O gato preto

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Não espero nem peço que acreditem nesta narrativa ao mesmo tempo estranha e despretensiosa que estou a ponto de escrever. Seria realmente doido se esperasse, neste caso em
que até mesmo meus sentidos rejeitaram a própria evidência. Todavia, não sou louco e certamente não sonhei o que vou narrar. Mas amanhã morrerei e quero hoje aliviar minha alma.
Meu propósito imediato é o de colocar diante do mundo, simplesmente, sucintamente e sem comentários, uma série de eventos nada mais do que domésticos. Através de suas consequências, esses acontecimentos me terrificaram, torturaram e destruíram. Entretanto, não tentarei explicá- los nem justificá-los. Para mim significaram apenas Horror, para muitos parecerão menos
terríveis do que góticos ou grotescos. Mais tarde, talvez, algum intelecto surgirá para reduzir minhas fantasmagorias a lugares-comuns – alguma inteligência mais calma, mais lógica, muito menos excitável que a minha; e esta perceberá, nas circunstâncias que descrevo com espanto, nada mais que uma sucessão ordinária de causas e efeitos muito naturais.
Desde a infância observaram minha docilidade e a humanidade de meu caráter. A ternura de meu coração era de fato tão conspícua que me tornava alvo dos gracejos de meus
companheiros. Gostava especialmente de animais e, assim, meus pais permitiam que eu criasse
um grande número de mascotes. Passava a maior parte de meu tempo com eles e meus momentos mais felizes transcorriam quando os alimentava ou acariciava. Esta peculiaridade de caráter cresceu comigo e, ao tornar-me homem, prossegui derivando dela uma de minhas principais fontes de prazer. Todos aqueles que estabeleceram uma relação de afeto com um cão
inteligente e fiel dificilmente precisarão que eu me dê ao trabalho de explicar a natureza da
intensidade da gratificação que deriva de tal relacionamento. Existe alguma coisa no amor altruísta e pronto ao sacrifício de um animal que vai diretamente ao coração daquele que teve ocasiões frequentes de testar a amizade mesquinha e a frágil fidelidade dos homens.
Casei-me cedo e tive a felicidade de encontrar em minha esposa uma disposição que não
era muito diferente da minha. Observando como gostava de animais domésticos, ela não perdeu
oportunidade para me trazer representantes das espécies mais agradáveis. Tínhamos pássaros,
peixinhos dourados, um belo cão, coelhos, um macaquinho e um gato.
Este último era um animal notavelmente grande e belo, completamente preto e dotado de
uma sagacidade realmente admirável. Ao falar de sua inteligência, minha esposa, cujo coração
não era afetado pela mínima superstição, fazia frequentes alusões à antiga crença popular de que
todos os gatos pretos eram bruxas disfarçadas. Não que ela jamais mencionasse esse assunto
seriamente – e se falo nele é simplesmente porque me recordei agora do fato.
Pluto – esse era o nome do gato – era minha mascote favorita e era com ele que passava mais tempo. Era só eu que o alimentava e o animal me acompanhava em qualquer parte da casa em que eu fosse. De fato, era difícil impedi-lo de sair à rua comigo e acompanhar-me.
Nossa amizade perdurou desta forma por diversos anos, durante os quais meu temperamento geral e meu caráter – devido à interferência da Intemperança criada pelo
Demônio – tinham (meu rosto se cobre de rubor ao confessá-lo) sofrido uma mudança radical
para pior. A cada dia que se passava eu ficava mais mal-humorado, mais irritável, menos interessado nos sentimentos alheios. Permitia-me usar linguagem grosseira com minha própria esposa. Após um certo período de tempo, cheguei a torná-la alvo de violência pessoal.
Naturalmente, minhas mascotes sentiram a diferença em minha disposição. Não apenas as
negligenciava, como chegava a tratá-las mal. Mas com relação a Pluto, entretanto, eu ainda
conservava suficiente consideração para conter-me antes de maltratá-lo, ao passo que não tinha
escrúpulos em judiar dos coelhos, do macaco e até mesmo do cão quando, por acidente ou até mesmo por afeição, eles se atravessavam em meu caminho. Porém minha doença cresceu cada
vez mais – pois que doença é pior que o vício do alcoolismo? – e, finalmente, até Pluto, que
estava agora ficando velho e, em consequência, um tanto impertinente, até Pluto começou a
experimentar os efeitos de meu mau humor.
Uma noite, ao chegar em casa bastante embriagado, depois de um de meus passeios sem
destino através da cidade, imaginei que o gato estava evitando minha presença. Agarrei-o à
força; e então, assustado por minha violência, ele infligiu uma pequena ferida em minha mão
com os dentinhos. A fúria de um demônio possuiu-me instantaneamente. Nem sequer conseguia
reconhecer a mim mesmo. Minha alma original parecia ter fugido imediatamente de meu corpo;
e uma malevolência mais do que satânica, alimentada pelo gim, assumiu o controle de cada fibra
de meu corpo. Tirei um canivete do bolso de meu colete, abri a lâmina, agarrei a pobre besta
pela garganta e deliberadamente arranquei da órbita um de seus olhos. Encho-me de rubor e
meu corpo todo estremece enquanto registro esta abominável atrocidade.
Quando a manhã me trouxe de volta à razão – depois que o sono tinha apagado a maior
parte do fogo de minha orgia alcoólica –, experimentei um sentimento misto de horror e de
remorso pelo crime que havia cometido. Mas este sentimento foi no máximo débil e elusivo e a
alma permaneceu intocada. Novamente mergulhei em meus excessos e logo afoguei na bebida
toda lembrança de minha má ação.
Enquanto isso, o gato lentamente se recuperou. A órbita vazia do olho perdido apresentava,
naturalmente, uma aparência assustadora, mas ele não parecia estar sofrendo mais nenhuma
dor. Andava pela casa, como de costume, mas, como se poderia esperar, fugia de mim em
extremo terror cada vez que chegava perto dele. Ainda me restava uma certa parte de meu
ânimo anterior e a princípio lamentei que agora me detestasse tanto uma criatura que já me
havia amado. Mas este sentimento logo deu lugar à irritação. E então fui acometido, como se
fosse para minha queda final e irrevogável, pelo espírito da Perversidade. A própria filosofia não
estudou este espírito. E todavia, assim como tenho certeza de possuir uma alma vivente, é minha
convicção que a perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das
faculdades primárias e indivisíveis, um dos sentimentos que dão origem e orientam o caráter do
Homem. Quem já não se flagrou uma centena de vezes a cometer uma ação vil ou meramente
tola por nenhuma razão exceto sentir que não devia? Não temos todos nós uma inclinação
perpétua e contrária a nosso melhor julgamento para violar as Leis, simplesmente porque
compreendemos que são obrigatórias? Pois foi este espírito de Perversidade, digo eu, que veio a
causar minha queda final. Foi este anseio insondável da alma, que anela por prejudicar a si
mesma, por oferecer violência à sua própria natureza, por praticar o mal pelo amor ao mal e
nada mais, que me impulsionou a prosseguir e finalmente consumar a injúria que tinha infligido
sobre a pequena besta inofensiva. Uma manhã, a sangue-frio, passei-lhe um laço ao redor da
garganta e o pendurei no galho de uma árvore – enforquei-o com lágrimas nos olhos, sentindo ao
mesmo tempo o remorso mais amargo em meu coração –, assassinei o pobre gato porque sabia
que ele me tinha amado e porque eu entendia muito bem que ele não me tinha dado razão
alguma de queixa – matei-o porque sabia que ao fazê-lo estava cometendo um pecado – um
pecado mortal que iria manchar minha alma imortal ao ponto de colocá-la – se isso fosse
possível – fora do alcance até mesmo da infinita misericórdia do Deus Mais Misericordioso e
Mais Terrível.
Na noite seguinte ao dia em que pratiquei esta ação cruel, fui despertado do sono por gritos
de “Fogo!”. As cortinas de meu leito estavam em chamas. A casa inteira estava ardendo. Foi
com grande dificuldade que minha esposa, uma criada e eu mesmo escapamos da conflagração.
A destruição foi completa. Todos os meus bens materiais foram consumidos e a partir desse
momento entreguei-me ao desespero.
Estou acima da fraqueza de tentar estabelecer uma sequência de causa e efeito entre o
desastre e a atrocidade. Mas estou detalhando um encadeamento de fatos – e não desejo deixar
imperfeito um só dos elos da corrente. No dia que se seguiu ao incêndio, visitei as ruínas. Todas
as paredes tinham desabado, à exceção de uma única. Esta exceção foi a de um aposento
interno, uma parede não muito grossa, que se erguia mais ou menos na metade da casa,
justamente aquela contra a qual descansava a cabeceira de minha cama. O próprio reboco tinha
ali, em grande parte, resistido à ação do fogo – segundo julguei, porque era feito de argamassa
nova, talvez ainda um pouco úmida. Em torno desta parede estava reunida uma grande multidão;
e muitas pessoas pareciam estar examinando um trecho especial dela, com minuciosa atenção.
As palavras “estranho”, “singular” e outras semelhantes excitaram-me a curiosidade.
Aproximei-me e vi, como se estivesse gravado em bas relief [1] sobre a superfície branca, a
figura de um gato gigantesco. A imagem estava desenhada com uma precisão realmente
maravilhosa. Havia uma corda esboçada ao redor do pescoço do animal.
Da primeira vez que contemplei esta aparição – porque dificilmente poderia chamá-la de
algo menos assombroso –, meu espanto e meu terror foram extremos. Mas, finalmente, o
raciocínio e a reflexão vieram em meu amparo. O gato, segundo recordava, tinha sido enforcado
em um jardim adjacente à casa. Logo que fora dado o alarme de incêndio, este jardim ficou
imediatamente cheio de basbaques, um dos quais provavelmente tinha cortado a corda que
prendia à arvore o gato e jogado o animal dentro de meu quarto através de uma janela aberta.
Talvez até mesmo a intenção fosse boa, quem sabe queriam acordar-me do sono e lançassem o
animal janela adentro para esse fim. A queda das outras paredes tinha comprimido a vítima de
minha crueldade na própria substância do reboco recém-aplicado; o cal contido nele, misturado à
amônia proveniente da carcaça, com o calor das chamas, tinha então realizado o retrato que
contemplava agora.
Embora eu satisfizesse minha razão assim rapidamente, se bem que não tivesse podido
acalmar totalmente minha consciência e tentasse desse modo descartar o fato assombroso que
acabei de descrever, isso não impediu que produzisse forte impressão sobre minha imaginação.
Durante meses não conseguia livrar minha visão interna do fantasma do gato; e, durante esse
período, retornou a meu espírito uma espécie de sentimento que se assemelhava a remorso, mas
não era exatamente isso. Cheguei ao ponto de lamentar a perda do animal e a procurar, nos
ambientes ordinários que agora habitualmente frequentava, outra mascote da mesma espécie,
cuja aparência fosse semelhante e pudesse ocupar o vazio deixado pela primeira.
Uma noite eu estava sentado, entorpecido de tanto beber, em um botequim da pior espécie,
quando minha atenção foi subitamente atraída para um objeto preto que repousava sobre a
tampa de uma das imensas bordalesas de gim ou de rum que constituíam o principal mobiliário
da peça. Há vários minutos eu já contemplava fixamente a tampa desse barril, e o que agora me
causava surpresa era o fato de que não houvesse percebido antes o objeto que se encontrava
sobre ele. Aproximei-me a passos vacilantes, estendi a mão e toquei-o. Era um gato preto – um
animal muito grande –, tão grande quanto Pluto e extremamente parecido com ele em todos os
detalhes, salvo um: Pluto não tinha um pelo branco sequer em qualquer porção de seu corpo; mas
este gato tinha uma mancha branca bastante grande, embora de formato indefinido, cobrindo-lhe
quase inteiramente o peito.
Assim que o toquei, o animal ergueu-se imediatamente, ronronou bem alto, esfregou-se
contra minha mão e pareceu encantado com minha atenção. Tinha encontrado a própria criatura
que vinha procurando. Imediatamente fui falar com o taverneiro e ofereci-me para comprar o bichano, mas ele disse que o animal não lhe pertencia – que nunca o tinha visto antes e que não
fazia a menor ideia de onde tinha vindo ou a quem pudesse pertencer.
Continuei com minhas carícias, e, quando me dispus a ir para casa, o animal demonstrou
estar disposto a me acompanhar. Permiti-lhe que o fizesse; de fato, durante o caminho,
ocasionalmente parava, curvava-me e fazia-lhe carícias. Quando chegamos à casa em que
agora eu morava, ele familiarizou-se de imediato, adquirindo em seguida as boas graças de
minha esposa.
Quanto a mim, para meu desapontamento, logo descobri que não gostava do animal. Isto era
justamente o reverso do que havia antecipado; porém – não sei como nem por que – o evidente
prazer que o gato achava em minha companhia me aborrecia e enojava. Lenta e
progressivamente, estes sentimentos de desgosto e aborrecimento se transformaram em rancor e
ódio. Evitava a criatura, sempre que podia; uma certa sensação de vergonha e a lembrança de
meu antigo feito de crueldade evitaram que eu o machucasse fisicamente. Durante algumas
semanas, eu não bati nele nem o maltratei violentamente; mas gradualmente – muito
gradualmente – comecei a encará-lo com uma repugnância indescritível e a fugir
silenciosamente de sua presença odienta, como se estivesse tentando escapar do sopro sufocante
de um pântano ou do hálito pestilento de uma praga.
Sem a menor dúvida, o que originou meu rancor pelo animal foi a descoberta, logo na
manhã seguinte à noite em que o trouxe para casa, de que ele, exatamente como Pluto, também
tivera um dos olhos arrancado. Esta circunstância, entretanto, só levou minha esposa a gostar
ainda mais dele, a qual, conforme relatei anteriormente, possuía em alto grau aquela
humanidade de sentimentos que em épocas passadas fora também um de meus traços
característicos e a fonte de muitos de meus prazeres mais simples e puros.
À medida que aumentava minha aversão pelo gato, seu amor por mim parecia crescer na
mesma proporção. Seguia meus passos com uma pertinácia que seria difícil fazer o leitor
compreender. Onde quer que me assentasse, vinha enroscar-se embaixo de minha cadeira ou
saltar sobre meus joelhos, cobrindo-me de carinhos nojentos. Se eu me erguesse para caminhar,
ele se intrometia entre meus pés e quase me fazia cair; ou, então, cravava suas unhas longas e
afiadas em minhas roupas e procurava, desta forma, trepar até chegar a meu peito. Nessas
ocasiões, embora eu ansiasse por rebentá-lo à pancada, ainda me sentia incapaz de fazê-lo, em
parte pela recordação de meu crime anterior, mas especialmente – confessarei de imediato –
porque tinha absoluto pavor daquele animal.
Este pavor não era exatamente um temor da possibilidade de algum dano físico, todavia não
sou capaz de defini-lo de outra forma. Estou quase envergonhado de admitir – sim, mesmo nesta
cela de condenado tenho quase vergonha de admitir – que o terror e horror que o animal me
inspirava tinham sido muito aumentados por uma das mais ilusórias quimeras que teria sido
possível conceber. Minha esposa me tinha chamado a atenção, mais de uma vez, para o caráter
da mancha de pelo branco que já mencionei e que constituía a única diferença aparente entre o
estranho animal e aquele que eu tinha morto. O leitor há de lembrar que esta marca, embora
grande, era originalmente muito indefinida; porém, muito lentamente, de uma forma quase
imperceptível, uma forma que por muito tempo minha Razão lutou para considerar como
meramente fantasiosa, acabou por assumir um contorno rigorosamente distinto. Era agora a
representação de um objeto tal que a simples ideia de mencioná-lo me faz tremer. Era por isso,
acima de tudo, que eu detestava e temia tanto aquele monstro e teria me livrado dele, se ao
menos eu ousasse. Essa imagem, escrevo agora, era a imagem de uma coisa horrível, uma coisa
apavorante... a imagem de uma FORCA! Ah, melancólico e terrível instrumento de Horror e de
Crime – de Agonia e de Morte!
E agora eis que me encontrava realmente desgraçado, um miserável além da desgraça e da
miséria da natureza humana. E era um animal sem alma, cujo companheiro eu tinha destruído
com desprezo, era um animal sem alma que originava em mim – eu, que era um homem, criado à
imagem do Deus Altíssimo – tanta angústia intolerável! Ai de mim! Nem de dia, nem de noite eu
era mais abençoado pelo Repouso! Durante o dia a criatura não me deixava por um único
momento; e, de noite, eu me acordava de hora em hora, despertado de sonhos cheios de um
pavor indescritível, para encontrar a respiração quente daquela coisa soprando diretamente sobre
meu rosto e seu enorme peso – um pesadelo encarnado do qual eu não poderia jamais me
acordar, oprimindo e esmagando eternamente o meu coração!
Sob a pressão de tormentos assim, os débeis traços que restavam de minha boa natureza
sucumbiram totalmente. Os maus pensamentos se tornaram meus amigos íntimos, meus únicos
amigos, logo os pensamentos mais ímpios e mais maléficos. O mau humor de minha disposição
habitual transformou-se em um rancor indefinido voltado para todas as coisas e para toda a
humanidade; e os acessos de fúria súbitos, frequentes e incontroláveis aos quais eu agora me
abandonava cegamente e sem o menor remorso eram descarregados – ai de mim! –
precisamente sobre minha esposa, a sofredora mais paciente e mais constante, que nunca emitia
sequer uma palavra de queixa ou de revolta contra mim.
Um dia ela me acompanhou, com a intenção de executar alguma tarefa doméstica, ao
porão do velho edifício em que nossa pobreza atual nos obrigava a morar. O gato me seguiu pelos
degraus íngremes e, quando me fez tropeçar e quase me levou a cair escada abaixo, deixou-me
exasperado a ponto de enlouquecer. Erguendo um machado, esquecido em minha cólera do
medo infantil que até então havia impedido que levantasse um dedo contra ele, dirigi um golpe ao
animal que, sem a menor dúvida, teria sido fatal se tivesse acertado onde eu queria. Porém a
machadada foi impedida pela mão de minha esposa a segurar-me o braço. Esta interferência me
lançou em uma raiva mais do que demoníaca: arranquei o braço de seu aperto e, com um único
golpe, enterrei o machado na cabeça dela. Ela caiu morta no mesmo lugar, sem soltar um único
gemido.
Tendo cometido este assassinato pavoroso, imediatamente, sem remorsos e da maneira
mais deliberada possível, voltei-me para a tarefa de esconder o corpo. Sabia que não podia
removê-lo da casa, tanto de dia como de noite, sem correr o risco de ser observado pelos
vizinhos. Uma série de projetos passou por minha cabeça. Durante algum tempo, pensei em
cortar o corpo em minúsculos fragmentos que depois destruiria no fogo. Depois pensei em cavar-
lhe uma cova no chão do porão. Também me passou pela cabeça jogar o cadáver no poço que
ficava no pátio; ou colocá-lo dentro de uma caixa, como se fosse uma mercadoria, aplicando
todos os cuidados que em geral se dedica à preparação de tais volumes e contratando um
carregador para retirá-lo da casa. Finalmente, imaginei o que me pareceu ser um expediente
melhor que qualquer um desses. Resolvi emparedá-lo em um dos cantos do porão – conforme
dizem que os monges da Idade Média costumavam fazer com suas vítimas.
O porão estava perfeitamente adaptado para esse propósito. Suas paredes tinham sido muito
mal- construídas e há pouco tempo tinham sido novamente rebocadas com uma argamassa
grosseira, que a umidade do ambiente não deixara endurecer. Além disso, em uma das paredes
havia uma projeção, causada por uma falsa chaminé ou lareira que tinha sido preenchida com
tijolos na intenção de assemelhá-la ao restante das paredes do porão. Não tinha dúvidas de que
poderia facilmente retirar os tijolos neste ponto, enfiar o cadáver e depois restaurar a parede
inteira ao estado anterior, de tal modo que olhar algum poderia detectar qualquer coisa suspeita.
Não me enganava neste ponto. Com um pé de cabra retirei facilmente os tijolos e, depois de
depositar o corpo cuidadosamente contra a parede interna, ergui-o de modo a deixá-lo em pé, apoiado contra a parede. Com pouca dificuldade recoloquei os tijolos e deixei a estrutura
precisamente da maneira em que se achava antes. Tendo trazido cal, areia e uma porção de
pelos de animais retirados de couros, como era costume na época, preparei, com todas as
precauções possíveis, uma argamassa que não podia ser diferente da que recobria o restante da
parede e com esta reboquei muito cuidadosamente os tijolos que havia recolocado. Ao terminar,
sentia-me satisfeito com a perfeição do trabalho. A parede não apresentava o menor sinal de que
tinha sido modificada. Recolhi a caliça do chão com o cuidado mais minucioso. Olhei ao meu
redor triunfantemente e congratulei-me: “Pelo menos desta vez não trabalhei em vão”.
Minha próxima tarefa era a de procurar a besta que tinha sido a causa de tamanha desgraça,
porque tinha, finalmente, a firme resolução de matá-la. Se nesse momento tivesse podido
encontrá-la, seu destino estaria selado, mas aparentemente o animal ardiloso tinha pressentido
alguma coisa ou se amedrontado com a violência de minha raiva anterior, evitando apresentar-se
diante de mim enquanto durasse minha má disposição. É impossível descrever ou imaginar a
sensação de alívio profunda e abençoada que a ausência da detestada criatura causou em meu
peito. Melhor ainda, o gato não apareceu nessa noite – e assim, ao menos por uma noite, desde
que o desgraçado se introduzira em minha casa, dormi profunda e tranquilamente; sim, dormi o
sono dos justos, mesmo que tivesse agora o peso de um assassinato em minha alma!
Passaram-se o segundo e o terceiro dias e meu atormentador não regressou. Novamente eu
respirava como um homem livre. O monstro tinha fugido aterrorizado e deixado para sempre
minha companhia! Nunca mais iria vê-lo! Minha felicidade era suprema! O remorso ocasionado
por minha ação tão negra e perversa praticamente não me perturbava. Algumas perguntas
haviam sido feitas, mas fora fácil responder. Até mesmo havia sido feita uma busca pela polícia,
mas naturalmente não haviam descoberto nada. Pensei que minha felicidade futura estava
assegurada.
Mas no quarto dia depois do assassinato, uma patrulha da polícia retornou, muito
inesperadamente, entrou em minha casa e recomeçou a fazer uma investigação rigorosa do
prédio. Achava-me seguro, todavia, devido à impenetrabilidade do lugar em que escondera o
cadáver, e assim não me senti nem um pouco constrangido pela busca. Os policiais ordenaram-
me que os acompanhasse enquanto procuravam. Não deixaram nem canto nem escaninho sem
explorar. Finalmente, pela terceira ou quarta vez, desceram ao porão. Não senti estremecer nem
um só de meus músculos. Meu coração batia calmamente como o de alguém perfeitamente
inocente. Caminhei de ponta a ponta do porão. Cruzei os braços e fiquei andando de um lado para
outro. A polícia finalmente satisfez-se e estava a ponto de partir, desta vez em definitivo. A
alegria em meu coração era grande demais para ser contida. Ansiava para dizer ao menos uma
palavra de triunfo e queria garantir-me duplamente de que eles me julgavam inocente.
– Cavalheiros – disse finalmente, enquanto o grupo subia as escadas –, estou encantado por
ter desfeito todas as suas suspeitas. Desejo a todos uma boa saúde e um pouco mais de cortesia.
A propósito, cavalheiros esta casa, esta casa é muito bem-construída. (Tomado de um violento
desejo de aparentar a maior naturalidade, falava sem prestar muita atenção no que dizia.) Posso
até dizer que é uma casa excelentemente bem-construída. Estas paredes – já estão de partida,
cavalheiros? –, estas paredes são muito sólidas.
E foi neste ponto que, tomado por um estúpido frenesi de bravata, bati pesadamente com
uma bengala que tinha na mão justamente sobre aquela porção da parede atrás da qual jazia o
cadáver da esposa que tinha apertado tantas vezes contra o peito.
Possa Deus escudar-me e proteger-me das presas do Pai dos Demônios! Tão logo a
reverberação dos golpes que havia dado desapareceu no silêncio, foi respondida por uma voz de
dentro do túmulo! – respondida por um grito, a princípio abafado e entrecortado, como os soluços de uma criança, mas rapidamente se avolumando em um grito longo, alto e contínuo, totalmente
anormal e desumano – um uivo –, um guincho lamentoso, meio de horror e meio de triunfo, tal
como só poderia ter subido das profundezas do inferno, um berro emitido conjuntamente pelas
gargantas de centenas de condenados à danação eterna, torturados em sua agonia, e pelos
demônios que exultam em sua condenação.
É tolice tentar descrever meus pensamentos. Sentindo-me desmaiar, cambaleei até a parede
oposta. Por um instante, o grupo de policiais que subia as escadas permaneceu imóvel, em um
misto de espanto e profundo terror. No momento seguinte, uma dúzia de braços robustos
esforçava-se por esboroar a parede. Ela caiu inteira. O cadáver, já bastante decomposto e
coberto de sangue coagulado, estava ereto perante os olhos dos espectadores, na mesma posição
em que eu o deixara. Mas sobre sua cabeça, com a boca vermelha escancarada e uma chispa de
fogo no único olho, sentava-se a besta horrenda cujos ardis me tinham levado ao assassinato e
cuja voz denunciadora agora me levaria ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro do
túmulo!

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⏰ Última atualização: Jun 14, 2019 ⏰

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