Ode to Taraxy

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São 5h21min da manhã, terça-feira do outono gaúcho. Está frio e não consigo dormir, meu corpo tem reagido de uma forma diferente a tudo isso, um simples movimento na cama ele responde com uma taquicardia repentina como se tivesse correndo de um leão. O curioso é que não sei do que ele está reclamando, afinal, academia todos os dias, faculdade, amigos e uma relação amorosa de dar inveja a qualquer escritor romântico. Uma dose de vinho todas as noites, uma festa por mês, consultas com psicóloga e um ensaio com a banda por semana. Sou uma menina saudável no auge dos meus vinte anos. Quero adotar alguns filhos, mas novos - infelizmente possuo certo narcisismo materno - para que possam ser influenciados pela minha personalidade. Meu futuro está certo nesse país incerto. Basta continuar a faculdade, existem diversos caminhos que teria o prazer de vivenciar e deixo para que o futuro decida o que irá acontecer, sem qualquer sofrimento, gosto de possibilidades em aberto. Quero continuar com minha mulher até o final da vida, começamos a namorar cedo, aos 14. Caso não aconteça, tudo bem, quero que ela seja a mulher mais feliz do mundo e dizer que ela fez parte de uma parte muito importante da minha vida. Sinto que estou a um passo da completa ataraxia.

Tenho sonhado ultimamente com uma criança, um menino de olhos castanhos e cabelo cacheado. Ele é uma figura antagônica a mim, a preocupação com os futuros e com o mundo o cegam desde que se conhece por gente. Rotineiramente é uma criança desenvolvida e saudável, quando o fazem lembrar e questionar 'o que existiria se nada existisse?' seus olhos são forçados a fechar e encarar sua pálpebra, onde tenta - e sempre fracassa - não encarar a escuridão. Conforme vai conhecendo esse medo, mais o teme. Qualquer fala pode ser um gatilho, desde um simples cachorro morto na estrada ou um idoso que está provavelmente com dias contados. Houve um sonho que em uma janta com pessoas mais velhas com, no mínimo o triplo de sua idade, o menino interrompe a um momento de riso:

Como vocês lidam com o fato de que vão morrer em breve?

Todos ficam chocados com tamanha sinceridade e inquietação. Seu pai o explica que ninguém estava preparado para aquilo e que é mal educado indagar as pessoas como se elas fossem morrer em breve, ainda mais sendo uma criança. Por sorte, o avô do menino responde que não teme morrer em breve, só gostaria de aproveitar mais a vida, descansar antes do final descanso e que essa inquietação era normal na idade do menino, que era uma questão de tempo. Eu entendo completamente o que o avô desse menino que habita meu subconsciente quer dizer. Mas para ele, não é suficiente, é forçado. O clima não foi o mesmo pelo resto da tarde, não devo mais questionar isso aos outros, pensou o menino. Só depois desse dia, com anos de pesquisa e reflexão, o menino consegue aprisionar esse sentimento em um pote dentro de sua mente. Foi capaz de juntar toda a escuridão em só um pote do tamanho de sua mão e agora era capaz de temperar à sua vontade a sua existência com escuridão.

O menino descobre que a escuridão se multiplica quando adolescente e agora um pote pequeno já não era suficiente. É hora de transferir para um pote maior. Ao transferir para um pote maior, derrubou um pouco sobre si mesmo. Trazendo-o a um estado diferente, era como se sentisse a escuridão correndo por seu corpo. Durante diversos dias teve que conviver com ela, não havia como não encarar a escuridão todo o tempo, afinal, naquele momento ele era a própria. A rejeição do corpo foi tamanha que acabou contaminando algumas pessoas próximas. O acidente terminou graças ao conhecimento que ele tinha dela, sabiamente, foi capaz de terminar com o episódio utilizando-a para pintar partes de uma folha, escrevendo uma mensagem sobre uma mulher que não conhecia. Publicou o escrito e ganhou muita atenção de amigos e de algumas meninas. Esse sentimento de publicar sua escuridão foi criando cada vez mais o hábito de derrubar propositalmente em si uma pequena dose para se tornar a escuridão e falar por ela. A escuridão fala com todos, afinal, é comum a todos. Os escritos dela são simples e incompreendidos. Agora mais velho, ele conseguiu ganhar notoriedade dos intelectuais à sua volta, foi capaz de multiplicar a escuridão de todos ao seu redor, cada vez mais falava com a escuridão crescente de seus ouvintes, se tornava mais importante pois era o único que falava o que todos&ninguém gostariam de ouvir.

Esse menino do meu sonho inclusive se comunica comigo, mas não o compreendo. Acredito que esteja querendo lidar com sua escuridão e dor causando o mesmo nos outros. Entretanto, mesmo assim, ele me detém enorme atenção, prova disso é que estou pensando sobre ele. Voltando ao sonho, conforme o tempo passa, o menino repete a si mesmo que é um profeta da escuridão, o messias do abismo que todos cairão. Nesse processo e devido à um desentendimento, reúne uma dose quase letal daquele pó para acordar sua namorada do sonho de um final feliz, a pureza da menina nunca seria a mesma depois daquilo, mas agora ele poderia ser visto como um messias por sua amada, a coincidência mais importante da existência - completamente - banal. O menino poderia fazer o que quiser, não se importando com qualquer um, afinal, era abençoado em um mundo de macacos desacordados, seu papel era acordar a todos com essa dose de morte líquida.

É com nojo de si que ele percebe que ser rei de nada não é interessante a ninguém. Ser mensageiro do nada é inútil, afinal quando ele governar, não haverá nenhum dos discípulos convertidos por ele lá, ele mesmo não existirá, não haverá desacordado ou acordado. O arrependimento por ter causado dano irreparável em todos a sua volta é pequeno perto da culpa de ter feito aquilo a sua amada, agora sua mulher tem escuridão em sua garganta, impedindo-a de falar. A escuridão teve efeito diferente nela, ao invés de se instalar no cérebro, ela se alojou no meio de seu peito. A escuridão consegue falar com ele sem a permissão dela e quando ela fala, a escuridão fala junto. Semanas depois da menina considerar acabar com a casa dessa areia negra, que deixaria a escuridão órfã para sempre, a menina já não distinguia-se dela com clareza. O menino reage querendo eliminar de si aquele pote maligno que havia trazido tanta desgraça ao seu redor. Ao abri-lo, é surpreendido por um golpe do seu destino. Uma espécie de carma - viciado por aquela areia - o empurra para um abismo cheio de escuridão e agora não há mais pote. Ela está toda sob seu corpo, correndo em suas veias e bloqueando algumas sinapses. A escuridão é tamanha que entra embaixo de suas unhas e costuma ser expelida pelos olhos, nariz e boca. Tudo isso acontece enquanto estavam voltando da faculdade. Ele morreu naquele dia. Sua mulher também.

Por sorte ele pôde consultar bibliografias antigas sobre acidentes do tipo que indicavam lutar contra a escuridão mesmo sabendo que irá perder. Chegou a consultar corvos sobre a volta de sua amada. Até aprender uma lição valiosa de que embora a escuridão exista, a luz também existe e que devemos buscar abrigo nela. Depois de alguns anos provavelmente, a escuridão irá ser imperceptível devido aos baixos níveis.

Não tenho mais informações sobre o garoto ou sua mulher. Pude vislumbrar um futuro certo e isso é terrível. Sou capaz de entender a reclamação de meu corpo e sei o que ele quer. São 5h21min e sei que é preciso matar minha mulher e me perder novamente dentro Dela.

Ode to TaraxyWhere stories live. Discover now