Noite de Crema

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Os corpos já haviam sido levados do prédio.

Em meio ao mofo e a putrefação eu contemplo a foto de dois homens no dia de seu casamento, eles sorriem enquanto uma chuva de arroz cai sobre eles em câmera lenta . "Essa, por favor". Retiro a foto do porta retratos e a guardo na caixa de recordações em minha mochila.

No apartamento restam apenas eu e Fernando que aguarda à porta, ombro direito escorado no batente, no esquerdo uma bolsa esportiva carregada de suprimentos. Carregadores, Escavadores, Batedores... Nós somos Coletores. Ele recolhe tudo que é útil ao grupo e eu coisas de valor apenas aos mortos.

– Pensa rápido – jogo para Fernando as alianças que encontrei sobre o criado mudo.

Apanha as duas no ar e as examina a procura das inscrições no interior, ao encontrar, deixa seu lindo e costumeiro sorriso vitorioso dominar os lábios. De máscara, vejo apenas seus olhos sorrindo para mim.

Ele guarda as alianças no bolso interno de sua jaqueta — Obrigado, você terminou?

Confirmo com um aceno de cabeça.

Nando sai a rua e seu ponto de controle pulsa, uma luz azulada centralizada em um círculo preto de aço inoxidável com cerca de dois centímetros de diâmetro plugado na base de sua nuca e conectado a sua mente, sua máscara se desmancha, retraindo para o pescoço.

Máscara, desativar.

A minha se desfaz, Fernando se aproxima, suas mãos na minha cintura, os olhos nos meus, os lábios nos meus. Nosso primeiro beijo em duas semanas.

O novato do grupo nos surpreendeu durante o último e não fez questão de esconder o seu nojo. Eu não liguei, já havia aprendido a lidar com essa gente antes mesmo do fim do mundo, mas tudo isso ainda é novo para o Nando.

Ele se afasta sem deixar de me olhar e eu sei o que o vai dizer, ele tem me pedido desculpa toda vez que olha para mim, mas não é dele que espero qualquer desculpa e antes que diga qualquer coisa, aperto seus ombros e tomo seu rosto rosado em minhas mãos, seus enormes olhos castanhos cheios de expectativas observando os meus, e lhe dou outro beijo.

O fone em minha orelha conectado ao meu ponto de controle vibra.

Rádio, atender chamada.

— Ralinho já vai começar. Para de engolir seu namorado e corre pra praça — diz Alexia.

Chamada encerrada.

Mãos dadas, máscaras reativadas, chegamos à praça onde a vala fora aberta pelos escavadores.

Uma tanatopraxista, dois carregadores, dois escavadores, Cintia, uma coisinha minúscula agarrada às pernas do pai, Paulo, o novato, Fernando e eu, todos mascarados, aguardamos sob os olhos das sentinelas nos topos dos prédios ao redor.

Paulo prefere encarar os corpos no buraco a repousar sua atenção em qualquer um dos esquisitos.

Ralinho, o coveiro, tira seu isqueiro e maço de cigarros do bolso.

Meu fone vibra. Rádio, atender chamada.

— Você acha que ele vai se cagar ou desmaiar na hora? — pergunta Alexia, posso ver seu sorriso no tom de sua voz.

Na noite anterior, estávamos nesta mesma posição, o jantar na fogueira e todos o mais longe possível de Paulo, quando, encarando as chamas, ele começou a falar de uma estação de rádio am que descobriu antes de topar com nosso grupo na Vila Matilde.

— Estávamos num mercadinho pegando alimentos. Encontrei o rádio na administração. Não via um daqueles tinha uns cinco anos. Quando liguei um pastor falava de São Paulo... que a pandemia que condenou o mundo e começou aqui foi um sinal do que a cidade havia se tornado... um antro de pecadores e pervertidos... também falava do povo que deixou a cidade para viver em vilas fora da capital... e que todos são bem vindos, até os pecadores que deixarem seus pecados para trás — quando terminou, levantou os olhos do fogo, úmidos e sanguinários, e os pousou friamente sobre mim e Fernando.

Alexia foi a primeira a quebrar o silêncio.

— Você acha que um deus qualquer acabou com sete bilhões de vidas por que eu gosto de xota?

O rosto de Paulo se contorceu na mesma expressão que cuspira em Nando e eu, pegou a filha e saiu para o quarto mais distante que encontrou logo que chegamos ao lugar.

Agora, e com a filha ao lado, ele observa o coveiro acender um cigarro. Ralinho traga. A fumaça sai de sua boca e nariz, sobe por seu rosto e passa por seus cabelos brancos que balançam nos primeiros ventos do cair da noite.

— Alessander — estou preparado quando ele diz meu nome sem olhar em minha direção, entregue ao seu ritual, pois também tenho o meu e Fernando já apoia em suas mãos a caixa de recordações para mim.

Almas tímidas ou catatônicas com o choque da própria morte não costumam compartilhar mais que alguns lamentos, o que resulta em poucas recordações. Algo comum em todos os lugares pelos quais passamos e aqui não foi diferente. A distância segura da vala, uma a uma, eu retiro as recordações da caixa e as jogo sobre os corpos. O livro favorito de um garotinho, a foto do casal e os brincos de uma senhora, presente do pai para sua formatura, a primeira mulher da família a se formar na universidade.

"Obrigado", um coral de vozes responde em minha mente.

Ralinho dá outra tragada e continua — Nós não somos um grupo religioso. Eu não falo em nome de nenhum pai ou mãe celestial esperando garantir a essas almas passagem a qualquer pós vida que seja... — enquanto fala, um ponto incandescente surge em seu peito — ... E como a terra há de engolir a todos, jamais iremos recusar um novo irmão ou irmã... — o brilho se multiplica e dança por seu peito enquanto com o cigarro entre os dedos ele dá ainda outra tragada — desde que entendam que esta é nossa razão de ser... Abandonados, perdidos e ignorados... Nós olhamos por aqueles deixados para trás... uma última gentileza... — e outra tragada — assim... nos despedimos... Paz, onde quer que vá.

As chamas que antes dançavam sob sua pele sobem furiosas por sua garganta deixando em brasa  as veias que irradiam através da pele retinta. O fogo vivo irrompe de sua boca sobre os corpos, arrastando-se por entre eles com mãos mal formadas, incinerando cada pedacinho de carne putrefata que toca.

— Olha ele! — berra Alexia em meu ouvido.

Paulo esta no chão, abraçado à filha, sua face se repuxa para longe. Tenta dizer algo e gaguejando, berra — De-Demônio! — se levanta, pega Cintia no colo e corre na direção do abrigo.

Quando voltamos da crema, eles já haviam partido, levando um mapa e provisões.

Sem mapa nem provisões, os encontramos três meses depois.

— Coloque-os com os outros — diz o coveiro.

A Irmandade FúnebreWhere stories live. Discover now