Aurora, a Irmã

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Ela ia descendo as ladeiras da Bahia, o sangue ainda pingando do nariz. O frio a acompanhava pelas vielas, passando facilmente pelo tecido do paletó furtado. Os pés descalços machucando nas pedras. Ela tinha raiva dentro de si, e isso a movia. Era um horário perigoso para uma moça de sua idade, mas a carranca que levava no rosto seria capaz de espantar homem e demônio.
Seu nome é Aurora, pois fora numa aurora em que nascera. Mas a próxima aurora estava longe, e havia um longo e solitário caminho pela frente. Um caminho sem pai, que sumira no mundo antes de sua chegada. Um caminho sem mãe, que fraca e deserdada se fora com a varíola.
O único que sobrara agora era um tio. Este levava o nome de Jorge, mas ela, as escondidas, o chamava Belzebu. Bruto, grosso e sovina, o homem a havia "acolhido" na esperança de herança ou pensão, que nunca apareceram. A raiva dessa ilusão ele havia descontado na menina, obrigada a cuidar da casa e a ajuda-lo no bar desde pequena, sob constante ameaça dos corretivos violentos do tio. Mas naquela noite, as coisas haviam mudado. E, agora, ela ia descendo as ladeiras da Bahia, o sangue ainda pingando do nariz, os pés machucando nas pedras.

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O trapiche estava logo a frente, crescendo conforme se aproximava. A areia fofa entrava entre seus dedos, e o cheiro salgado do mar revigorava. A distância que estava, já era possível identificar as figuras magricelas que dormiam sob a luz da lua, seus peitos subindo e descendo num ritmo tranquilo. Ela logo estava junto deles, desviando dos adormecidos em direção a única fonte de luz do lugar. Conforme andava, alguns dos desnutridos meninos acordavam, cutucando os ombros de seus vizinhos. Quando chegou a vela acesa, onde um garoto em um sobretudo lia um jornal com os olhos apertados, todos já estavam despertos, a olha-la com desconfiança. O garoto do jornal deu a ela um olhar analítico, permanecendo em silêncio como quem pede uma explicação. Ela então decidiu falar.
- Meu nome é Aurora. Quero falar com o chefe de vocês - disse, com um ar de mandona que fazia como ninguém - Quero falar com o Bala.
- Tô aqui - um garoto saiu do meio do grupo, mais velho que os outros, talvez pouco mais velho que ela. Com ele, outros dos maiores também vieram - Qual a razão da procura?
- Quero entrar pro grupo - disse tentando engrossar a voz - Quero ser um capitão de areia.
Os garotos ao seu redor se olharam, os menores cochicharam.
- Não aceitamos garotinha - um menino magricela disse na hora.
- Não mais – outro completou, com um olhar melancólico.
- Não sou garotinha. Sou quase mulher. Sei me defender e roubar tão bem quanto vocês.
E tirou um maço de dinheiros do bolso. Eles a olharam, espantados. O garoto mais alto do grupo, forte como um touro, se pronunciou.
- E o que houve com seu nariz?
- Meu tio, Belzebu. Achou que eu tinha roubado dele - Ela ergueu as mangas do paletó, mostrando as mangas manchadas de sangue da camisa que levava por baixo - Sangrei ele também – Concluiu com um sorriso malicioso. Um dos garotos mais velho, mais bonito e mais bem vestido que todos, riu também.
- Gostei da garota.
- Quieto Gato – Bala interrompeu – Sangrar qualquer um sabe fazer. Que cê faz além disso?
- Sei ler e escrever. Também entendo de número e conta. Era eu que cuidava do dinheiro do tio – Olhou a pilha de livros surrados ao lado do garoto do jornal. Buscando um sentimento de reconhecimento, fez a tentativo – Gosto de livro também. Já roubei uns - Uma luz surgiu nos olhos do garoto. Isso deu a ela confiança - E então? Sou parte do grupo?
Os garotos se olharam em silencio por um tempo. Era difícil imaginar o que pensavam. Se algum tinha algo a discutir, não demonstrou.
- Para mim é um sim – O mais alto disse – Ela parece legal – e deu de ombros.
- Gostei da garota – Aquele mais bem vestido, que aparentemente se chamava Gato, deu seu voto. 
- Ela pode ser de ajuda – o do jornal admitiu – a gente realmente precisa de mais gente que entenda dos números.
Pedro a encarou por um tempo, como se esperasse dela uma reação. Ela estava acostumada a ver os outros tentando faze-la baixar a cabeça.  Como não o fez, Bala deu de ombros – Se vocês concordam para mim tudo bem – e se afastou.
Um alivio, que ela tentou não demonstrar, encheu Aurora. Não havia um plano B para o caso de ele negar seu pedido. Com aquela resposta, a discussão estava encerrada. Enquanto a maioria dos garotos voltava para suas improvisadas camas, aqueles que permaneciam iam, um a um, se apresentando. O mais alto e forte foi o primeiro.
- Me chamam João Grande, sou líder depois do Bala. Se precisar de algo é só chamar - Ela assentiu e deram um aperto de mão, a força da mão dele quase esmagando a dela.
- Então você vai ser nossa mãezinha? – Um garotinho perguntou – A gente teve uma mãezinha uma vez.
- Não. Não sei ser mãe. Não tive – Ela respondeu – Mas posso ser irmã. Vocês são irmãos?
- Somos. – ele assentiu com um sorriso.
- Então agora sou irmã – E ele foi embora, feliz, retornando ao sono que abandonara com o alvoroço que sua chegada criara. Nisso, o garoto bonito chegou.
- Como bem já lhe disseram, eu sou Gato. É um prazer – Ele pegou a mão dela e a beijou. Ela estranhou. Mesmo com o pouco de cavalheirismo que havia conhecido nos livros, nunca realmente passara por uma situação daquelas. Escondeu a surpresa e fez uma leve reverencia, e Gato se foi para seu canto. O garoto dos jornais foi o próximo.
- Sou o Professor. Gosto de livros também, como pode notar. – E apontou para a pilha - Teremos que achar um colchão para você, e devemos ter alguma roupa do seu tamanho em algum lugar. Sinta-se a vontade para explorar enquanto isso.
Ela agradeceu e, como ele havia recomendado, explorou o espaço do trapiche. Não havia muito a se ver, mas, ainda assim, havia muita história. Alguns garotos tinham travesseiros finos, enquanto outros dormiam com a cabeça apoiada em malas, onde ela imaginou que seus poucos pertences estavam guardados. Alguns tinham um anel em um dos dedos ou uma corrente de algo que tentava ser ouro, mas a maioria só tinha a roupa do corpo. Um, ela notou, tinha um altar, com imagens de Cristo e Maria.
Quando não havia mais o que observar, sentou no areal e encarou o horizonte. Em seu antigo quarto, pequeno e construído de qualquer modo, pouco se via do céu. Mas ali, onde o mar uma vez estivera, a lua brilhava cheia e iluminava o trapiche. Quando saiu de seus devaneios, encontrou Pedro Bala em pé ao seu lado, também encarando o infinito a sua frente.
- Nunca vi a lua assim – comentou.
- É uma vista bonita – ele concordou - mas tem um preço.
- Já paguei preços demais por coisas que não fiz – refletiu, relembrando tudo o que passara sob a vigilância do tio - Esse eu escolhi.
- É um bom argumento – ele considerou – Acho que também penso assim. – Virou-se para ela, olhando em seus olhos com uma seriedade inesperada para alguém de sua idade. – Bem vinda aos capitães de areia – E sorriu.
Ela retribuiu o sorriso, e ficaram a olhar a paisagem como velhos conhecidos. E, naquela aurora, pela primeira vez em sua vida Aurora teve uma família.
 

Capitães da Areia - Aurora, a Irmã Onde histórias criam vida. Descubra agora