“Muito antes de morrer, morre o covarde;
Só uma vez o homem forte prova a morte.
Das coisas raras de que tenho ciência,
Sempre me pareceu a mais estranha terem os homens medo,
Embora saibam que a morte, um fim a todos necessário,
“Vem quando vem.”
--Shakespeare, Júlio César.Há alguns dias na vida que simplesmente parecem perfeitos. Alguns dias em que uma certa
tranquilidade toma conta do mundo, quando uma calmaria o envolve de tal maneira que você sente
que poderia simplesmente desaparecer, que você tem uma sensação de paz imune a qualquer
preocupação. Imune ao medo. Ao amanhã. Posso contar momentos como esse nos dedos de uma mão.
E um desses momentos está acontecendo exatamente agora.
Estou com treze anos de idade e Bree, seis; e estamos diante de uma praia de área fina e fofa.
Papai segura minha mão e mamãe segura a de Bree, nós quatro andamos pela areia quente, em
direção ao oceano. Os pingos frios das ondas refrescam meu rosto, aliviando esse abafado dia de
Agosto. As ondas se quebram ao nosso redor e papai e mamãe riem, despreocupados. Eu nunca os vi
tão relaxados. Eu os vejo trocando olhares com tanto amor, quero guardar essa imagem em minha memória para sempre. É um dos poucos momentos que eu os vejo tão felizes juntos e não quero
esquecê-lo. Bree grita, eufórica, empolgada com a quebra das ondas que batem seu peito e com a
força da ressaca, que volta na altura de suas coxas. Mamãe a segura com firmeza e papai aperta mais
minha mão, nos segurando contra a correnteza do oceano.
“UM! DOIS! TRÊS!” papai grita.
Meu pai me levanta no ar puxando minhas mãos e as mãos de Bree. Eu subo, mais alto que a onda
e grito quando ela passa e se quebra atrás de mim. Fico impressionada que papai consegue fica para
ali, tão forte, como se fosse uma pedra, aparentemente alheio às forças da natureza.
Quando mergulho no oceano, sinto um choque com a água gelada que toca em meu peito. Aperto a
mão de papai com mais força quando a correnteza puxa e, novamente, ele me segura com firmeza no
lugar. Sinto que, neste momento, ele vai me proteger de tudo, para sempre.
Onda após onda se quebra na praia e, pela primeira vez em muito tempo, mamãe e papai não
estão com pressa. Eles nos levantam de novo e de novo, Bree grita de alegria. Eu não sei quanto
tempo passou desde este maravilhoso verão, neste dia pacífico na praia, sob um céu cem nuvens, a
água do mar espirrando em meu rosto. Não quero nunca que o sol se ponha, nem que isto mude.
Quero ficar aqui, deste jeito, para sempre. E, neste momento, parece que assim será.
Abro meus olhos lentamente, confusa com o que vejo diante de mim. Não estou no oceano, mas,
sim, sentada no banco de passageiro de um barco a motor, que acelera rio acima. Não é verão, mas
inverno, os bancos estão cobertos de neve. Blocos ocasionais de gelo passam flutuando ao meu lado.
Meu rosto está respingado de água, mas não da fresca bruma das ondas do oceano no calor, e sim de
respingos gelados do Hudson no inverno. Pisco várias vezes até entender que não é uma manhã clara
de verão e sim uma tarde nublada de inverno. Tento entender o que aconteceu, como tudo mudou.
Sinto um calafrio ao me sentar e olho a minha volta, repentinamente alerta. Não durmo à luz do
dia há muito tempo e isso me surpreende. Rapidamente, tento me orientar e vejo Logan, estoicamente
parado atrás do timão, seus olhos fixos no rio, navegando pelo Hudson. Olho pra trás e vejo Ben, com a cabeça entre as mãos e os olhos no rio, perdido em seus próprios pensamentos. Do outro lado
do barco, está Bree, de olhos fechados, inclinada em seu banco, sua nova amiga Rose está abraçada a
ela, dormindo em seu ombro e, sentado em seu colo, está nosso novo mascote, uma Chihuahua de um
olho só, que também dorme.
Estou impressionada por ter conseguido dormir, mas, quando olho para baixo e vejo a garrafa de
champagne pela metade, percebo que o álcool, que eu não tomava há anos, deve ter me deixado
sonolenta – isso combinado com as inúmeras noites sem dormir e tantos dias de adrenalina. Meu
corpo está tão ferido, tão dolorido e machucado, que eu devo ter dormido sozinha. Sinto-me culpada.
Eu nunca deixei Bree fora de vista antes. Mas, quando olho para Logan, com sua imponente presença,
creio que devo ter me sentido segura o suficiente para adormecer desse jeito. De certa forma, é como
ter meu pai de volta. Será por isso que sonhei com ele?
“Bom ter você de volta,” ouço a voz grave de Logan. Ele olha na minha direção, com um pequeno
sorriso no canto de seus lábios.
Inclino-me para frente, contemplando o rio diante de nós, o qual estamos cortando como se fosse
manteiga. O ronco do motor é ensurdecedor e o barco percorre a correnteza subindo e descendo em
movimentos sutis, balançando um pouquinho. O respingo gelado atinge diretamente o meu rosto, olho
para baixo e vejo que ainda estou vestindo as mesmas roupas há dias. Elas praticamente estão
grudadas na minha pele, coberta de suor, sangue e sujeira – e, agora, umidade dos respingos. Estou
molhada, com frio e faminta. Faria qualquer coisa por um banho quente, um chocolate quente, uma
fogueira e uma muda de roupas.
Olho para o horizonte: o Hudson parece um vasto e enorme mar. Estamos no meio da imensidão,
distantes de qualquer margem, Logan sabiamente nos mantém longe de qualquer predador. Ao pensar
nisso, eu imediatamente olho para trás, à procura de comerciantes de escravos. Não vejo nenhum.
Procuro por qualquer sinal de barcos no horizonte a nossa frente. Nada. Examino as linhas das
margens em busca de algum sinal de atividade. Nada. É como se tivéssemos o mundo somente para
nós. É confortante e desolador ao mesmo tempo.
Aos poucos, vou baixando minha guarda; Sinto como se tivesse dormido por muito tempo, mas
pela posição do sol no céu, ainda estamos no meio da tarde. Eu não devo ter dormido por mais de
uma hora, no máximo. Olho a minha volta procurando por algum ponto de referência. Afinal, estamos
perto de voltar para casa. Mas não encontro nada.
“Por quanto tempo eu dormi?” pergunto a Logan.
Ele dá de ombros. “Talvez uma hora.”
Uma hora, eu penso. Parece que foi uma eternidade.
Verifico o ponteiro da gasolina, ele mostra que já está meio vazio. Isso não é um bom sinal.
“Algum sinal de combustível em algum lugar?” eu pergunto.
E, no momento em que o faço, percebo como é uma pergunta estúpida.
Logan olha pra mim, como se dissesse sério mesmo? Mas, é claro, se ele tivesse visto algum
posto, ele teria parado.
“Onde estamos?” eu indago.
“Essa é sua região,” ele diz, “Eu ia perguntar a mesma coisa pra você.”
Examino o rio novamente, mas ainda não reconheço nada. Isso é coisa do Hudson – tão vasto, de
extensão infinita, é tão fácil desnortear-se nele.
“Por que você não me acordou?” eu pergunto.
“Por que eu deveria? Você precisava descansar.”
Não sei mais o que falar para ele. É isso que acontece com Logan: eu gosto dele, e acho que ele
gosta de mim, mas não sei se temos muito que falar um para o outro. E o fato de ele ser introvertido,
e eu também, não ajuda.
Continuamos em silêncio, água branca vai se formando abaixo de nós, me pergunto quanto mais
poderemos aguentar. O que faremos quando o combustível acabar?
Ao longe, detecto alguma coisa no horizonte. Parece algum tipo de estrutura na água. A princípio,
pergunto-me se estou vendo coisas, mas então Logan estica seu pescoço, atento, e eu percebo que ele
também deve ter visto.
“Acho que é uma ponte,” ele diz. “Uma ponte demolida.”
Vejo que ele está certo. Cada vez mais perto, está um altíssimo pedaço de metal retorcido,
sobressaindo da água como se fosse algum tipo de monumento do inferno. Eu me lembro dessa ponte:
ela costumava atravessar lindamente o rio; agora, é um monte de sucata, que mergulha na água
fazendo ângulos irregulares.
Logan desacelera o barco, o motor vai silenciando à medida que nos aproximamos. Nossa
velocidade cai e o barco se mexe violentamente. Os metais retorcidos aparecem em todas as
direções, Logan navega, virando para a esquerda e para a direita, criando seu próprio caminho. Olho
pra cima conforme avançamos sobre os escombros da ponte, que se emerge sobre nós. Parece que
tem centenas de metros de altura, um testamento do que o homem, um dia, foi capaz de fazer antes de
começar a matar uns aos outros.
“A Ponte Tappan Zee,” eu comento. “Estamos à uma hora do norte da cidade. Temos uma boa
vantagem, se eles vierem atrás de nós.”
“Eles virão atrás de nós,” ele diz. “Pode apostar que sim.”
Olho para ele. “Como você tem tanta certeza?”
“Eu os conheço. Eles não esquecem, jamais.”
Quando passamos pelo último resto de metal, Logan ganha velocidade e eu inclino para trás
enquanto aceleramos.
“Quão longe atrás de nós você acha que eles estão?” pergunto.
Ele olha para o horizonte, sério. Finalmente, dá de ombros.
“Difícil dizer. Depende do tempo que levaram para reunir as tropas. A neve está pesada, o que é
bom para nós. Talvez três horas? Seis, se tivermos sorte? Uma coisa boa é que essa belezinha aqui é
rápida. Acho que podemos continuar na frente enquanto tivermos combustível.
“Mas não teremos,” eu falo, ressaltando o óbvio. “Nós saímos com um tanque cheio – agora ele
está na metade. Ficaremos vazios em algumas horas. O Canadá está bem distante. Como acha que podemos encontrar combustível?”
Logan olha para a água, pensativo.
“Não temos escolha.” ele diz. “Precisamos encontrar. Não há alternativa. Não podemos parar.”
“Precisaremos descansar em algum momento,” eu falo. “Precisaremos de comida e de algum tipo
de abrigo. Não podemos ficar a essa temperatura dia e noite.”
“Melhor passar fome e frio do que ser pego por comerciantes de escravos,” ele fala.
Penso na casa de meu pai, rio acima. Vamos passar bem ao lado dela. Lembro-me da minha
promessa à minha cachorra, Sasha, de enterrá-la. Também penso em toda a comida que havia lá, na
casinha de pedra – poderíamos pegá-la, iria nos sustentar por dia. Penso nas ferramentas na garagem
de papai, em todas as coisas que seriam úteis. Sem falar das roupas extras, lençóis e fósforos.
“Quero fazer uma parada.”
Logan se vira e olha para mim como se eu fosse louca. Posso ver que ele desaprova minha ideia.
“Do que você está falando?”
“Sobre a casa de meu pai. Em Catskill. Cerca de uma hora ao norte daqui. Quero passar por lá.
Há muitas coisas que podemos resgatar. Coisas que iremos precisar. Como comida. E...” eu pauso,
“eu quero enterrar minha cachorra.”
“Enterrar sua cachorra?” ele pergunta, sua voz ficando mais alta. “Você enlouqueceu? Você quer que
todos nós sejamos mortos por isso?”
“Eu lhe prometi,” eu digo.
“Prometeu?” ele retruca. “A sua cachorra? Morta? Você está brincando.”
Eu o encaro e ele percebe rapidamente que não estou.
“Se eu prometo algo, eu cumpro. Eu enterraria você se eu prometesse.”
Ele balança a cabeça.
“Ouça,” eu falo seriamente. “Você queria ir para o Canadá. Poderíamos ter ido para qualquer
lugar. Esse era o seu sonho. Não meu. Quem sabe se essa cidade realmente existe? Estou seguindo você
por um capricho seu. E este barco não é só seu. Eu só quero passar na casa de meu pai. Pegar algumas coisas que precisamos e enterrar minha cachorra. Não vai demorar muito. Estamos bem à
frente dos comerciantes de escravos. Sem mencionar que temos uma pequena vasilha de combustível
lá. Não é muito, mas vai ajudar.”
Logan lentamente balança sua cabeça.
“Prefiro não pegar esse combustível e não correr tanto risco. Você está falando das montanhas.
Está falando de uns trinta quilômetros terra adentro, não é? Como acha que chegaremos lá após
pararmos nas docas? Escalando?”
“Eu sei que tem um caminhão velho. Uma picape surrada. É só uma carcaça enferrujada, mas
anda e tem combustível suficiente para nos levar e nos trazer de volta. Está escondida próxima à
beira do rio. O rio nos levará até lá. O caminhão nos levará e nos trará de volta. Será rápido. E então
continuaremos nossa longa jornada para o Canadá. Será o melhor para nós.”
Logan observa a água silenciosamente por um longo tempo, seus punhos fechados firmemente em
volta do timão.
Por fim, ele diz, “Tanto faz. É a sua vida em risco. Mas eu vou ficar no barco. Você terá duas
horas. Se não voltar a tempo, irei embora.”
Eu lhe dou as costas e olho para a água, furiosa. Queria que ele fosse comigo. Sinto que ele só
pensa nele mesmo e isso me deixa desapontada. Pensei que ele fosse melhor que isso.
“Então, você só se importa consigo mesmo, é isso?” eu pergunto.
Também me preocupa que ele não queira me acompanhar até a casa de meu pai; Não havia
pensado nisso. Sei que Ben não vai querer ir eu gostaria de ter um pouco de proteção. Que seja. Eu
ainda estou determinada. Fiz uma promessa e irei cumpri-la. Com ou sem ele.
Ele não responde e posso ver que está aborrecido.
Contemplo a água, evitando olhá-lo. À medida que a água se agita em meio ao constante barulho
do motor, percebo que estou brava não somente porque estou decepcionada com ele, mas também
porque eu comecei a gostar dele, a contar com ele. Eu não dependia de ninguém havia muito tempo. É
um sentimento assustador depender de alguém de novo, me sinto traída.
“Brooke?”
Meu coração se alivia com o som de uma voz familiar e eu me viro para ver minha irmãzinha
acordar. E Rose também. As duas são como ervilhas de uma vagem, extensões de uma única pessoa.
Eu ainda mal consigo acreditar que Bree está aqui, novamente comigo. É como um sonho. Quando
ela foi sequestrada, uma parte de mim estava certa de que eu jamais a veria de novo. Cada momento
em que estou com ele, sinto como se tivesse recebido uma segunda chance, estou mais determinada
do que nunca a cuidar dela.
“Estou com fome,” Bree fala, esfregando seus olhos com a parte de trás de suas mãos.
Penélope senta-se no coo de Bree. Ela não pára de tremer e então levanta seu olho bom em minha
direção, como se dissesse que também está faminta.
“Estou congelando,” Rose ecoa, esfregando seus ombros. Ela veste apenas uma fina camiseta e eu
me sinto muito mal por ela.
Eu compreendo. Estou com fome e com frio também. Meu nariz está vermelho e eu mal posso
senti-lo. Essas guloseimas que encontramos eram deliciosas, mas pouco nutritivas – especialmente
em um estômago vazio. E isso aconteceu horas atrás. Penso de novo no baú de comidas, no pouco
que restou e me pergunto em quanto tempo ele ficará vazio. Sei que deveria racionar a comida. Por
outro lado, estamos todos passando fome e não suporto ver Bree desse jeito.
“Não sobrou muita comida,” eu digo a ela, “mas posso dar a vocês um pouquinho agora. Temos
alguns biscoitos e biscoitos água e sal.”
“Biscoitos!” elas gritam em uníssono. Penélope late.
“Eu não faria isso,” ouço a voz de Logan ao meu lado.
Olho para o lado e o vejo com um olhar de desaprovação.
“Precisamos racionar.”
“Por favor!” Bree grita. “Preciso de alguma coisa. Estou com fome.”
“Eu preciso dar a ela alguma coisa,” digo firmemente a Logan, entendo sua opinião, mas fico
aborrecida com sua falta de compaixão. “Eu vou dar apenas um biscoito para cada um de nós.”
“E quanto à Penélope?” Rose pergunta.
“O cachorro não vai pegar nenhuma comida nossa,” Logan retruca. “Ela tem que se virar
sozinha.”
Sinto-me, mais uma vez, aborrecida com Logan, apesar de entender que ele está sendo racional.
Mesmo assim, quando vejo o olhar cabisbaixo em Rose e em Bree e ouço o latido de Penélope mais
uma vez, não conseguirei o deixá-la passando fome. Eu disfarçadamente lhe darei um pouco de
comida da minha própria parte.
Abro o baú e dou uma olhada em nosso estoque de comida. Vejo duas caixas de biscoitos, três
pacotes de biscoitos água e sal, vários sacos de ursinhos de gelatina e meia dúzia de barras de
chocolate. Gostaria que houvesse alguma comida mais nutritiva, não sei como faremos para isso
durar, como isso será suficiente para três refeições por dia para cinco pessoas.
Eu tiro os biscoitos e dou um para cada um. Ben finalmente sai do seu lugar ao ver comida e
aceita a sua porção. Ele tem círculos escuros abaixo dos olhos, como se não tivesse dormido. É
penoso ver sua expressão, tão devastada pela perda de seu irmão, desvio meu olhar ao lhe entregar
seu biscoito.
Vou para a frente do barco e dou a Logan a sua parte. Ele pega o biscoito e, silenciosamente, o
coloca em seu bolso, claro, vai guardá-lo para mais tarde. Não sei de onde ele tira tanta força. Eu
enfraqueço só de sentir o cheiro de biscoitos de chocolate. Sei que eu deveria racionar comida
também, mas não consigo. Mordo um pedaço pequeno, decidida a guardá-lo para mais tarde – mas é
tão delicioso que não consigo me conter – eu o devoro inteiro, deixo apenas um pedacinho, o qual
reservo para Penélope.
A comida me faz sentir tão bem. O açúcar sobe a minha cabeça e atravessa meu corpo, gostaria
de poder comer mais uma dúzia. Respiro fundo quando meu estômago reclama, tentando me
controlar.
O rio começa a se estreitar, as margens se aproximam uma da outra à medida que rio serpenteia.
Estamos perto de terra firme e fico bem atenta, analisando a margem, à procura de qualquer sinal de
perigo. Quando fazemos uma curva, olho para minha esquerda e vejo, no alto de um penhasco, as ruínas
de uma antiga fortificação, agora bombardeada. Fico chocada quanto percebo o que era antes.
“A Academia Militar,” Logan fala. Ele deve ter notado ao mesmo tempo que eu.
É impactante ver que este bastião da força americana é agora apenas uma pilha de destroços, seu
mastro da bandeira está retorcido, pendurado sobre o Hudson. Quase nada é igual ao que já foi antes.
“O que é isso?” Bree pergunta com os dentes batendo. Ela e Rose vieram para a frente do barco,
ao meu lado, Bree observa a fortificação, seguindo meu olhar. Não quero falar para ela.
“Não é nada, querida,” eu respondo. “Só uma ruína.”
Coloco meu braço em volta dela e a aproximo de mim, envolvo Rose com meu outro braço e
também a deixo mais perto. Tento esquentá-las, esfregando seus ombros o melhor que posso.
“Quando nós iremos para casa?” Rose pergunta.
Logan e eu trocamos olhares. Eu não tenho ideia de como responder.
“Não iremos para casa,” eu digo a Rose, o mais gentilmente que consigo, “mas estamos à procura
de um novo lar.”
“Nós vamos passar por nossa antiga casa?” Bree pergunta.
Eu hesito. “Sim,” eu respondo.
“Mas não vamos ficar por lá de novo, certo?” ela indaga.
“Certo,” eu falo. “É muito perigoso morar lá agora.”
“Não quero morar outra vez naquele lugar,” ela fala. “Odiava este lugar. Mas não podemos
simplesmente deixar Sasha lá. Vamos passar por lá e enterrá-la? Você prometeu.”
Penso na minha discussão com Logan.
“Você está certa,” eu digo gentilmente. “Eu prometi mesmo e sim, iremos parar.”
Logan se afasta, claramente irritado.
“E depois?” Rose pergunta. “Para onde iremos depois?”
“Continuaremos rio acima,” eu explico. “Até onde ele nos levar.”
“E onde o rio termina?” ela questiona.
É uma boa pergunta e eu a interpreto como uma questão mais profunda. Como terminará tudo
isso? Com nossa morte? Com nossa sobrevivência? Será que terá fim? Existe algum fim à vista?
Não tenho a resposta.
Eu me viro, me ajoelho e olho nos seus olhos. Preciso dar esperança a ela. Algum incentivo para
viver.
“Termina em um lindo lugar,” eu falo. “No lugar para onde vamos, tudo está bem de novo. As
ruas são tão limpas que chegam a brilhar e tudo é perfeito e seguro. Há mais gente lá, pessoas
amáveis que irão nos acolher e nos proteger. Há comida também, comida de verdade, e você pode
comer o tempo inteiro. É o lugar mais lindo que você pode imaginar.”
Os olhos de Rose se arregalam.
“É verdade?” ela pergunta.
Eu aceno que sim com a cabeça. Aos poucos, ela abre um enorme sorriso.
“Quanto tempo vamos demorar a chegar lá?”
Eu sorrio. “Não sei, querida.”
Mas Bree é mais cética que Rose.
“É verdade mesmo?” ela pergunta, baixinho. “Existe mesmo um lugar assim?”
“Existe,” eu falo, tentando parecer convincente. “Não é mesmo, Logan?”
Logan olha para nós, diz que sim a cabeça e logo desvia o olhar. No final das contas, é ele quem
acredita no Canadá, acredita que há uma terra prometida. Como ele poderia negar agora?
O Hudson faz curvas e vai ficando estreito e depois largo de novo. Finalmente, entramos em um território
familiar. Passamos por locais que eu conheço, estamos cada vez mais próximos da casa de
papai.
Viramos uma curva e avistamos uma pequena ilha desabitada, apenas um pedaço de rochas
sobressalente. Nela, há um farol, sua lâmpada foi estilhaçada há muito tempo, sua estrutura agora não
passa de uma fachada.
Passamos por outra curva e, ao longe, avisto uma ponte que cruzei apenas alguns dias atrás,
enquanto perseguia os comerciantes de escravos. Ali, no meio da ponte, posso ver o local da
explosão, a enorme cratera, como se uma bola de demolição tivesse sido jogada bem no centro.
Lembro-me de quando Ben e eu estávamos de moto, correndo, e quase caímos da ponte. Mal posso
acreditar. Estamos quase chegando.
Isto me faz pensar em Ben, me faz lembrar em como ele salvou minha vida naquele dia. Eu me
viro para olhar para ele, que está encarando a água, melancólico.
“Ben?” Eu chamo.
Ele olha em minha direção.
“Lembra-se dessa ponte?”
Ele se vira para olhar e vejo medo em seus olhos. Ele se lembra.
Bree me cutuca. “Tudo bem se eu der a Penélope um pouco do meu biscoito?” ela pergunta.
“Eu também posso?” Rose ecoa.
“Mas é claro que sim,” eu respondo em voz alta para que Logan ouvir. Ele não é o único que
pode mandar aqui e iremos fazer o que quisermos com nossa comida.
A cachorra, no colo de Rose, se anima, como se entendesse. É incrível. Nunca vi um animalzinho
tão esperto.
Bree se inclina para lhe dar um pedacinho de biscoito, mas eu encosto em sua mão, impedindo-a.
“Espere,” eu falo. “Se você vai alimentá-la, ela devia ter um nome, não acha?”
“Mas ela não tem coleira,” Rose diz. “O nome dela pode ser qualquer um.”
“Ela é nossa cachorrinha agora,” eu falo. “Dê a ela um novo nome.”
Rose e Bree trocam olhares, animadas.
“Como deveríamos chamá-la?” Bree pergunta.
“Que tal Penélope?” Rose sugere.
“Penélope!” Bree grita. “Adorei.”
“Eu também gostei,”eu concordo.
“Penélope!” Rose chama a cachorrinha com um berro.
Surpreendentemente, a cachorrinha se vira para Rose quando é chamada, como se seu nome fosse
Penélope desde o sempre.
Bree sorri ao dar-lhe um pedaço de seu biscoito. Penélope o pega e o engole de uma só vez. Bree
e Rose riem histericamente quando Rose dá o resto de seu biscoito. Ela também o morde e então eu
lhe entrego o último pedacinho do meu. Penélope olha para nós, entusiasmada, trêmula, e late três
vezes.
Todas nós rimos. Por um momento, eu quase me esqueço de nossos problemas.
Mas, então, ao longe, por cima do ombro de Ben, eu avisto alguma coisa.
“Ali,” eu falo para Logan, me elevando e apontando para nossa esquerda. “É para lá que
precisamos ir. Vire aqui.”
Eu vejo a península onde Ben e eu passamos de moto, sobre o gelo do Hudson. Fico com aflição
ao pensar nisso, penso em quão louca aquele perseguição fora. É inacreditável que eu ainda esteja
viva.
Logan olha por cima de seu ombro para checar se há alguém nos seguindo e então, relutantemente,
ele vai desacelerando aos poucos, fazendo a curva para nos levar à margem.
Inquieta, eu olho ao meu redor com cautela quando alcançamos a orla da península. Nós
deslizamos junto a ela, fazendo uma curvatura para dentro da ilha. Estamos perto da margem agora,
após passarmos por uma torre de água desmoronada. Continuamos em frente e logo passamos perto
das ruínas de uma cidade, em direção ao seu centro. Catskill. Há prédios queimados em ambos os
lados, parece que foram atingidos por um bombardeio.
Estamos todos atentos à medida que abrimos nosso caminho lentamente pela enseada, indo terra
adentro, a costa está a poucos metros de distância, cada vez mais estreita. Estamos expostos a uma
emboscada e eu percebo que, inconscientemente, estou com minha mão sobre meu quadril, segurando minha faca. Percebo que Logan faz o mesmo.
Olho por cima de meu ombro para ver Ben; mas ele ainda se encontra em estado catatônico.
“Onde está o caminhão?” Logan pergunta, há nervosismo em sua voz. “Eu não irei terra adentro,
digo-lhe isso desde já. Se qualquer coisa acontecer, precisaremos voltar ao Hudson, e rápido. É uma
armadilha mortal,” ele fala, olhando com receio para as margens.
Eu faço o mesmo. Mas a orla está vazia, desolado, congelada, sem ninguém à vista, até onde
consigo enxergar.
“Vê ali?,” eu falo, apontando. “Aquele galpão enferrujado? Está dentro dele.”
Logan percorre mais uns trinta metros e então vira em direção ao galpão. Há um cais velho e
destruído, onde Logan consegue atracar o barco, a apenas alguns metros da margem. Ele silencia o
motor, pega a âncora e a atira para fora do barco. Depois, pega uma corda, faz um laço em uma ponta
e o atira em um poste de metal enferrujado. O laço se fixa e Logan puxa a corda, apertando o nó, para
que possamos alcançar o cais.
“Nós vamos sair?” Bree pergunta.
“Eu, sim,” respondo. “Espere por mim, aqui, no barco. É muito perigoso para você ir. Eu voltarei
logo. Vou enterrar Sasha. Eu prometo.”
“Não!” ela grita. “Você prometeu que nunca mais iríamos nos separar. Você prometeu! Você não
pode me deixar aqui sozinha! NÃO PODE!”
“Eu não irei deixá-la sozinha,” eu digo, meu coração se partindo. “Você vai ficar aqui com
Logan, Ben, e Rose. Você estará perfeitamente segura. Eu prometo.”
Mas, para minha surpresa, Bree se levanta, salta por cima da corda, passando pela margem de
areia e aterrissa, na neve.
Ela fica em pé na terra, com as mãos nos quadris, me encarando, desafiante.
“Se você for, eu vou também,” ela exige.
Eu respiro fundo ao ver que ela está determinada. Sei que, quando ela quer, ela é teimosa.
Será muita responsabilidade levá-la comigo, mas, tenho que admitir, uma parte de mim se sente
bem em tê-la ao meu lado o tempo todo. Se eu tentar convencê-la do contrário, só irei gastar mais
tempo.
“Tudo bem,” eu falo. “Mas fique perto de mim o tempo inteiro. Promete?”
Ela assente com a cabeça. “Prometo.”
“Eu tenho medo,” Rose fala, olhando de olhos arregalados para Bree. “Eu não quero sair do
barco. Prefiro ficar aqui com a Penélope. Pode ser?”
“Eu quero que você fique,” eu lhe respondo, silenciosamente recusando-me a levá-la junto.
Eu me viro para Ben e ele me encara com seus olhos melancólicos. Seu olhar me faz querer olhar para
outro lugar, mas eu me forço a não fazê-lo.
“Você vem?” eu pergunto. Queria que dissesse que sim. Estou chateada por Logan preferir ficar
aqui, por me decepcionar, eu certamente precisarei de ajuda.
Mas Ben, ainda claramente em choque, apenas me encara de volta. Ele me olha como se não
entendesse. Pergunto-me se ele realmente compreende o que está acontecendo ao seu redor.
“Você vem?” eu pergunto com mais firmeza. Não tenho paciência para isso.
Aos poucos, ele balança a cabeça, recusando. Ele está fora de si, eu tento perdoá-lo – mas é
difícil.
Viro-me para sair do barco e saltar para a margem. É uma sensação boa ter os pés em terra firme.
“Esperem!”
Vejo Logan se levantar do assento do motorista.
“Eu sabia que alguma coisa assim iria acontecer,” ele fala.
Ele anda pelo barco, recolhendo suas coisas.
“O que você está fazendo?” eu pergunto.
“O que você acha?” ele retruca. “Não vou deixar vocês duas irem sozinhas.”
Meu coração se enche de alívio. Se eu fosse sozinha, não estaria tão preocupada – mas estou
muito feliz de ter outra pessoa para me ajudar a tomar conta de Bree. Ela salta do barco para a margem.
“Estou te falando agora que isto é uma ideia estúpida,” ele diz, ao ficar ao meu lado.
“Deveríamos continuar indo em frente. Logo irá anoitecer. O Hudson pode congelar. Poderíamos
ficar presos aqui. Sem falar dos comerciantes de escravos. Você tem 90 minutos, entendeu? 30
minutos para ir, 30 minutos para ficar lá e 30 minutos para voltar. Sem exceções de qualquer tipo. Ao
contrário, partirei sem você.”
Olho de volta para ele, impressionada e grata.
“Fechado,” eu falo
Penso em todo esse sacrifício que ele fizera, e começo a sentir algo a mais. Por trás de toda sua
postura, começo a sentir que Logan realmente gosta de mim. Ele não é tão egoísta quanto eu havia
pensado.
Quando estamos quase partindo, ouço uma movimentação no barco.
“Esperem!” Ben grita.
Eu me viro para encará-lo.
“Você não podem me deixar aqui sozinho com Rose. E se alguém vier? O que eu deveria fazer?”
“Tome conta do barco,” Logan responde, virando-se para ir embora.
“Eu não sei pilotá-lo!” Ben berra. “Eu não tenho nenhum arma!”
Logan se vira mais uma vez, aborrecido, pega uma de suas pistolas da faixa em sua coxa e
arremessa na direção de Ben, atingindo-o em cheio no peito, deixando-o confuso.
“Talvez você aprenda como utilizá-la,” Logan fala com desdém ao dar suas costas.
Fico observando Ben, parado ali, parecendo tão indefeso e assustado, segurando uma arma que
ele sequer sabe manejar. Parece completamente apavorado.
Gostaria de confortá-lo. Dizer-lhe que tudo ficará bem e que voltaremos logo. Mas, quando olho
para a vasta montanha que nos espera, pela primeira vez, não estou tão certa de que vai ser assim.
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ARENA 2 (Livro II da trilogia da sobrevivência)- Morgan Rice
General FictionEm ARENA DOIS, após escaparem da traiçoeira ilha que um dia foi Manhattan, Brooke, Ben, Logan, Bree e Rose seguem caminho pelo rio Hudson em seu barco roubado, munidos de pouco combustível, pouca comida e precisando desesperadamente de abrigo contra...