Acordei com uma sensação particularmente estranha. A princípio não soube dizer se era o horário ou o clima, mas algo não estava no lugar. Abri os olhos lentamente e tentei encarar meu despertador, que deveria estar tocando e vi que já eram 6:40. Era para eu estar na faculdade às 7:30. Ótimo, iria me atrasar de novo. Pulei da cama e corri até o banheiro do meu quarto, tomei um banho rápido e gastei um bom tempo tentando dar um jeito no meu cabelo. De volta ao quarto, escolhi um moletom mesmo, afinal, em pleno mês de julho os ares por Vancouver estavam no auge do frio.
Quando cheguei na Cozinha, meu irmão Apólo ainda estava tomando o café, ou melhor, fazendo uma escultura com o papel alumínio, como se não tivesse 24 anos.
- Eu realmente tenho a impressão de que você nunca amadureceu- falei enquanto procurava algo pra comer na geladeira
- Bom dia pra você também, Gia. Eu detesto dizer isso, mas, você está quase atrasada. O que não é nenhuma novidade pra nós, já que atrasos está no topo da lista das Georgices
- O fato de você ainda usar um termo que inventou quando éramos crianças me faz ter plena certeza da minha observação anterior, e não, não estou atrasada. E bom dia, Api.
- A mãe te avisou que é pra passar no escritório depois da aula? Ela quer fazer uma daquelas reuniões em família de novo - O fato dele ter mudado de assunto é suficiente pra que eu dê a discussão por vencida.
- Sim, ela falou, tem ideia do motivo?- Nesse momento, A Martha, governanta da nossa casa entrou na cozinha dando passos apressados e curtos.
- Bom dia, crianças. Vocês estão atrasados, não deveriam estar aqui. - Ela era uma mulher de meia idade, rechonchuda e loira como nunca se viu e com bochechas rosadas. Uma típica imigrante alemã, com os melhores abraços e comidas quase tão boas quanto às de uma avó.
- Bom dia, Marthinha, espero que você tenha descansado bem, como está o humor do Rod hoje? Tenho permissão pra fazer alguma gracinha?- Enquanto conversávamos eu devorava um sanduíche de queijo e um copo de café.
- Melhor não, minha filha, ele e seu pai ficaram até tarde no escritório de novo... Provavelmente está em um dia daqueles!- Enquanto ela falava, se movimentava pra lá e pra cá, tirando e guardando coisas, como em uma dança sincronizada e ensaiada por um longo tempo. Apólo soltou uma risada;
- Sinceramente não sei o que seria da gente sem o humor peculiar do Rod, ele é uma peça... Gia, a martha tem razão, se não sairmos agora provavelmente vamos chegar atrasados de novo. Vamos? -Mastiguei o resto do meu pão rapidinho e engoli o café
-Vamos - falei ainda de boca cheia.
Quando cheguei na faculdade, me despedi do Api e fui pra aula, parecia um dia normal, exceto pela sensação estranha que eu ainda estava sentindo, embora, tentando ignorar a todo custo. Na sala, Cris acenou quando eu entrei, indicando que tinha guardado um lugar pra mim, por mais cinco minutos, eu teria me atrasado. A aula era sobre a história das civilizações Romanas, e estava muito interessante.
-Diz a lenda que Roma foi fundada no ano 753 a.C. por Rômulo e Remo, filhos gêmeos do deus Marte e da mortal Rea Sílvia. Ao nascer, os dois irmãos foram abandonados junto ao rio Tibre... - em algum momento minha mente viajou e percebi que meu irmão tinha esquecido de comentar se sabia o motivo da reunião de família que era muito rara e geralmente trazia consigo algumas bombas. Meu celular vibrou em meu bolso, me tirando do meu devaneio, era a Carol perguntando se a festa de hoje estaria de pé, como eu não sabia do que se tratava a reunião, disse que ela e a Cris poderiam ir sem mim, qualquer coisa eu as encontrava lá.
Na hora do almoço, sentei com as meninas que não paravam de falar sobre a tal festa que teria à noite, e especulavam tudo que poderia acontecer. De vez em quando eu ria de alguma coisa que elas falavam, mas, no geral eu não estava prestando muita atenção. O que será que era tão importante que merecia uma reunião de família no meio da semana? Será que algum parente distante da mamãe morreu e deixou mais um bocado de fortuna nas nossas mãos? Credo. Eu odiava pensar nisso. Odiava que pessoas com as quais eu quase não tive contato tivessem tanto dinheiro pra distribuir pra gente que ja tem dinheiro o suficiente. Isso gerava um ciclo sem fim de gente interesseira fazendo visitas com fins meramente lucrativos aos parentes que no fundo consideram insuportáveis... De vez em quando, um primo distante aparecia lá em casa para uma dessas visitas. Será que era esse o motivo da reunião? Uma visita?
- Ei, Gia! Tá aí?? – Despertei do meu fluxo de pensamentos e as meninas estavam me encarando
– O que disse? – perguntei à Carol que balançava a mão insistentemente na frente do meu rosto
– Eu disse – ela olhou para as outras meninas que a incentivaram com o olhar a continuar – que se você for na festa hoje é a sua chance de reatar com o Julian. —Revirei os olhos.
– Eu pensei que vocês tinham entendido que nós terminamos definitivamente.
– A gente até entendeu... Mas desde que vocês terminaram não conseguimos mais sair com os amigos dele... – Disse a Cris.
– E a gente adora os amigos dele... – A Jessy , que até então não tinha falado nada, completou.
– Vocês são hilárias, eu prometo tentar convencê-lo de que somos apenas amigos e então, TALVEZ a gente possa voltar a sair junto todo mundo.
– Combinado então. – Elas pareceram satisfeitas com minha resposta e voltaram a conversar sobre qualquer coisa.
Depois da aula, chamei um uber e fui direto para a empresa dos meus pais, ficava a uns 15 minutos de carro, então, embora fosse horário de pico, passou bem depressa. Quando cheguei lá, fui direto para o último andar, onde ficava o escritório do meu pai e de onde ele conseguia comandar tudo. Fui recebida na entrada do Andar pela Vanessa, a secretária particular do meu pai há mais de 10 anos.
– Ei Vanessa, tudo bem?
– Oi Srta.Geórgia! Que bom te ver! – eu me lembro de ter passado a vida inteira pedindo à ela que me chamasse de Gia, mas, nunca deu certo.
– Meus pais estão?
– Eles saíram tem uma meia hora, mas seu pai disse pra mandar você e seu irmão esperarem na sala dele até que ele volte.
– Ah, tudo bem então, obrigada.
Entrei na sala do meu pai e o Api já estava lá, assistindo jogo na televisão e jogado no sofá.
- Ei Api, chegou rápido
- Matei a última aula de História do Canadá e vim – Ele falou sem tirar os olhos da TV
— E já tá esperando há muito tempo? Eu tenho uma festa e as meninas insistiram pra eu ir, não queria demorar tanto aqui. — Caminhei até o frigobar na esperança de encontrar algo pra comer, eu estava morrendo de fome, achei meio sanduíche com aspecto duvidoso e uma maçã, preferi o sanduíche, eu realmente estava com fome.
— Já faz uma meia hora que cheguei, acho que não deve demorar, se fosse algo realmente sério, eles teriam nos esperado bem aqui.
— Tem razão, é só que eu não me aguento mais de curiosidade, passei o dia me perguntando o que poderia ser... Sem contar que hoje acordei com uma péssima sensação.
— Relaxa, mana, não é nada demais, provavelmente algum parente que vem por aí nos visitar ou algo do tipo, né?
— Foi o que eu pensei também... Só nos resta esperar. O que você tá assistindo? — ele estava concentrado demais e não me respondeu. Sentei ao lado dele no sofá, e encarei a tv por um segundo até entender que se tratava de um filme. Pouco tempo depois eu estava prestando tanta atenção quanto ele.
Quando o filme acabou, olhei no relógio e havia se passado uma hora.
— Eles estão demorando, devemos ir embora? — perguntei ao Apólo, na esperança de que ele dissesse sim.
— Vou ligar pro pai e você liga pra mãe, se eles concordarem podemos encontrá-los em casa.
Peguei meu celular e disquei o número da minha mãe, mas, chamou até cair na caixa postal. Tentei de novo, nada. Tentei mais uma vez, só pra ter certeza, sem resposta.
— A mamãe não está atendendo. — Olhei pra ele um pouco impaciente, eu estava sem banho e aquele mísero pedaço de sanduíche não tinha sido suficiente pra matar a minha fome
— Que estranho, nem o pai... Eles devem estar fazendo algo realmente importante, uma reunião, talvez. Você sabe que eles não gostam de serem incomodados quando estão resolvendo negócios. Vamos esperar mais um tempo, se eles não aparecerem, nós podemos ir embora.
A hora se arrastou bem devagar, em algum momento entre pensar em coisas aleatórias e resmungar mentalmente pela demora, eu adormeci.
Eu usava um vestido vermelho, cor de sangue. Meus cabelos estavam molhados de suor e eu corria desesperadamente. Subindo escadas. Escadas sem fim. De onde eram essas escadas? Do prédio da empresa? Eram tantas escadas... Eu chegava ao último andar e empurrava uma porta, um homem loiro, me esperava. Ele estava de costas. Não parecia alguém que eu conheço, eu estava tão cansada...
— Gia, GIA! Acorda! — acordei com meu irmão me sacudindo sem parar — precisamos sair daqui, temos que ir pra casa! — ele parecia desesperado, eu não me lembrava de tê-lo visto daquele jeito antes
— O que? O que foi? — Eu ainda estava meio grogue, por um segundo pensei estar sonhando novamente quando meu irmão disse:
— A polícia está ali fora, no saguão, eles receberam uma chamada do telefone do papai e depois perderam o contato. Eles não estão em lugar algum, os agentes acreditam que foram sequestrados.
(...)
O tempo que se passou entre eu ouvir aquela informação e eu deitar a cabeça no colo do meu irmão chorando desesperadamente pareceu se resumir a segundos. Mas, na verdade, somaram-se quase 48 horas entre esses dois acontecimentos. Ainda hoje, tanto tempo depois, quando tento me lembrar de todos os detalhes daqueles dois dias, minha memória falha e meu coração se agita, restaram-se tantas pontas soltas que eu nem consigo contá-las. Eu tento colocar tudo no lugar, eu tento tanto. Mas, nem se todas as peças desse quebra-cabeça estivessem encaixadas, faria sentido tudo o que aconteceu naqueles dias. E faria menos sentido ainda tudo o que aconteceu depois.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Das coisas que eu nunca soube
Teen FictionUma garota. Uma empresa Multimilionária. Decisões que colocam sua vida e das pessoas que ela ama em risco.