089.

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Cheryl's point of view.

Subi os degraus apressada, recebi do motorista um aceno breve e um sorriso quase reconfortante. Já havíamos conversado em algumas ocasiões, onde era impossível chegar até o outro lado da catraca, e então ficava pendurada em algum apoio de mão próxima à porta.

Ele tinha cinco filhos, vivia em um bairro para imigrantes mexicanos e se chamava Carlos. Cabelos grisalhos, corpo magrelo porém suas feições eram amigáveis. Faltava parte de um dente, era coberto por ouro. Não deixei de achar curioso, dentes de ouro eram caros e, segundos suas inúmeras reclamações com a situação financeira, não parecia de acordo.

Dessa vez, estava vazio. Pude escolher a última fileira de dois bancos para sentar sozinha, ficava próximo à saída e assim evitaria que ganhasse empurrões caso ficasse lotado. Outra raridade. Estava frio, fazia -5° lá fora, e apesar do ar deixar o ambiente do ônibus levemente aquecido, ainda sim tinha uma fina camada de neve para lembrar o quão difícil é ser estudante de turnos da manhã.
Joguei a bolsa sobre o colo, agarrei o celular do pulso lateral e agradeci por desta vez não ter esquecido meus fones. Não tinha mensagens, o que se tornou quase comum quando sua única amiga é também irmã mais velha. Suspirei, faltava quarenta minutos de caminho até a faculdade e eu nunca entendi realmente porque morava tão longe, mas era minha única opção.

As primeiras notas de Fire On Fire começaram a tocar, quase automaticamente estiquei a ponta dos pés. Uma risada baixa escapou, atraindo a atenção da única outra alma viva presente como passageira ali: uma senhora beirando a morte, Berenice. Ela também sorriu, e eu retribui. Mas, não podia evitar. 16 anos de balé causavam em nós bailarinos, sérios problemas mentais, como estar pronta para dançar a qualquer batida mais agitada.

O ônibus parou, encarei o vidro para examinar a nova estação em que estávamos e conclui, ainda que intrigada, ser um bairro residencial no qual não era costume parar. Era um bom bairro.
Direcionei o olhar para a catraca, esperando saber quem havia pegado um ônibus morando em um lugar como aquele.

Mas, já escutaram que a curiosidade matou o gato? Pois bem, ele não morreu  nesse caso. Por muito pouco.

De início, apenas notei que não se tratava de uma velha prestes a morrer, e sim alguém bem mais novo com cabelos escuros e mechas azuis. Essa procurava em sua bolsa de forma quase agressiva algo, e apenas quando entregou o dinheiro para a passagem anotei mentalmente que era desorganizada. Quem em sã consciência espera um ônibus sem o dinheiro em mãos?!
Depois, se voltou para o fim do bancos. O ar deixou meus pulmões assim que notei o tom de seus olhos, e o quão lindo era em contraste com a pele branca demais e lábios em tom escuro de um batom forte. Também usava roupas escuras, casaco pesado e botas de neve em marrom. Parecia ter mais frio que qualquer um ali.

Não sei dizer por quanto tempo encarei, apenas que fui notada. E quando ela voltou o olhar em minha direção, ao passar por Berenice, senti minhas bochechas pegarem fogo. Maldito coração frágil.
Desci o olhar para o chão, apenas para escuta-lá sentar dois bancos para trás. Segurei a respiração, pois não estava nada confortável. E, apesar de ter noção do quão idiota parecia, usei a desculpa de perguntar à Berenice sobre seu início de dia para olhar uma, duas, três vezes para a menina. Em duas delas, ela me pegou.

─ Sua mãe ainda faz bolinhos para fora, querida? - indagou a idosa, tinha um sorriso nos lábios. Tudo que consegui fazer, foi devolve-lo de modo quase triste.

─ Minha mãe faleceu, senhora Morgan. - murmurei. Isso fazia dois anos, e Berenice Morgan Gellies foi a única além de mim, minha irmã e meu irmão que esteve no enterro. Ainda sim, seus filhos insistiam para que falasse a verdade direta toda vez que aquela maldita doença deixasse suas lembranças bagunçadas. ─ Mas Lydia faz bolos para vender, e Jason entrega. Lembra? A senhora pediu dois ontem. Disse que foram os melhores da semana.

Cometei, e ela riu. Automaticamente, me voltei para a garota mais uma vez. Ela prestava atenção em nosso breve diálogo e antes que pudesse evitar, sorri. Queria um buraco para me enfiar, mas sorri. Eu sorri para a estranha, porém muito bonita, garota do ônibus.

─ Onde a senhora vai hoje? - fugi, mais uma vez, de seus olhos. Tratei de prolongar a conversa, assim poderia fingir ser apenas gentileza. E talvez ela acreditasse. ─ Luke comentou sobre suas visitas para tia Vera, está indo lá?

A senhora concordou, um sorriso breve nos lábios.
Notei com o canto dos olhos que a garota estava escrevendo em um pedaço de papel sobre a bolsa.

─ Eu disse que iria ver aquela velha insuportável até o último dia de vida. - concordou, e eu não consegui evitar a gargalhada. "Tia" Vera era irmã de Berenice, gêmeas. A diferença era que com Vera, o destino foi mais cruel. ─ Está perto do meu ponto. Diga para sua irmã que Vera está sonhando com o bolo de banana a dias!

Concordei, ela se ergueu e veio em minha direção com auxílio da barra de ferro. Beijou minha testa, como toda vez fazia antes de deixar o ônibus. Apertou o botão laranja no canto da barra e não muito depois, o motorista parou.

─ Não encare desconhecidos, Cheryl. Pode ser uma saqueadora.

{...}

Dez minutos para minha parada, e a menina se mantinha ali. Curioso, considerando que o campus era o último ponto da linha com apenas uma única parada depois. Ou ela desceria comigo, ou uma depois de mim.
Estava quase distraída com minhas próprias unhas, quando senti o banco ao lado ser ocupado. Estranho foi não ter notado o ônibus parar.

─ E se eu fosse uma saqueadora? - indagou a voz de tom bonito. Mas, quando ergui o olhar, desejei não ficar tão vermelha quanto tinha a noção de estar. A menina riu, trazendo parte dos cabelos escuros com mechas azuis para seu rosto. ─ Relaxa, não vou te roubar. Eu acho... seu celular é legal.

─ O-o que? - merda. Merda, merda, merda. Gaguejar é para apaixonados e condenados, eu não estava na lista!

─ O celular, ruiva. - exclamou, direcionado o olhar para o aparelho sobre meu colo.

─ O-obrigada. - murmurei, ainda desejando ser engolida pelo chão.

─ Você fala assim mesmo? E é sempre tão vermelha? - indagou, um sorriso que ousei classificar como debochado.

Pisquei algumas vezes para recobrar a postura, e então neguei.

─ Você tem cara de saqueadora. - soltei, sem sequer pensar. Que ótimo, além de gaguejar, encarar até fazê-la vir aqui, ainda disse que parece com um assaltante. ─ Oh, Deus... Não era isso, eu quis dizer qu-

Ela riu mais uma vez, dessa vez alto.

─ Você não é a primeira que diz isso, acredite! - estendeu a mão. ─ Jade West, ruiva. E você?

Encarei a palma estendida e seu rosto antes de realmente apertar em cumprimento.

─ Cheryl Blossom. - concordou brevemente, e por segundos pareceu ponderar sobre meu nome.

─ Eu tenho cara de saqueadora, você tem nome de pirulito. - deu de ombros. ─ Bem, não é ruim.

Apertei as sobrancelhas. Ela estava julgando meu nome? Era um bom nome! Quando não incluía "Marjorie" e "Martin" junto.

Desviei a atenção para o vidro, e por pouco não cai sobre ela com o pulo que dei. Estava próximo demais da parada, perderia meu ponto e acabaria andando por quinze minutos. Me ergui, a menina observou um tanto confusa.

─ Tenho que ir, Jade West. - brinquei, me sentindo quase aliviada. Ela assentiu, me aproximei da barra e apertei o botão. ─ Foi um prazer.

─ Quem ainda diz isso?! - exclamou assim que as portas se abriram. Antes que saísse, ergueu a mão e me entregou um pedaço rasgado de papel. ─ Espero que saiba usar o celular legal.

Sorri, dei um pulo para fora do ônibus e senti meu coração errar uma batida. Fraca não era nem a palavra para mim naquele momento. Conheci por trinta minutos e já estava querendo esquecer a faculdade e seguir o ônibus para ver onde ela iria descer.
Porém, tomei meu rumo entre o campus congelado. Tinha um longo dia na ponta dos pés, apesar de saber que nada iria realmente me tirar dos momentos daquela manhã.

Suspirei, empurrando a porta de madeira enquanto anotava o número com a mão livre. Deixei seu contato como "saqueadora do ônibus 089", ri comigo mesma como se fosse extremamente engraçado.

Por fim, anotei mentalmente que deveria chama-lá mais tarde. Na hora do almoço, talvez.

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