Eu ouvia uma história quando pequeno. Uma fábula, uma lenda, um conto, seja qual for o gênero na qual se encaixa, as palavras mudaram a minha perspectiva, o jeito que eu olho o mundo. Talvez porque seja tudo o que eu tenho pra fazer daqui, observar ao redor, ver as flores crescerem e mudarem. Bem, chega de enrolação.
Havia um botânico extremamente experiente, um homem de beleza castanha, uma beleza comum de certo modo, mas peculiar de outro. Os cabelos sempre bagunçados não tinham um corte definido, os olhos não eram exatamente profundos, porém guardavam um certo ar de vilania a este amante das plantas. Este dom tão raro, a dádiva da vilania, foi dado por alguma força maior que adorava rir de seu trono em algum lugar acima de nós. O botânico não era um vilão comum, daqueles que fazem o mal propositalmente. O verdadeiro vilão é aquele que o faz sem pensar, ou por puro egocentrismo.
Em seu jardim ele cuidava de algumas plantas seletas. E suas plantas o amavam tanto quanto ele o amava. As artemísias espalhavam-se por todo o jardim, a essência de seu conhecimento tida como fonte da sabedoria do homem. Elas eram importantes pra ele, importantes demais para serem retiradas como as outras ervas medicinais. E entre essas ervas havia apenas três flores, todas brancas.
A rosa branca esbanjava pureza, fidelidade e uma certa devoção, o amava com toda a força de seu ser. A margarida sempre zelava por ele, mantinha sua consciência limpa, ouvia-o nos piores momentos e era a flor preferida de sua mãe. O lírio era um amigo próximo, o melhor de todos, presente em todos os momentos, pronto para encarar tudo, aquele por quem o botânico daria o mundo. Por essas três flores, ele daria a vida.
E foi assim por muitos anos, até que, por obra do destino, uma nova flor passou a florescer no canteiro do solitário botânico. Uma flor perigosa, a flor de sua ruína. O narciso. O mesmo da mitologia, o mesmo que se apaixonou tanto pelo próprio reflexo que acabou morto. A flor da vilania pura. A flor de sua ruína.
O botânico cuidou daquela flor como jamais cuidara das outras, que passaram a sentir a falta dele. Ele conversava com ela, cuidava dela, regava, podava, fertilizava, atendia a todas suas necessidades como se fosse a única coisa no mundo. Desse modo, abandonou as outras flores, ainda que cultivasse as ervas e artemísias, as quais previram e tentaram alertá-lo do perigo daquela planta perigosa.
Com o tempo, as outras flores passaram a murchar. O lírio perdeu as pétalas, de modo que apenas seu seco caule restou daquela amizade que tanto o importava. A margarida, ainda que um pouco murcha, permaneceu ali, sempre na luta. A rosa branca adquiriu manchas vermelhas após desistir daquele homem cruel que a ignorava, resultado de sua superação consigo mesma. E tudo isso sem que ele percebesse.
Quando o narciso era a maior flor do jardim, o botânico teve uma epifania. Pensou sobre o que faltava ali, em tudo o que tinha perdido por aquela flor. Sentiu falta do que não podia mais ter, do amor da rosa agora vermelha, da amizade do lírio agora sem pétalas e da proteção da margarida ainda murcha, sem esperança. Ao notar isso, o botânico antes pacato deu lugar a um acesso de ódio. Arrancou o narciso de seu lugar na terra e gritou com ele até que murchasse.
E, assim como a flor, solitário e isolado, ele definhou. Tornou-se o clássico vilão, deixou que o ego o dominasse. Abandonou todas as flores e pagou por isso com a própria vida, tirada por ele mesmo ao arrancar da terra o narciso. As demais flores sentiram a perda definitiva do botânico, mas se fortaleceram dela. Outra pessoa viria para cuidar delas, a margarida poderia acreditar novamente em alguém, o lírio poderia florescer e a rosa poderia se tornar imaculada novamente. Era necessário que aquele homem terrível se fosse, para que um novo ciclo começasse.
Essa história me fazia pensar quem era eu nessa estranha fila das flores. E no fim, eu era o narciso.

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O Botânico
FantasyUm conto sobre o ego e suas consequências na vida de um homem que passa a dar atenção apenas a si próprio.