Único

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John deveria ter sentido o cheiro de algo errado no ar quando acordou, de repente, em sua costumeira poltrona no 221B. Ele abriu os olhos, sonolento, e olhou ao redor. Sua cabeça doía. O sol entrava pela janela em diversos feixes de luz, iluminando parcialmente a mobília recém (e impecavelmente) limpa pela Sra. Hudson e também batendo em seu rosto e queimando seus olhos.

Ele não se lembrava de ter parado para sentar ali e muito menos de ter pego no sono, muito embora aquilo fosse perfeitamente plausível - o último caso que haviam aceito - um particularmente curioso e bastante peculiar, envolvendo o repentino sumiço de uma jovem e o recebimento de cartas com códigos complexos e vindas de endereços completamente aleatórios - havia mantido ele e Sherlock com poucas horas livres para fazer coisas comuns como comer ou dormir. Então não era de se surpreender que ele houvesse parado para descansar as pernas e simplesmente tivesse acabado tirando um cochilo, ainda que involuntariamente.

Ele tateou o bolso em seu casaco até encontrar e tocar a superfície fria do celular e então puxou-o e checou as horas. 16:43. Olhou ao redor mais uma vez, agora que já estava mais desperto - o apartamento estava silencioso e parecia vazio. Estava prestes a ligar para Sherlock para perguntar onde diabos ele e Rosie estariam e porque não o haviam acordado, quando a maçaneta girou e a porta se abriu, lentamente.

Um Sherlock de expressão levemente culpada e uma Rosie com um corte na perna apareceram no campo de visão de John.

- Olhe, papai! - Rosie parecia um pouco receosa de se aproximar do pai, muito provavelmente por medo de ser repreendida por conta do corte, mas correu até John assim que ele ergueu-se do sofá e agachou-se no chão. Ele examinou o corte - nada com que devesse se preocupar, não era nada além uma ferida superficial, apenas um pouco mais funda do que um arranhão. - Eu estava brincando de detetive. - a garota lhe confidenciou com certo orgulho, diminuindo levemente o tom da voz. Em seguida, olhou para Sherlock e sorriu.


-

Uma detetive? - ele arqueou as sobrancelhas enquanto olhava de soslaio para Sherlock (que pareceu entretido demais com algo na janela para notar que a atenção do amigo recaía sobre si), tomou a pequena nos braços e a pôs em uma cadeira antes de sair para pegar água oxigenada, algodão e um band-aid e voltar apressadamente ao local. Rosie acenou com a cabeça, sorrindo. - Que tipo de caso você solucionou, detetive Rosamund?


-

Eu ajudei o tio Greg a encontrar um relógio. E ele me deu uma lupa. - disse, animada, tirando do bolso o presente e exibindo-o com orgulho, sinalizando que havia estado no recém-adquirido apartamento de Greg e Mycroft. John suspirou, nem se incomodando em perguntar o motivo pelo qual Lestrade levaria uma lupa ao seu próprio apartamento. Desde a mudança dos dois para o local, a apenas duas ruas de distância dali, os irmãos Holmes haviam passado a se encontrar com mais frequência. As coisas não eram mais como antes, John sabia, e eles estavam visivelmente se esforçando para manter vivos os laços de afeto que existiam entre os dois. Rose simplesmente adorava isso, pois aquilo significava poder explorar o apartamento sempre que Sherlock o visitasse, e também receber a atenção dos dois e encher Lestrade de perguntas a respeito do trabalho na Scotland Yard, pelo qual ela mostrava um enorme interesse.

Novamente olhou para Sherlock, esperando por uma explicação, enquanto limpava o pequeno filete de sangue que corria pela perfeita pele da perna direita da filha e cobria o corte com um dos band-aids que trouxera. O detetive apenas deu de ombros.

- Mycroft desejava falar comigo. Eu preferi levá-la junto a lhe acordar. - explicou, de forma clara e rápida como de costume. - Rosie tropeçou na calçada quando desceu do táxi e eu não fui rápido o suficiente para impedir que ela caísse. Agora, eu sugiro que durma um pouco. Não me parece ser muito confortável dormir o tempo todo na poltrona, por mais que goste dela.

Ele sorriu brevemente e assentiu com a cabeça. Queria perguntar sobre o caso da jovem desaparecida, mas com certeza Sherlock não o dispensaria se já não o houvesse solucionado ou soubesse a resposta, por isso não se deu ao trabalho de tocar no assunto. Ele simplesmente guardou com cuidado cada um dos itens que havia utilizado para limpar o pequeno corte de Rose e virou-se para ir até o quarto e desfrutar de um merecido descanso, mas a mão pequena da filha o  agarrou pelo casaco e puxou-o de volta para a sala com insistência.

- O que foi? - perguntou. Ela puxou de trás de si uma folha de papel, arrancada de algum caderno, com um parcialmente colorido desenho de criança, parecido com os muitos outros que ela havia desenhado e pintado e agora decoravam as paredes do 221B, desde sala até os quartos.. Ela estendeu o papel, visivelmente empolgada, e ele o pegou com cuidado. No desenho era possível observar dois homens - ele e Sherlock (ela havia inclusive enfatizado a diferença de tamanho entre os dois e adicionado alguns outros detalhes como o chapéu e a gola levantada ao desenho, o que fez o detetive rir alto quando se prostrou atrás dos dois para poder observar a folha) - segurando as mãos, e uma garotinha ao lado dos dois.


-

Quer terminar de pintá-lo? - perguntou Sherlock, chegando mais perto da garota e a puxando para seu colo. Rosie assentiu, estendendo a mão para pegar o desenho de volta. John hesitou.


-

Nós… estamos de mãos dadas? - alternou o olhar entre o detetive e a filha, que simplesmente lhe lançou mais um de seus sorrisos encantadores.


-

Sim, como um papai e uma mamãe. - ela explicou, alegremente, como se fosse óbvio. Parecia um pouco distante dali, como se não estivesse prestando toda sua atenção à conversa e sua mente vagasse por qualquer outro lugar. John e Sherlock a fitaram com expressões diversas - quase confusas - no rosto. - Só que… com dois papais.

Watson riu da explicação embaralhada e sincera que acabara de ouvir, um riso de alívio e pura alegria, como não era capaz de rir há dias com todo o estresse e correria das investigações. Sherlock simplesmente sorriu - aquele sorriso verdadeiro e puro que John sabia reconhecer, quando seus olhos quase se fechavam e as covinhas apareciam, não o riso fingido de quando tinha de interpretar em alguma de suas investigações. O tipo de sorriso que deixava transparecer todo o carinho que ele sentia pelos dois, que mostrava o lado humano cada vez mais crescente de Holmes e que fazia tanto ele quanto Rosie se sentirem tão seguros ali, naquele cantinho tão movimentado da Rua Baker.

John fitou os dois por um momento. Sherlock parecia tão entretido com Rosie no colo que ele não quis interromper. Na verdade, gostaria de ficar vendo a cena em sua frente para sempre, se fosse possível. Aqueles dois eram a família de John, e ele faria mais do que o impossível para que permanecessem consigo.

Ele sabia que viriam dias difíceis. O futuro era repleto de possibilidades e descobertas - e várias delas eram dolorosas. Ele não tinha medo e tampouco lamentava: era simplesmente o modo como a vida funcionava. Sabia que uma vida sendo o assistente de Sherlock Holmes seria toda complicada, agitada e esgotante, tanto física quanto emocionalmente. Mas, como Mary havia feito questão de fazê-lo perceber, ele mesmo tinha escolhido essa vida, porque gostava daquilo.  No entanto, ele também era infinitamente grato por poder desfrutar de um agora com as duas pessoas que mais amava no mundo. Era grato por saber que Rose tinha uma família. Porque eles eram uma família, não importava o que dissessem. Uma enorme e feliz família - cheia de problemas, era verdade, mas ele nunca havia conhecido uma família que não tivesse suas próprias complicações. Todos estavam ali, dispostos a cuidar uns dos outros, e era isso o que realmente importava. Ele, Sherlock, a Sra. Hudson, Lestrade, Mycroft e até mesmo Molly. Sabia que podia chamá-los a qualquer hora - e eles viriam, e entenderiam.

Enquanto dirigia-se até o quarto, ele lançou um olhar aos dois, que a essa altura já rodeavam a mesa, cercados de papéis e lápis de colorir, completamente focados nos desenhos. Momentos como esse - assim como os de Rosie dormindo no peito de Sherlock, ou da visão do detetive tentando trocar fraldas - eram simplesmente impagáveis, e ele os guardava como se fossem um tesouro valioso. E de fato eram.

Ele mais uma vez agradeceu mentalmente por tudo aquilo, e preparou-se para deitar com um sorriso estampado em seu rosto. Quando havia casualmente encontrado Mike Stamford e reclamado com ele, tantos anos antes, por não conseguir pagar sozinho um apartamento e da dificuldade de encontrar alguém disposto a dividir um com ele, tantos anos antes, definitivamente ele não havia imaginado que acabaria encontrando uma vida nova, um lar, uma família.

Family | johnlockOnde histórias criam vida. Descubra agora