Capítulo 14 - Parte Dois

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Ainda estou perdida em devaneios quando escuto a conversa renascer.

- Desculpem a demora.

Ergo a cabeça para Frida, que se acomoda ao meu lado com um copo de chá fumegante e uma tigela de mingau, iguais aos que como. Ela sorri em minha direção, esticando a mão para pegar um dos pães na bandeja no centro da mesa comprida.

- Dormiram bem? - A indagação dela gera uma involuntária careta de minha parte. - Você está cheia de olheiras, parece que não dorme há dias. O que foi?

Chiara vira-se para me fitar ao ouvir a pergunta de Frida. Quando vê que eu não respondo, ela se inclina um pouco para frente, chamando a atenção da morena ao meu lado.

- Ela não costuma dormir bem quando muda de cenário.

Olho-a com a boca franzida, contrariada com sua resposta que julgo ser desnecessária. A resposta de Chiara é um dar de ombros.

- Como assim? - Frida parece curiosa, quando me encara.

- Eu não gosto de sair de minha zona de conforto. Mudar de casa, de cidade, de país -, balanço a cabeça e dou de ombros -, não é algo que eu goste ou tenha o costume de fazer.

Não mais, acrescento, em silêncio.

- Você não conseguiu dormir? - Penny pergunta. - Senti você se mexendo, mesmo, mas acho que você nem saiu da cama.

- Não -, sacudo a cabeça, contrariada em contar o motivo. - Eu só... Tive uns sonhos estranhos. Nada demais.

Minha pele se arrepia, assim que termino a frase. Ignorando a maneira com que as meninas me fitam, olho pelo ombro para trás, sentindo o peso de um olhar sobre mim.

Lá está ele. Ao lado de uma janela na parte Leste do refeitório, uns cinco metros à minha direita, bebericando o chá que nos é servido, mirando-me - fuzilando seria uma palavra melhor - como se pudesse me atingir com o poder da mente. Não me surpreenderia se descobrisse que está pensando nos tipos de tortura que poderia fazer contra mim, já que lhe neguei as respostas que parece tão obstinado em ter.

- Ei!

Lanço um olhar irritado para Frida, com os dedos esfregando o lugar onde ela me beliscou. Chiara sorri.

- Pare de viajar e conte o que você sonhou -, ordena Frida, com as sobrancelhas erguidas em uma pose autoritária ridícula.

Bufo, perguntando-me se vale a pena desperdiçar o restinho do meu chá jogando-o em seus cachos.

- Não foi...

- Nada demais, nós sabemos -, interrompe-me Chiara, revirando os olhos. - Fale de uma vez, Nori. Pode confiar.

- Em todas nós -, acrescenta Frida, sem seu sorriso habitual.

Torço a boca, contrariada. Em contrapartida, sinto uma vontade imensa de compartilhar este fardo, deixar sair cada uma das palavras que estão entaladas em minha traqueia.

Meus olhos vão de encontro com o entalhe curioso de um dos vitrais, na parte Oeste, oposta às varandas e a Daniel. A composição formada de vidros vermelhos como o sangue, o amarelo mais intenso que já vi e tons claros de azul e creme, com mais diversas cores que não sei nomear. É uma curiosa releitura de uma garotinha de costas para o artista, correndo em um campo de margaridas, lírios e centeio pronto para ser colhido. Em sua cabeça, uma exibição estranha de cabelo: uma única faixa de branco, parecida com um lenço, cobrindo o que há mesmo em seu couro cabeludo. Imagino se ela não seja careca.

Engasgo com o ar, assim que o pensamento me toma. A reprodução é parece fiel de um jeito anormal e irreal, e me remete às lembranças no mesmo instante, mais ainda com a imagem borrada do mar podendo ser vista pela transparência dos vidrinhos. Perco a vontade de falar.

Em um gesto brusco, solto o copo que segurava com força e levanto-me, seguindo em passos fugazes para uma das varandas que está aberta, fugindo da visão, sem me preocupar com a presença de Daniel ali perto.

Deito a cabeça para a esquerda, olhando para um ponto que não posso localizar no solo gramado abaixo. Recuso-me a focar na floresta.

Chiara chega menos de trinta segundos depois, acompanhada de Frida e Penny. Ninguém abre a boca, o que eu agradeço em silêncio, enquanto tento reunir a coragem que necessito para falar.

- Lembra-se do Festival das Flores?

Chia encara-me sem entender.

- O Festival do Solstício de Primavera? - Assinto, ainda sem fitá-la. - Sim, é claro que eu me lembro. Temos todos os anos.

- Do que estão falando? - Questiona Frida.

Prendo o lábio inferior.

- Poucos meses depois que eu cheguei, participei do meu primeiro Festival. Eu fui pelo mesmo motivo que todos vão: pela comida e música oferecida pelo Governador por ser a época que sucede o Recrutamento. Sei que é mais para acalmar os ânimos de um período difícil para muitas famílias -, opino, dando de ombros -, mas funciona. Todos cantam, dançam e se esbaldam no nosso feriado mais famoso. Então, eu quis aproveitar também.

Suspiro, sentindo a estranha compulsão de confidenciar-lhes este segredo.

- Eu havia chegado há pouco tempo na cidade. Foi a primeira vez que saí dos muros do Colégio, menos de um mês antes de me juntar a Chia e Enzo -, fixo em um ponto vazio na madeira de uma das janelas do prédio à direita. As memórias parecem brilhar em flashes, refletindo naquele ponto. - Eu tinha muitos pesadelos. Tantos que preferia passar dias sem dormir, para não correr o risco de sonhar com aquilo...

Penny estica a mão e toca na minha, mas estou perdida demais em minha mente para sentir qualquer coisa.

- É uma garotinha. Sempre a mesma, sem face, sem expressão, as vezes com um tecido sobre a cabeça... Uma garotinha careca -, eu confesso, visualizando em formas muito reais a imagem assustadora. Aperto os olhos e nego com a cabeça. - Era como se fosse meu inconsciente tentando me alertar das coisas, um aviso constante feito por meio de cenas que me perturbavam por todo o dia seguinte até eu acreditar que iria enlouquecer.

"Ainda acredito que posso enlouquecer", termino, sem ter coragem de pronunciar as palavras em voz alta.

- Oh, Nori... - Chia tenta me tocar, mas afasto-me delas.

- Fazia mais de quatro anos que eu não sonhava com ela, e esta noite eu sonhei. - Abro os olhos, encarando seus rostos intrigados, que não se desviam de mim. Não sei se gosto dessa preocupação incomum. - Eu não sei por que, talvez por ter saído do mundo que eu conheço, ter vivido muitas coisas em pouco tempo, mas eu não esperava que... - Respiro fundo, sem saber o que mais dizer.

- Tudo bem, Nori. Todas nós temos pesadelos.

Nego com a cabeça, com veemência, como se desconsiderando as palavras doces de Penny. Não tenho forças para retribuir gentileza, nem para ser delicada ou menos egoísta, neste momento. Meus dedos traçam as laterais de meus olhos, no ponto onde uma dor de cabeça se inicia.

- Este sonho é confuso e assustador-, forço a palavra a sair, envergonhada com a admissão. - Mas esta noite foi bem pior. Eu sonhei algo mais. Algo que acho que eu mereço passar, de verdade.

Um castigo pelo que eu fiz, acrescento, em pensamentos. Por minha culpa, mais uma pessoa morreu.

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