Capítulo 15 - Parte Dois

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Mergulhar na brisa matutina é refrescante.

Os cachos revoltos de meus cabelos soltam-se do coque improvisado que fiz ao sair da cama, entram em meus e chicoteiam minhas bochechas, uma abundante massa negra que está curta demais para permanecer da forma que eu arrumei por muito tempo, mas longa demais para fazer bagunça. Desenrosco os fios com os dedos, distraída com a imagem das árvores que me fizeram entrar em uma pequena crise de terror na noite passada, embora elas pareçam simples e inofensivas esta manhã.

- Isto aqui está mais cheio que o Colégio.

Anuo em silêncio para o comentário de Chia.

De fato, o grupo em que estamos deve conter cerca de três ou quatro dúzias de integrantes, e isto sem contar os diversos jovens que seguiram caminhos distintos. Além disso, o refeitório, que é enorme e contém mesas e bancos compridos, estava sendo utilizado, noite passada, quase que em sua capacidade máxima, não podendo ser achado um espaço vazio para sentar com facilidade.

- A mansão foi construída no século XXIII -, inicia Samantha, apontando para o grande edifício à nossa direita. - Levou cerca de oito anos para sua construção ser terminada, dois anos antes de a Era do Declínio começar.

- Rápido assim? - Pergunta uma das garotas.

Estou impressionada, também. Um palacete, pois chamá-lo de mansão é suavizar a palavra, não deveria demorar menos que dez anos. Mas, repreendo-me, eu não poderia falar nada. Desde que cheguei, vi sendo usada água encanada e energia elétrica sem dó, algo que é dificílimo em minha Cidade, estando ao alcance somente de grandes escalões da sociedade pelo valor exorbitante.

Nem todos tem a possibilidade de gastar com coisas tão caras.

- Oh, sim. Nos oito anos de trabalho, centenas de pessoas trabalharam para concluir o mais rápido possível, esta e outras construções espalhadas pelo solo americano. Esta, porém, foi especial. O lar de um grande patriarca de uma das famílias mais importantes da época -, conta Samantha, com o olhar focado nas paredes e um ar sonhador. - E, quando os tempos sombrios da Era do Declínio assolaram os continentes do Antigo Mundo, o dono do terreno no qual estamos agora cedeu sua propriedade para abrigar quem necessitasse no que viria a ser um longo ciclo de dor, medo e fome.

- Você disse que estamos em solo americano?

Vejo Kashka perguntar, por detrás de meu ombro.

Daniel, ao lado dele, fita a grama com o cenho franzido, como se pensando nas palavras de Samantha.

- Sim, estamos em um dos países da América do Norte, o continente americano -, explica ela, assentindo. - Vocês não devem visto este nome em mapas atuais, considerando que eles foram reformados ao longo dos últimos três séculos, para que se adequassem ao novo mundo, mas estamos presentes no globo mesmo assim. É preciso somente saber procurar em que lugar olhar.

- Eu nunca ouvi falar nesse continente.

- Nem eu.

Murmúrios de concordância ecoam no grupo, conforme avançamos sem notar.

- Vocês terão umas poucas aulas de História, em breve, com a professora Giulia -, interrompe Samantha, calando os jovens para se voltar para Kash. - Estamos na parte sudoeste do lugar que, há anos, foi conhecido como Estados Unidos da América. Hoje, nós o conhecemos como República Americana do Norte, pelas divisões entre povos que tivemos em nosso território.

- Por que chamam alguns de vocês de "professores"?

- Temos professores aqui, para ensiná-los coisas que não aprenderiam em seu país. Bem como temos instrutores de atividades especificas, colaboradores, conselheiros, pessoas em geral que atuam de algum modo na adaptação dos recém-chegados -, explica Samantha, embora murmúrios de confusão ainda soem.

Ela resmunga, apontando uma das meninas da ponta.

- As Cidades de Aliança tem um sistema para certos adolescentes, não é? - A menina confirma. - Se parecer mais fácil, vocês podem ver a Reserva como uma nova escola. Um lugar onde cada um aprenderá mais sobre o mundo e sobre si mesmo. É isso que somos.

Nossa pequena multidão cessa os passos quando nossa guia o faz.

- Mas vamos morar aqui por quanto tempo? E para onde vamos quando esse tempo acabar?

A indagação de Daniel gera um silêncio total.

- Vocês ficarão na Reserva pelo período que for necessário -, contesta ela, evasiva. - Não se preocupem com isso agora.

- Por que eu acho que deveria me preocupar? - Jogo a retórica em voz baixinha para ser ouvida por ninguém além de Chia, recebendo um olhar malandro dela.

Se ela fica nervosa com a pergunta de Daniel, não demonstra. Com a mesma áurea pacífica de sempre, ela retoma suas falas anteriores, voltando ao "assunto seguro".

- Foi um golpe de sorte terem chegado logo após a conclusão de um semestre, então não ficarão deslocados entre as atividades, considerando que um novo ano de treinamento se inicia. Cada um terá a opção de escolher algumas especialidades que serão ensinadas por todo o semestre, mas vocês receberão um cronograma de frequência obrigatória em determinados lugares. Todos terão um trabalho coletivo -, anuncia ela, o que resulta em exclamações surpresas e muitos protestos.

Samantha ri, em conjunto com o recém-chegado homem que se posiciona atrás dela.

- Ora, vocês não esperavam ficar à toa, certo? - Zomba ele.

- Pessoal, conheçam o Müller -, apresenta Samantha, apontando o homem. - Ele é uma espécie de mensageiro, e não passa mais que alguns dias conosco, mas vocês o verão por aí, de vez em quando. É nosso informante mais antigo e contato mais seguro com as demais cidades do país, quando outros meios não podem ser usados.

- Não há conhecedor maior da República Americana -, afirma ele, aceitando o elogio.

Aproveito a nova inclusão do tópico "localização" para sanar uma curiosidade que tenho há certo tempo.

- Se estamos na República Americana -, chamo, fazendo com que todos foquem em mim -, então onde fica o Reino Independente do Canadá?

Os dois adultos parecem intrigados com meu conhecimento sobre o país que se localiza perto do que estamos.

Não tenho muita certeza de sua exata localidade, ou a distância de Aliança, mas me recordo de ver um mapa do Reino do Canadá, há alguns anos, e sei que se localiza ao lado da Colônia Americana do Canadá. Meus parcos - e considerados inúteis, até hoje - conhecimentos sobre os alguns dos polos mundiais aos quais tive acesso parecem úteis, de repente. Dou-me um 'tapinha nas costas por ter tido a disposição de fuçar os vários mapas que pude ao invadir a biblioteca do Colégio para a obtenção de algumas informações a mais sobre Aliança e a Euro-Ásia.

- Bem... - Ela se recupera da surpresa, voltando a falar. - O Reino do Canadá está na parte mais Norte do país, mas não temos contato direito. Há uma barreira a ser atravessada se a intenção for cruzar de um país ao outro.

- Por que vocês falam o mesmo idioma de Aliança? - O rapaz ao lado de Frida pergunta. - Quero dizer, fora as línguas regionais, é a mesma língua oficial. Vocês até tem um sotaque estranho, mas...

Samantha sorri para ele, parecendo aliviada com a pergunta fácil.

- Nosso país e o seu já tiveram ligação, no passado, antes da Era do Declínio começar. Fomos aliados no início desta, também, embora tenhamos cortado relações com o tempo. Quando foram eleger o Estado-Capital de Aliança e optaram pelo antigo país chamado Inglaterra, a língua inglesa tornou-se oficial no restante do novo país, bem como as outras duas línguas daqueles que compõem o Triângulo Central tornaram-se obrigatórias em determinadas Cidades-Estados.

- Onde fica Aliança e qual a distância daqui pra lá? E como atravessamos dela para cá?

Todos esperam a resposta à pergunta da garota miúda que teve coragem de verbalizar o que o grupo inteiro quer saber.

Samantha suspira, fitando o espaço em volta. Parece ter chegado o momento que ela temia.

Meu estômago se inquieta.

Parece que finalmente terei as respostas eu esperava e não estou tão feliz com isso.

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