A minha última carta para ti

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Desde pequena eu lembro-me que sentia que existia uma barreira entre nós. Eu acho que nunca vou ser aquilo que tu esperas que eu seja. Eu já aceitei isso há algum tempo. Eu também acho que nunca vais ser aquilo que eu espero que tu sejas e essa é a parte mais difícil de aceitar.

Quando era pequena, o pai levava-me ao café quase todos os dias. Tu e a Cristiana ficavam em casa e talvez nessa altura eu comecei a criar uma ligação inseparável com ele. O pai tornou-se a minha pessoa preferida desde que eu era muito pequena e eu sei que por vezes ele não me entende, que muitas vezes não sei agir corretamente, sei também que ele muitas vezes não age como eu espero mas no fundo nós sabemos que a nossa ligação será sempre rodeada de momentos de amor que não precisam ser ditos.

Mas desta vez não vou falar do pai mas sim de ti.

Enquanto eu ia para o café, eu acho que me distanciava de ti. A Cristiana é cinco anos mais velha que eu e por esse motivo eu nunca estava presente nas vossas conversas adultas. Por ser tão nova, ou por não fazer parte da vossa ligação, eu virei-te as costas e eu acredito que sem tu quereres, naquela altura, viraste-me as costas também.

Apesar de eu não ter crescido com as mesmas regras e com as mesmas exigências que a Cristiana, coisa que lamento, pois provavelmente seria mais forte agora do que sou, eu sempre respeitei os valores e as regras que tu e o pai impuseram dentro de casa. Enquanto os meus amigos experimentavam coisas proibidas, eu pensava em ti. Enquanto eles pulavam muros para fugir da escola, eu pensava em ti. Enquanto eles faltavam as aulas, eu pensava em ti. Enquanto eu sofria de bullying na escola, eu pensava em ti e no que passaste com a Cristiana, então eu sofri muitas vezes sozinha.

Eu sei que sempre fui muito leve, sorridente, divertida e fui tudo isso por ti. Para te surpreender. Para que me admirasses, para que me amasses. No entanto eu nunca recebi nenhum elogio teu. Acho que nenhuma criança deve sentir medo da mãe, sentir medo das palmadas que pode receber, as chapadas e os empurrões. Não digo que não os mereci, muitas das vezes eu sei que não conseguias agir de outra forma porque eu sempre fui uma tempestade dentro de um copo de água. Mas hoje eu sei, que por todas as chapadas e palavrões que prenunciaste para me chamar ou para simplesmente me ofender, todas as tuas atitudes racionais ou irracionais, criaram em mim uma dor e mágoa que eu desejava todos os dias não sentir quando penso em ti.

Eu sempre fui aquilo que tu não querias que eu fosse e eu sei que por vezes eu simplesmente fui assim para chamar a tua atenção. É fácil sermos aquilo que nos chamam. É fácil porque se é isso que acreditam que nós somos, é fácil termos esse papel.

Eu gostava que naquela altura, quando eu era bebé, não saísses de casa com a Cristiana para te esconderes perto da farmácia. Podes ficar admirada por me lembrar disso, mas essa é a minha primeira memória que magoa. Talvez pensavas que isso me faria calar, mas isso fez com que eu quisesse gritar bem mais alto do que todos os gritos que ouviste da minha boca. Eu tinha pavor de te perder. Que fugisses de perto de mim, mas tu fugias.

Eu gostava que todas as vezes que eu tive uma atitude errada, me tivesses concertado, que me tivesses corrigido. Cada vez que eu tive uma atitude errada, porque não me quiseste ouvir? Porque me insultaste? Porque é que me deste uma chapada em vez de me perguntar porquê?

Infelizmente o nosso erro foi a falta de comunicação. Tu gritavas, eu gritava. Eu chorava e tu dizias que eu era sonsa e que estava a chorar para me fazer de coitada. Porque não acreditaste nas minhas lágrimas quando elas eram deitadas para ti?

Este ano eu passei pela minha fase mais difícil e tu tiveste comigo todos os dias. E eu não posso agradecer o suficiente por teres sido tudo o que eu desejei a vida inteira. A minha conselheira, o meu porto de abrigo. Tu levavas me ao cinema, passeávamos juntas, levaste-me a uma psicóloga e choravas comigo, mesmo que em silêncio. Foste tudo o que eu sonhei. A relação que eu sempre desejei.

Mas agora as coisas mudaram outra vez. Cada vez que eu grito, tu gritas, cada vez que eu choro, tu não compreendes, cada vez que eu estou triste, tu não estas atenta. Cada vez que eu tenho uma atitude errada, tu não me corriges e cada vez que eu digo entre virgulas que não estou bem tu dizes "eu já te ajudei muito, se precisares de mim, sabes onde estou". Para além disso, todas as palavras que proferiste ontem, são todas aquelas que eu tentei curar quando me sentei naquele escritório, com aquela psicóloga. Eu tentei perdoar no meu coração um pedido de desculpas que tu nunca me pediste, por todas as ofensas e pelo medo que muitas vezes eu senti da tua expressão e do teu desagrado. Eu lamento nunca ter sido o que tu querias que eu fosse. Eu lamento nunca ter sido aquilo que eu queria ter sido.

Eu não te considero uma má mãe. Eu agradeço a Deus por te ter. Mas eu sempre te procurei mais do que tu. Eu sempre te amei mais do que tu. Eu sempre estive aqui mesmo quando as tuas palavras eram dirigidas para as outras pessoas.

 Não é inveja mãe, eu sempre te quis mais porque sempre te admirei mais. Sempre olhei para ti como uma força da Natureza. Eu só queria que os teus ressentimentos com a tua própria mãe, não te fizessem tão dura comigo. Eu só queria que me tivesses entendido, que tivesses entendido cedo que eu não era nem leve, nem feliz, nem engraçada. 

Eu simplesmente te queria mãe. 

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⏰ Last updated: Jul 05, 2019 ⏰

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