo em meu redor é apenas um ruído insonoro em surdina. Está lá e não está. Ouço tudo o que os não se atrevem a verbalizar. Mas este mundo esmaga-me. Sou um mero espírito que vagueia pela infinidade do ser. Talvez seja a materialização da verdadeira aspiração messiânica e espiritual que todos os profetas tentam atingir.
Mas sou condenado. Condenado a sentir e a experienciar, a observar pura e exclusivamente. Não posso agir. Não posso opinar. Só me resta observar, refletir e pensar. Sempre o fiz, nunca verbalizei, mas de certa forma este sentimento de impotência e de inércia não me é estranho. O que se segue não é um drama ou um romance. São relatos: relatos de quem observou e pensou demasiado quando se movia, mas que não o podia mostrar. Isso era ser fraco. Agora estou parado, sou a personificação do fraco. De que me resta lutar? O que me move para tal? A memória de um passado irreal e de um futuro idílico e inatingível, projeção exclusiva do meu desejo e da minha vontade? Não quero voltar a ser preso sem pelo menos apresentar as minhas cartas: as minhas observações simples e reflexivas, o meu mundo lunático que ninguém nunca viu.
Sou um espírito que reinterpretará a realidade e os seus ângulos. Os objetos mais simples darão vida ao pensamento mais decrépito. Relatarei, refletirei, mas nunca agirei que isso não é comigo, nunca foi. Mergulhem nas profundezas do ser comigo e talvez percebam a realidade de quem nunca viveu verdadeiramente