O dia da inclusão

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“Em 24 de Fevereiro de 1932, pela primeira vez na história do Brasil, mulheres casadas e devidamente autorizadas por seus maridos ganharam o direito de votar em todo território nacional. Para muitas daquelas mulheres, aquele 24 de Fevereiro representou sua definitiva inclusão no rol dos cidadãos de fato.” (Trecho adaptado a partir de artigo sobre o voto feminino, Folha de São Paulo.)

“Be wary, be wary,
Of the 24th of February.” (Pichação anônima)

Foi exatamente naquele oitavo dia da semana que Hymena teve certeza que estava apaixonada: com tudo o que havia de bom e de terrível de toda paixão. Se, por um lado, havia agora aquele calor agradável, o sonhar acordado, aquela coisa embolada e imprecisa (mas que preenchia de alguma maneira o vácuo que antes havia em seu coração), por outro, passaram a existir também o receio e a dúvida, que a colocavam nervosa, beirando às vezes as lágrimas. Enfim, amava, mas não havia confessado à sua pretendente seus verdadeiros sentimentos. Lucíola, sua grande amiga da casta das Historiadoras e uma das acólitas da Suprema Mãe, esta ainda de nada sabia.

Conheceram-se ainda no período de condicionamento, numa daquelas enormes e homogeneizantes fazendas comunais nos arredores da Cratera Amazônica. Criança tímida, a loura Hymena tinha poucas amigas, mas rapidamente desenvolvera-se fisicamente, demonstrando grande aptidão para os esportes, em especial nas artes marciais e no combate corpo a corpo. Foi, portanto, até uma grande surpresa para si, quando traindo suas expectativas, a selecionaram aos dezesseis para a muito intelectual casta Geneticista.

Certa vez retornava ao dormitório depois de uma maçante classe de Gametologia quando viu uma moça pequena e morena defendendo-se de três provocadoras muito maiores. Admirou-se desde que a viu: Lucíola, embora certamente fosse levar a pior no embate desigual, não cedia e não demonstrava medo.

— Ela é minha, deixem a pequena em paz! – Gritou às três, posicionando-se para o combate e exibindo o cabo da faca-marimbondo presa a um cinto no corpo seminu.

As moças entreolharam-se e retiraram-se assustadas. Sabiam muito bem que ninguém recebia a honraria duma faca-marimbondo à toa.

— Meu nome é Hymena, mas pode me chamar de Mena – ela se apresentou, limpando o sangue que corria sob o nariz da garota miúda com um lenço que levava amarrado ao pescoço.

— Lucíola é meu nome. Obrigada pela ajuda! – A morena a olhou com os olhos apertados, como se encarasse o Sol. — Ah, sim: eu não sou sua! Só para deixar tudo muito claro...

A amizade cresceu então, alimentada pela admiração e mútuo apoio que as moças passaram a se dar. Lu era ótima nas matérias de humanas e só tirava grau máximo em velhalíngua e religião; declamava de cor trechos inteiros da Bíblia de Caba. Mena, por sua vez, ajudava a amiga em ciências exatas, adestramento de insetos e nas atividades esportivas. Infelizmente, após o término do curso secundário, foram encaminhadas para terminar sua educação em cidades diferentes. Hymena a Nova São Paulo e Lucíola a Cabataba, a capital.

Passaram-se quase oito anos, quando Hymena foi promovida e transferida à capital e, por pura sorte, esbarrou com Lucíola no lotado refeitório da Colmeia Governamental.

A garota miúda e corajosa transformara-se numa mulher muito atraente, cheia de curvas e de rosto singular, com os mesmos grandes olhos castanhos que encantaram Mena um dia. Tinha no antebraço um bracelete roxo da casta Historiadora e levava um manto de acólita sobre os ombros! A morena riu de pura felicidade ao reencontrar a amiga: agora o destino não as separaria mais. A jovem de traços nórdicos, por sua vez, descobriu afinal que só vivera meia vida naqueles últimos anos solitários em NSP.

O dia da inclusãoOnde histórias criam vida. Descubra agora