— Não sei se quero ficar aqui.
Desta vez, a fala provém de Chia, não de mim.
De seu lugar, numa poltrona acolchoada na parte interna do salão que nos cederam, minha melhor amiga balança-se para frente e para trás, numa dança inquietante que me perturba. Ela parece à beira de uma crise.
Eu riria se não estivesse na mesma situação.
A primeira vez que descobri minha habilidade de vislumbrar coisas que outras pessoas — pessoas normais — não podem ver com clareza, eu tinha oito anos. Queria, mais que tudo, um fim ao ciclo que estava vivendo naquele período, e defini para mim mesma que faria o que fosse preciso para deixar aquela fase para trás, deixar aquela perturbadora habilidade em meu passado. Foi quando decidi que esta habilidade seria meu maior segredo. Aceitei que tinha um dom verdadeiro para fazer planos e montar estratégias e prometi que usaria isso para me manter segura, para que ninguém descobrisse as coisas terríveis que podia ver, mesmo sem querer.
Passei a agir como se esta habilidade horrível não existisse mais, enquanto fazia planos para abandonar a vida que levava. No fim, o primeiro plano que fiz, a primeira vez que usei todas as lições que havia recebido até então, rendeu frutos, resultados que me tiraram de meu pesadelo real, mas os desvios foram muitos e o preço que me custou realizar aquilo que tinha planejado fez com que meu esforço não valesse tanto a pena. Aos nove anos, provei, pela segunda vez, o que é se arrepender com amargura por uma decisão; ficar sozinha sempre foi muito mais fácil e inteligente e menos perigoso.
É automático comparar a situação passada com meu presente, quando eu encarara a expressão rígida de Samuel, ao lado de Samantha, após o anúncio de que estávamos em meio um ataque, como predissera o homem no descampado.
Acredito que a expressão raivosa do homem não teria me assustado como assustou se minhas lembranças não fizessem meu cérebro comparar a atual situação com minha infância.
E, aqui estamos nós, num canto qualquer do grande salão ocupado por três dúzias de jovens Provincianos histéricos que acabam de descobrir que o que é estar em frente a uma autêntica possibilidade de guerra acontecendo em seu novo quintal.
Medrosos covardes, mas sortudos pela falta de conhecimento. Ao menos nenhum se deparou com um... Lobo, em sua janela.
E Alina, no meu caso.
O que foi aquilo? Como isso é possível?
— Bem, agora sabe como me sinto —, rebato, mesmo que não seja exatamente o que penso.
Chia não está nem perto de saber o que sinto.
— Eu achei que esse tipo de coisa só acontecia em Aliança —, comenta Chia, com uma careta, trazendo-me de volta para o presente.
— O quê? Guerras? — Retruco, apesar de saber a resposta.
— Não, ataques por posse de terra —, explica ela, sem entender meu sarcasmo.
— Como sabe que eles vieram por este motivo? — Renato, sem querer continuar com o assunto, mas abominando ainda mais o silêncio.
—Por que mais seria? — Frida abre a boca, mas Chia não permite que ela fale. — Essa gente tem um monte de terra todinha pra eles, sem a interferência de ninguém no mundo, e ainda assim brigam por cada pedaço dela. Não sabem dividir?
— Exatamente como Aliança —, cantarola Frida, brincando a manga de sua blusa.
Chia faz cara feia para ela, virando-se para mim. Finjo não notar.
Faço careta quando Penny puxa forte demais meu cabelo, enroscando os cachos uns nos outros, embora ela não possa ver minhas feições.
— Desculpe, está embaraçado —, esclarece a menina, acima de meu ouvido, parecendo muito pouco arrependida para ter sido um gesto acidental.
— Não está embaraçado. Tenho cachos rebeldes, só isso —, contesto, passando o dedo por uma ruguinha na ponte do meu nariz, fazendo caso omisso de sua repreensão silenciosa.
Penny para de mexer, deixando-me com um coque malfeito desorganizado e, de fato, embaraçado.
Internamente, eu me encolho, sabendo que chamei atenção com minha reação exageradamente resignada e serena.
Em minha mente, tudo que posso ver é o rosto de Alina, seu grito mudo após perder a língua, e os lobos. Sempre os lobos.
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Artefatos de Sangue
Paranormal"Eu nunca quis ser parte disso. Nunca quis fazer parte dessa guerra. Nunca quis ter que escolher um lado. Mas, por eles, e por mim, eu finalmente queria tentar". Embarque nessa aventura, afogue-se nessa história enigmática e envolva-se num mundo de...