Você pode até dizer que é estória de trancoso, mas eu garanto que não é. Aconteceu numa noite de lua cheia, em agosto; se não me engano era dia treze.
Fazia pouco tempo que eu tinha abandonado a roça, morta pela seca que crestava o sertão. Mas não fui muito longe não. Ao contrário de muitos conhecidos e parentes, eu fiquei numa cidade do interior mesmo, na esperança de a seca terminar e eu poder voltar logo para a roça. Muitos amigos disseram que para a roça não voltavam mais, iam tentar a sorte no sul, onde tem trabalho para todo mundo e a chuva nunca falta. Eu preferi ficar por aqui mesmo, acreditando que Nossa Senhora há de mudar nossa sorte, esperando o dia em que o sertão vai virar mar.
A cidade já estava cheia de retirantes, talvez muita gente que pensava como eu, ou então que já arranjou alguma coisa para fazer. Falei com o padre, que me deu uns pães secos e disse que não podia abrigar mais ninguém; a igreja e o salão paroquial já estavam cheios. Fui na prefeitura, o prédio feio e caindo aos pedaços. O prefeito, homem magro e nervoso, demorou um bocado para me atender. Quando entrei no escritório dele, logo vi uma imagem de meio metro de Nossa Senhora. Me ajoelhei e me benzi e beijei os pés da santa. Então contei o meu martírio ao prefeito, que não parava de mexer no bigodinho fino.
"Meu amigo", disse ele, "eu estou cheio de pedidos, de flagelados, de retirantes. A cidade é pequena e a prefeitura, pobre". O prefeito buliu-se na cadeira antes de continuar a choradeira, mas eu me adiantei.
"Eu aceito qualquer serviço, não posso ficar parado".
Ele mexeu a cara, buliu no bigodinho e disse assobiando, o ar escapulindo pela falha da dentadura.
"Eu só tenho uma vaga, um serviço que ninguém quis".
"Pois eu quero", apartei logo para não encompridar a conversa.
"É ser vigia no cemitério... de noite".
Eu senti a barriga esfriar. Quase que eu me benzia três vezes, ali mesmo, na frente do homem. Não o fiz para não pensar que eu era frouxo.
"Como é, aceita?" insultou ele.
Fiz uma cara de macho e disse sem piscar: "Aceito".
Até hoje eu não entendi, mas ele deu uma risadinha e se levantou. Eu levantei junto. Ele passou o braço pelo meu ombro e me levou até outra sala onde cochilava um funcionário que já devia ter sido aposentado há uns cinco anos.
"Severino, leve nosso amigo até o cemitério e avise ao Pedro que agora vamos ter vigia noturno".
Severino me olhou com os olhos enfadados e saiu sem dizer nada. O prefeito voltou para sua sala e eu, por falta de algo melhor a fazer, corri atrás do funcionário que mal tinha saído da prefeitura.
Pedro, o outro vigia, era um velhinho que só estava o caco. Banguela e engelhado. Ele me explicou como era o serviço. Dar umas voltas pelo meio dos túmulos e também em redor do muro. Tudo muito simples.
Os serviços correram muito bem durante algum tempo. Eu quase não tinha nada a fazer, a não ser impedir que os cachorros entrassem para fuçar as covas. Ainda bem que o prefeito não me botou para ser coveiro. Os coveiros têm trabalho todo dia.
Nessa noite do dia 13 de agosto, noite de lua cheia, ventava que só vendo. Cheguei no cemitério à boca da noite. Pedro foi embora e me deixou só. Juntei logo umas pedras perto do tamborete e peguei a baladeira. Tinha certeza que naquela noite viriam muitos cachorros. Durante o dia enterraram cinco pessoas, todas elas em redes, pois já não havia caixões de defunto.
Lá pelas oito horas eles começaram a chegar, bocas abertas, babando, ventas fungando. Antes que eles entrassem pelos buracos do portão gradeado, comecei a espantá-los com pedradas. Foi até divertido enquanto durou, os bichos correndo e gritando: "caim, caim, caim".
Depois que eles se foram, não demorou muito e veio a solidão e o tédio. Passei a escutar tudo quanto foi de zoada, de bicho e de coisas. O vento bulia nas folhas de ciprestes e arrastava as secas pelo chão. Os galhos dos ciprestes gemiam lamentos do outro mundo.
A lua saiu de trás de uma nuvem iluminando o campo santo. Cruzes de sombras desenharam-se no chão poeirento. Uma coruja piou ao longe e um peba emburacou numa das covas feitas durante o dia.
A noite foi passando vagarosamente, a lua brincando de esconder com extensas nuvens negras de bordas alvas. Eu já estava cochilando escorado no muro, abrigado do vento e da poeira quando um barulhinho esquisito foi entrando no meu ouvido e acabou me despertando.
Chap, chap, chap.
Parecia barulho de água. Levantei, olhos arregalados procurando enxergar entre as sombras da noite.
Chap, chap, chap.
O barulho continuou. Resolvi ver o que era. Tomei o terço de plástico azul que trouxera do Juazeiro do meu "Padim" padre Cícero e me benzi três vezes. Beijei a cruz num misto de devoção e medo do sobrenatural.
Chap, chap, chap.
Enquanto caminhava, me vieram à lembrança todas as estórias de alma que já haviam aparecido aqui, neste cemitério.
"Ave-Maria cheia de graça, o Senhor é convosco..." Enquanto andava na direção do som, por entre as sepulturas, eu tirava a terço. Quando eu estava na terceira Ave-Maria eu vi.
Embaixo do ingazeiro, perto da tumba do Dr. Aristides, um vulto alto, nu, à meia-noite tomava banho no cemitério. O meu medo aumentou. Qual era o cristão que em sã consciência viria tomar banho no cemitério, à meia-noite, dia 13 de agosto? Senti os joelhos tremerem. Só tinha uma explicação: era o Dr. Aristides. No pouco tempo que eu estava na cidade já tinha ouvido falar que o Dr. Aristides, homem alto, sulista, gostava de tomar banho de cuia altas horas da noite.
Chap, chap, chap.
Continuei rezando o terço. Até que eu queria ir até lá, mas os pés não. Quando eu comecei o Pai Nosso o vulto derramou o resto da água do tambor de lavar as pás dos coveiros e veio justo na minha direção, roupas debaixo do braço.
Quando eu estava no "pão nosso de cada dia" o vulto passou perto de mim. Vencendo o medo pulei para perto dele e tentei segurar-lhe o braço.
"Que é que você está fazendo..." Nem cheguei a terminar. O vulto solto um berro de gelar o sangue e arrepiar o cabelo.
"Ahhh!!!! Uma alma!!!!"
E desabou a correr pelo meio das covas, a poeira cobrindo tudo. Na hora que eu tentei agarrar a aparição só consegui pegar a camisa.
Até hoje não sei se era gente de carne e osso ou se era uma aparição. Só sei que ainda hoje guardo a camisa, de linho fino, igual à que o Dr. Aristides usava no dia do enterro.
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Nu, à meia-noite, tomava banho no cemitério
Mystery / ThrillerFlagelado da seca nordestina deixa a roça e busca trabalho numa cidade do interior. Só consegue trabalho de vigia noturno do cemitério. À meia-noite do dia 13 de agosto, noite de lua cheia, algo o surpreende.