Capítulo único

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Estou sentada em uma cadeira de madeira e palha, ela é gasta e range quando a gente se mexe. Toda essa palha entrelaçada me intriga. Será que essas cadeiras são feitas por máquinas ou pessoas? Deve dar muito trabalho fazer uma coisa dessas. Gosto de me sentar nela, pois me lembram do sítio dos meus avós. Ela pode parecer feia para os outros, mas para mim é importante. Temos várias dessas coisinhas que meus avós não querem mais e minha mãe tem dó de jogar fora.
Está um dia ensolarado, o vento agita as folhas das árvores e me faz pensar no som da chuva, eu gosto desse barulho que elas fazem. Me acostumei com o cantar dos pássaros, o cheiro de mato, flores e até com o cheiro que vem do galinheiro no outro lado da rua.
A propósito, a rua é de terra, parece que eu moro no interior. Aqui temos internet onde eu ainda assisto desenhos no celular e uma tv que pega um monte de canais diferentes por causa da antena que temos. Acho que se chama antena carambólica, igual o nome daquela fruta em formato de estrela.
Estou segurando metade de uma maçã em cada mão e esperando.
Os minutos se arrastam e fico olhando em volta para tentar me distrair.
O quintal aqui dos fundos é bem bagunçado, afinal o jardim e o carro do meu padrasto ficam lá na vista de todos e aqui atrás temos a casa para esconder qualquer coisa.
Aqui temos algumas roupas penduradas no varal, o tanque de lavar roupa, um montão de grama até chegar nos muros, minha bicicleta quebrada que as vezes fica coberta por uma lona e outras vezes fica na chuva.
Eu acho que nunca mais vou andar nela. O que é um desperdício porque tem muitos lugares pra explorar no meu bairro.
Aqui também fica o barraco improvisado onde guardam ferramentas e outras tralhas que o meu padrasto usa para sabe se lá o quê.
A única parte decente do quintal dos fundos é a proteção feita para a churrasqueira, um espaço de cimento coberto do tamanho de um quarto de criança. Ali deixamos as outras cadeiras como essa que estou sentada, uma mesa com a madeira mofada, que algum dia vai desmoronar sob o peso de todos os pratos que colocam nela nos domingos em família e há também um banheiro, que eu tenho certeza que é do mesmo tamanho dos de avião.
Meu tio Paulo nunca consegue usar ele, é estreito demais e ele fica muito bravo por isso coitado.
Toda essa parte do quintal e as laterais da casa é protegida por muros altos, bem altos mesmo. Eu consigo ver o topo deles, só que me pergunto quem além do Homem Aranha conseguiria subir até lá.
Acho que está certo, muros servem para guardar lugares e devem ser altos assim. Estou sentada de lado, então o muro dos fundos está à minha direita, a esquerda está a varanda e a porta da cozinha.
Não há ninguém lá dentro e a janelinha está aberta. Mamãe gosta de deixar a casa arejada sempre que possível.
Nas laterais há um pequeno corredor de terra, que segue até lá na frente, onde está o já mencionado quintal.
Ele tem o dobro do tamanho desse aqui, comporta um jardim, dois carros e mais uma parte cheia de mato.
Geralmente ela fica sempre aparada para não pensarem que a gente não cuida da nossa casa. Ou para manter os bichos longe. Já ouvi falar que na casa da minha amiga Raquel apareceu uma cobra. Essa cobra estava no jardim bem pertinho do lugar onde a Raquel e eu brincávamos de casinha. Isso foi no ano passado. quando eu ainda tinha só dez anos, agora eu fiz onze e não quero mais brincar dessas coisas bobas.
Foi isso que falei para a Raquel. Mas a verdade é que eu estava com medo de ir na casa dela e aparecerem mais cobras.
Ouço o barulho do portão da frente e me levanto de um salto. Saio correndo pela direita ladeando a casa e em pouco tempo chego até lá.
- Oi Rayan! - eu digo alegre em ver o meu melhor amigo.
- Oi Cris, seu padastro não tá aí né? - ele pergunta olhando em volta.
- Não, e você sabe que o certo é padrasto. - eu corrijo e ofereço a ele uma das metades da maçã. Estendo a mão com a fruta.
- Obrigado. - ele diz pegando a da outra mão.
Eu dou risada e ele dá uma mordida e diz com a boca cheia:
- Que foi? Eu xou do contá.
- Vamos, eu quero te mostrar o que eu peguei da chatinha - eu digo entusiasmada correndo até a árvore no lado esquerdo do portão. A escadinha para a casa na árvore me parece a única coisa estável aqui.
Eu vou subindo com cuidado mesmo assim. Rayan é mais desconfiado que eu e ele sobe devagar atrás de mim.
Ele pisa em cada degrau testando se vai aguentar o peso dele. Isso não faz sentido, afinal ele me viu subir a poucos segundos.
- Você tem medo de altura. - eu provoco já pisando no chão de madeira da casinha na árvore.
- Tenho mesmo. Se cairmos daqui podemos até morrer sabia? Eu pesquisei na internet. - ele argumenta caminhando devagar até o meu lado.
- Minha mãe e meu avô sempre dizem para não acreditar em tudo que você lê na internet.
- Tá, mas cair do alto de uma árvore machuca qualquer um.
- Mas não mata.
- Se você for uma criança talvez sim.
- Você já é um adolescente.
- Mentira, só serei a partir dos doze. - ele finaliza mordendo outro pedacinho da maçã.
- Tá, deixa pra lá. Eu quero te mostrar o que eu peguei e vou contar o nosso plano.
Ele balança a cabeça concordando sem perguntar mais nada.
O cabelo de Rayan é de um vermelho bem intenso. Acho bem bonito, embora ele deteste. Essa é a única coisa incomum na aparência dele, os olhos são castanhos, o nariz é pequeno e o queixo redondinho.
Ele fica bravo quando eu digo que ele tem carinha de bebê. Mas não falo pra irritar, é só porque olhando prá ele dá vontade de abraçar ou de apertar as bochechas. Eu detesto que façam isso comigo, mas nele parece uma coisa que é impossível não fazer.
Os meus olhos são igualmente castanhos, Meu cabelo é preto como o da minha mãe, também não posso ficar muito tempo no sol, pois tenho a mesma pele sensível que ela.
Minha meia irmã porém tem essa aparência de princesinha, como as crianças lindas da tv, mas ela não tem nada de bonito além da cara. A voz dela é manhosa, o tom de voz alto e irritante.
Ela tem oito anos e já consegue ser uma pestinha, é intrometida e recebe toda a atenção do meu padrasto e da minha mãe. A caixa de madeira que eu puxo do canto da casinha contém algo que ela guardava no baú de bonecas.
O baú rosa horroroso, com tranca e tudo, que fica no lado dela do quarto.
- Olha só isso aqui. - digo ansiosa erguendo as abas da caixa e afastando-as para Rayan poder olhar dentro.
Ele vê que ali há pelo menos umas cinco bonecas Barbie e torce o nariz puxando o ar e bufando logo em seguida.
- Você quer brincar de boneca comigo? -ele pergunta surpreso.
- Não seu bobo, eu quero acabar com essas bonecas. Estragar elas para aquela menina ter um motivo pra chorar de verdade. - eu expliquei tirando uma das Barbies da caixa.
- Podíamos afogar elas. - ele sugere continuando a comer a maçã.
- Não, tem que ser algo melhor. - eu digo pensativa examinando bem a boneca.
- Podíamos enterrar elas no jardim igual os cachorros fazem com os ossos. - sugere ele com um sorriso travesso.
- Terra? Parece bom, mas é pouco. - respondo tentando pensar em algo pior.
- Então eu não sei. Pisa em cima, quebra, sei lá. - ele diz impaciente, após terminar a maçã e atirar o pedacinho que faltava lá na estrada.
Um lado da casa na árvore ficava voltada para lá, então só bastava a pessoa jogar com bastante força para acertar.
- Afinal porque você odeia tanto a Carol? Ela parecia bem legal quando eu vim no aniversário dela a duas semanas.
- Ela não é legal. É uma mimada e chorona. - afirmo irritada, atirando a Barbie na caixa com as irmãs dela.
Rayan não responde nada. Tenho a sensação de que ele não está convencido.
- Ontem ela saiu gritando feito louca quando viu uma aranha bem pequena na parede do nosso quarto. Ela nem quis dormir mais lá. Ficou agarrada com a minha mãe na cama dela.
- Você tá com ciúme.
- Não tô nada! Eu só não gosto da Carol.
Rayan caminha até o canto e se senta em um dos banquinhos que eu deixava ali para nós dois. Vou até ele e me encosto na parede de madeira.
- Você devia falar das coisas. Dessas que te deixam brava. - ele recomenda e dei um suspiro sem saber o que falar.
Eu não quero explicar para ele porque não gosto da Carol, porque isso me da vontade de chorar. Se eu chorasse ia querer ver Niko, o meu amigo imaginário.
Ele sempre vem quando eu estou triste. Se ele aparecer e falar comigo eu vou ter de responder falando, pois só assim ele me ouve. E então o Rayan ia descobrir que eu tenho um amigo imaginário e ia ficar bravo, porque ele acha que é o meu melhor amigo de todos.
- Cris, eu te conto tudo. Até quando eu quero dar um soco na cara do meu irmão porque ele fica me provocando e me fazendo de trouxa todo tempo na escola. - ele argumenta. Resolvo contar os meus motivos e tentar ficar normal.
- Tá, eu vou te contar porque não gosto dela, mas só se você me prometer que depois vamos acabar com as bonecas.
- Eu prometo. - ele diz empurrando o outro banquinho para o lado para eu sentar. Puxei o banquinho para a frente dele.
Ao me acomodar meu joelho bate contra o de Rayan. Ele fica vermelho e se afasta para que isso não aconteça outra vez. A caixa de papelão está jogada por perto, ignoro a missão por um tempo e começo a contar a história a ele com detalhes.
- Você sabe que eles vieram pra cá antes do Carnaval né?
Rayan assente.
- Eu tinha ido ficar com os meus avós e a minha mãe~aproveitou para mudar tudo no meu quarto. Eu fiquei lá até começarem as aulas, porque comprei os materiais junto com a vovó. Ela até me levou na escola no primeiro dia. Eu achei legal, mas foi tudo um truque.
- Um truque? - ele repete curioso.
- Sim, a mamãe me deixou lá para que pudesse colocar uma cama, uma cômoda, uma tv e outras coisas da Carol no meu quarto. Eu não ia saber se não estivesse aqui, entendeu?
Ele faz que sim.
- Os adultos as vezes me deixam envergonhado. - ele comenta balançando a cabeça com expressão raivosa.
- Imagina só o que eu senti quando cheguei da escola e encontrei uma menina magrela de cabelo loiro deitada em uma cama do lado da minha. - comento me recordando da sensação que tive. - Ela tinha tudo quanto era coisa rosa, usava até lentes pra ficar mais parecida com as bonequinhas barbies lindas, que ficavam sentadas na cômoda do lado dela do quarto.
- Você ficou bem brava por não terem te contado nada.
- Fiquei muito mesmo. - concordo juntando as mãos e entrelaçando os dedos. - Foi a primeira vez que gritei com a mamãe e que ela ameaçou me bater.
- Eu já apanhei do meu pai. Não é nada divertido. - ele diz com mágoa na voz olhando para mim com atenção. - Mas a Carol não é legal com você?
- Ela é uma metidinha que ganha tudo que é coisa boa. Ontem a noite o pai dela nos deu sobremesa, pudim de leite. O pedaço dela era duas vezes maior que o meu e depois que ela comeu ela pediu mais. - E ele deu? - Claro. Mas quando eu pedi mais ele falou que o resto era pra mamãe e pra ele.
- E onde tava a sua mãe?
- Trabalhando. Ela agora mudou de horário e fica até tarde na loja.
Rayan fica em silêncio por alguns minutos.
- Cris, só que ainda não entendi porque não gosta da Carol. Ela pode ser bem legal.
- Eu já disse, ela é uma chorona, mimada, por qualquer coisa chama o pai dela. Se eu não deixo ela assistir os desenhos que ela quer na tv, se faço careta pra ela, até se eu vou tomar banho na mesma hora que ela.
- Eu acho que ela pode estar cismada com você, do mesmo jeito que você tá cismada com ela.
- Claro que não! Sabe o que ela fez? Arrancou a minha cartela de adesivos do meu caderno novo e colou nas folhas dela sem me pedir!
Rayan da risada como se aquilo não tivesse importância nenhuma.
- Você ri porque eles não eram seus! - eu falo irritada. - Se fossem adesivos de jogadores de futebol ou de carros você ia concordar que foi errado.
Ele não diz nada, apenas continua rindo.
- Quer saber, não vou explicar mais nada. - declaro já desistindo de tentar provar que Carol era um monstrinho.
Fui até a caixa de Barbies e virei-a, derrubando todas no chão.
- Desculpe. - Diz Rayan vindo até mim e se abaixando ao meu lado.
- Tá, agora eu vou lá em casa pegar umas coisas pra gente dar uma transformação nelas. - eu digo animada deixando Rayan sozinho lá em cima.
Enquanto desço as escadas e corro para dentro, me recordo do choro escandaloso de Carol quando viu a aranha.
Ela era uma bebezona, nem parecia ter oito anos. Eu era muito mais corajosa, porque no fim das contas joguei um sapato na parede e matei a aranhazinha que ela ficou com tanto medo.
Pensei nos garotos da escola, eles tinham esses bichos nojentos de plástico. Quem sabe eu podia arrumar umas outras aranhas ou baratinhas e colocar na mochila da Carol.
Ela ia dar uns berros que até minha amiga Raquel ia ouvir da casa dela. E ela morava na outra parte do bairro, ia ser muito engraçado.
Entrei em casa e fui correndo para o meu quarto. A medrosa estava lá dormindo toda enrolada na coberta macia da mesma cor de todas as coisas que ela tinha.
Eu não ficaria surpresa se ela pedisse ao papaizinho que pintasse as paredes da parte dela de rosa também. Sem fazer barulho peguei algumas canetinhas e um tubo de pasta de dente.
Eu ia usar nos cabelos das Barbies e a canetinha seria para dar a elas uma maquiagem diferente.
Eu sabia que a minha meia irmã só ia acordar as dez, era sempre assim nos sábados. Nós duas tínhamos de acordar cedo pra ir à escola, então ela dormia mais nos fins de semana.
Deixei a bela adormecida e voltei para a casinha na árvore bem rápido.Rayan estava sentado no chão com as bonecas enfileiradas ao lado dele com os bracinhos erguidos.
- O que tá fazendo? - perguntei jogando as canetinhas para ele.
- Elas estão com as mãos pra cima, estão pedindo para não serem transformadas em coisas horrendas. - ele respondeu com um risinho.
- Pois não adianta suplicarem. Vamos deixar vocês mais feias que bruxas. - eu falei pegando a primeira boneca e destampando a canetinha.
- Pra quê a pasta - perguntou Rayan abrindo o tubo e colocando um pouco na boca. - Humm, isso é gostoso.
- É para o cabelo. - expliquei. - Depois que elas estiverem prontas eu vou chamar a Carolzinha pra ver.
Eu ri sentindo uma pontada de culpa e medo. Sabia que ia me meter em problemas com aquilo, mas não me importava tanto ao ponto de desistir.
Ela era a invasora, ela que tinha vindo morar na minha casa e tinha que saber que isso trazia consequências.
- Eu não quero me sujar todo de pasta. Eu rabisco a cara delas e você coloca isso no cabelo. - disse Raian devolvendo o tubo para mim.
- Tá bom, então capriche. - falei dando a ele as canetinhas.
Ficamos algum tempo rabiscando as carinhas das bonecas, passando pasta nos cabelos de mentirinha e não demorou muito para elas ficarem horríveis. Raian soprou uma enorme bola de pasta de dente.
- Éca, vai cuspir isso. - eu mandei enquanto ele a soprava até crescer o dobro do tamanho.
Eu sabia que ele queria rir e ia acabar cuspindo no chão da minha casinha, então o obriguei a ir cuspir logo lá para longe.
Ele obedeceu e voltou rindo.
- Você viu que tamanho ela ficou? Eu acho que eu podia bater um recorde!
- Elas já estão prontas, mas tá tão simples não é? - perguntei pensando no que mais poderia fazer com as bonecas.
- Estão simples, só parecem ter ido a um salão de beleza esquisito. - ele comentou. - Talvez se tirasse os sapatinhos e roupas.
- Verdade! - falei entusiasmada arrancando os sapatinhos de plástico.
Peguei uma boneca e segurei firme as pontas da saia do vestidinho. O pano se rasgou facilmente e aquele som me deixou com vontade de ouvir mais uma vez.
Eu fui destruindo as roupas das bonecas enquanto Raian recolhia os pedaços de tecido e juntava tudo em um montinho perto dele.
- Agora elas tão horríveis. Nossa, eu não sabia que bonecas usavam sutiãs. - ele riu.
Dessa vez fui eu que fiquei envergonhada e não disse nada.
- Me dá as canetinhas e a pasta. - eu disse ajeitando as bonecas sobre a caixa que rasguei para poder deixar as Barbies sentadas em cima, fui arrumando uma do lado da outra, rabisquei também os braços e o corpo das bonecas, coloquei pasta também na cara delas e nas mãos, nos pés e em volta delas também.
- Que meleca. - disse Raian observando tudo com diversão.
- Vou lá chamar a Carol.
Ouvi então uma tossida atrás de mim. Com certa dificuldade, pois estava ajoelhada, me virei para olhar
Raian ficou paralisado, Carol estava entrando e caminhando com passos lentos em nossa direção.
Ela estava com a cara de quem tinha acabado de acordar, nas costas trazia o cobertor rosa que arrastava no chão.
Seu rosto se encheu de decepção quando ela viu as bonecas naquele estado. Os olhos passaram de mim para Raian, para as canetinhas no chão, o montinho de roupas e sapatos das bonecas e de volta para mim.
- Isso é o que você ganha por pegar meus adesivos, meu quarto e a minha mãe - declarei me levantando e falando com toda a raiva que eu podia. - Intrusa.
Ela ficou ali parada olhando tudo sem falar nada.
Seus lábios finos tremeram como se ela fosse abrir aquele berreiro e me preparei para a choradeira, mas ela não veio.
- Eu ia dar elas pra você. - ela confessou baixinho com a voz cheia de mágoa.
- Quê? - falei sem compreender.
- Eu sei que você gosta de bonecas. Eu ia dar elas pra você, ia pedir desculpas pelos adesivos quando te falasse que as Barbies eram suas. Eu nem gosto tanto delas. - ela afirmou com a voz ganhando um tom mais agudo no final das palavras.
As lágrimas encheram os olhos dela mas Carol respirou fundo e conseguiu se controlar.
- Eu pensei que ia ser legal ter uma irmã, Só que não é. Melhor não ter nem irmã e nem boneca. - ela falou dando um passo para trás.
Ela pisou na barra do próprio cobertorzinho e se desequilibrou quase caindo.
Seu rosto ainda demonstrava toda a mágoa e as lágrimas a venceram.
Senti a culpa me sufocar como se eu estivesse me afogando. O meu peito se apertava e eu não conseguia responder.
Meu rosto estava quente, provavelmente eu estava vermelha de vergonha e eu não sabia o que fazer. Teria sido melhor se ela chorasse como uma criancinha igual na noite da aranha.
Por fim, Carol olhou outra vez ao redor, quando seus olhos se prenderam nos meus eu compreendi o tamanho da besteira que eu tinha feito.
Ela só queria me dar um presente e com isso se aproximar de mim. E eu tinha estragado algo mais importante que os brinquedos dela, a chance de ter uma irmãzinha.
Quando Carol se virou e saiu da casinha na árvore, percebi o quanto ela era pequena pra idade que tinha. O cobertor fez ela parecer menor e mais frágil,.
O que eu tinha feito devia estar doendo muito. Não só por ter roubado as bonecas dela, mas por ter estragado elas e justo quando Carol ia me dar uma chance.
Ouvi o som do choro quando Carol já estava lá no quintal. Não achei que aquilo pudesse me ferir tanto, mas doeu saber que fui eu que a fiz chorar daquele jeito.
Eu era horrível, a pior menina do mundo inteiro.
- Rayan acho melhor você ir embora. - eu disse me sentando perto da bagunça com apenas uma ideia em mente.
Esperaria ali pela minha mãe. Não ia descer pra comer e nem pra ir no banheiro. Não queria ver a carinha de decepção e de mágoa da Carol de novo. Ia contar pra minha mãe tudo que eu tinha feito e esperar pelo meu castigo.
- Eu não quero ir embora, vou ficar aqui com você. - ele falou com determinação.
- Eu não quero que você fique. Vai embora. Depois a gente conversa na escola, por favor Rayan, por favor. - eu insisti com vontade de chorar.
- Cris, eu não quero te deixar sozinha. - ele disse se aproximando e se agachando na minha frente.
- só vai, por favor. - eu pedi olhando bem para o rosto dele.
Ele concordou, mas disse que voltaria mais tarde e não adiantava eu dizer pra não vir.
Ouvi ele descendo as escadas da casinha na árvore e pensei em como aquele sábado tinha se tornado tão diferente do que eu imaginei.
Pensei que ia ser divertido estragar as coisas da Carol, pensei que ia ficar o dia inteiro nisso, rindo e me divertindo com as bonecas bobas dela. Pensei que ela fosse chorar como uma mimadinha ao ver as bonecas todas feias e sujas. Eu achei que ia dar o troco pelos adesivos e por tudo que me fez ficar chateada com ela
No fim das contas quem ficou triste e magoada fui eu. E deixei a culpa me sufocar e eu chorei muito.
Chorei e chorei. Depois chorei mais um pouco. Tanto que minha cabeça começou a doer e os meus olhos ficaram inchados.
As horas foram passando. O Rayan voltou com dois sanduíches para mim, mas eu não quis comer.
Ele tentou me animar, contando piadas, comentando sobre as coisas da família dele e também falando quais os possíveis castigos que eu receberia.
Essa última parte foi a mais engraçada, pois ele dizia uns castigos bem bobos.
A certa altura ele desistiu de fazer algo, pois eu não respondia nada e nem dava mostras de que estava prestando atenção.
- Tá, eu vou deixar seu lanche aqui e faz o favor de comer, tchau. - ele disse cansado deixando o prato no banquinho e indo embora.
Ouvi minutos depois ele voltando e me preparei para ouvir mais tentativas de me fazer sorri um pouquinho.
Só que quem apareceu foi a Carol. Ela trazia um grande saco de lixo na mão. Ela caminhou até as bonecas e foi pegando uma após a outra e jogando lá dentro.
Depois pegou a caixa de papelão rasgada e os sapatinhos e roupas.
Em seguida ela jogou lá dentro as canetinhas e o tubo de pasta de dente.
- Por que tá fazendo isso? - eu perguntei com tom de quem estava com raiva, mas na verdade estava surpresa.
- Não quero que você fique de castigo por culpa minha. - ela respondeu e eu ri.
- Culpa sua? Mas eu que roubei suas bonecas e estraguei elas.
- Eu sei, mas fui eu que fiz você ficar brava. e não quero que fique de castigo. - ela repetiu.
- Você é estranha.
- Você é má. Mas mesmo assim agora somos irmãs e vamos ter que viver juntas.
Eu não soube o que responder. Queria explicar que eu não era má, só estava com raiva de tudo, inclusive dela.
- Eu também não gosto de morar aqui, sabia? Antes eu morava com o meu pai em um apartamento. Era em um prédio com um lugar pra brincar com outras crianças. Era tão legal! ela contou sentando-se no chão à minha frente, mas a uma boa distância.
- E você não gosta daqui? - perguntei sem acreditar. O ar livre era mil vezes melhor que um prédio sem graça.
- Não tenho nenhum amigo aqui. Todo mundo mora longe e eu fico em casa o tempo todo.
Ela tinha razão. Eu pensava que as outras crianças também a achavam mimada e não queriam andar com ela, mas talvez a Carol fosse envergonhada e não conseguisse fazer amizade.
- E por que você fica chorando e chamando o seu pai toda hora? Odeio isso. - confessei.
Ela baixou a cabeça e respondeu hesitante:
- Porque eu tenho medo de você.
Eu não esperava por aquela resposta e fiquei chocada.
- Medo de mim?
- Você tem cara de brava, tá toda hora parecendo que vai me atirar pra longe igual poderia fazer com as minhas Barbies.
- Você tá exagerando.
- Não tô. É o seu jeito de olhar pra mim, parece que você está brava comigo o tempo todo e quando eu fico com medo eu chamo o papai.
- Desculpe. - eu respondo sem saber mais o que falar. - Acho que estou brava com tudo isso. Eu cheguei da escola um dia e você tava aqui. Foi tão estranho. E a mamãe agora cuida de você, estuda com você e até brinca com você.
Ela ergueu a cabeça e me olhou com atenção.
- Eu gosto da sua mãe. Ela é legal comigo e o meu pai disse que vai casar com ela. - ela contou parecendo gostar da ideia. - E eu queria que você também gostasse do meu pai.
- Eu não sei. - falei sem querer prometer nada.
- Você pode tentar? Igual está tentando gostar de mim agora? - ela perguntou esperançosa.
Não respondi nada e ficamos ambas em silêncio por um tempo.
Resolvi mudar o assunto antes que prometesse coisas que não podia cumprir.
- E por que você chorou tanto quando viu aquela aranha no nosso quarto? Foi pra chamar a atenção deles não foi?
- Não, eu tenho medo de aranha, muito medo mesmo. Você nunca conheceu alguém que tivesse tanto medo que não pudesse nem ver a coisa que dava esse medo?
- Minha mãe tem esse medo de cobras. - contei a ela falando que nem em filmes ela podia ver elas.
Carol balançou a cabeça concordando.
- Então você vai tentar ser minha amiga, Cris? - ela perguntou com um suspiro.
- Vou sim. - respondi mais aliviada que ela estivesse sendo legal comigo.
Eu ainda me sentia culpada e sabia que o remorso ia me acompanhar por um bom tempo.
- Já temos uma coisa em comum. - ela comentou com um sorriso.
- o quê?
- Nossos nomes começam com C, Carol e Cris. - ela disse como se o fato devesse ser comemorado com alegria.
Acenei concordando e jogamos fora as provas do meu mau comportamento. Foi assim que começou a minha história com a minha irmã mais nova que eu amo tanto.

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