A MEMÓRIA

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- Você foi colocada para fora de casa?

- Do que você está falando?

Kean mostra o celular roubado sem orgulho nenhum. A feição de Lisa muda em dois segundos ou menos. Ele espera isso, espera que a raiva saia da pequena jaula e tome conta de tudo. Conta mais alguns segundos e aguarda.

- Meus pais não param de brigar. Minha mãe ignora o homem do outro lado da cama o dia todo. E, antes de nos encontrarmos, meu pai me ligou, disse que iria me buscar e que eu não podia fazer aquilo com a minha mãe. Isso não é sobre a minha mãe, é sobre o quanto eu odeio o que ele fez com a minha mãe.

Ah, a velha história que se arrastava por anos.

- Ele me colocou para fora de casa – ela admite e um relâmpago corta a noite. – Mas eu nem ligo, não pretendo voltar.

- E a sua mãe?

- Ela está com a minha irmã na casa da minha avó.

- Elas estão bem?

- Acho que sim.

- Você está bem?

- Não faço ideia do que farei daqui em diante e ainda tem a ousadia de me perguntar isso, Kean?

Ela explodiria se pudesse. Uma bomba, uma tempestade.

- Ok, eu vou tentar dirigir nessa chuva. Preciso te mostrar uma coisa.

Lisa se silencia no banco ao lado. Ele dirige pela chuva, reza para que eles consigam sair sãos e salvos. As ruas vazias ajudam, mas os baldes d'água atrapalham quando Kean a deixa sozinha no carro para buscar as duas caixas, uma mala velha e uma mochila na varanda da antiga casa dela.

- Você é um idiota – ela comenta. Seus olhos não brilham com lágrimas, mas sim com raiva.

- Você vai ficar no meu apartamento enquanto não consegue algo, ok?

- O que você acha que eu vou conseguir? Ele destruiu a minha reputação como professora, eu não tenho um mestrado como você, eu não sei como ainda estou respirando quando parece que não mereço o ar. Ele transformou a minha vida em um inferno.

- Mas você continuou voltando para casa, Lisa, você poderia ter corrido e voltou.

- A culpa não é minha se eu queria salvá-las!

- Você não vai conseguir nada com aquele monstro na sua cola! Você não vai conseguir salvá-las se elas não decidirem que precisam sair! – ele explode e ela recua. – Pare de tentar ser a heroína delas, salve-se primeiro!

As lágrimas são genuínas. Ele soca o volante diversas vezes, a buzina dispara, mas os trovões são a principal atração da noite. O surto dele é desesperador como o coração dele batendo rápido e descendo as escadas do prédio e ligando o carro e tentando salvar alguém que deveria ser salvo.

- Elas foram para a casa da sua avó porque queriam?

- Meu pai tentou me machucar – ela se esconde ainda mais no moletom. – Elas saíram correndo assim que eu revidei. Eu peguei o essencial e corri.

- Elas estão bem?

- Eu acho que sim, a minha avó ligou para o meu tio. Ele não vai machucá-las, ele só me odeia.

- E você? Para onde eu devo levar as suas coisas?

- Eu não sei. Não quero pensar nisso agora. Não quero falar para a minha mãe que perdemos tudo porque eu fui uma idiota.

Kean deixou Lisa chorar.

A história deles foi construída à base de sanduíches da cafeteria mais próxima do prédio em que eles estudaram. Uma cidade pequena leva aos moradores se conhecerem, independentemente da idade e do endereço. Ele cursava física e ela estudava artes, ou psicologia, ou línguas estrangeiras, dependia da aula em que eles se esbarravam.

No entanto, eles se conheceram quando Lisa se escondeu em uma das salas vazias para ter sua crise de pânico em paz. Ele a viu passar correndo e a seguiu. Depois daquele dia, eles passaram a dividir conversas e sanduíches, noites de insônia e inseguranças.

Kean ganhou a chance de ir direto para um mestrado, Lisa terminou o curso e viajou por algum tempo. Eles deixaram de se falar. Ela ainda o manteve nas redes sociais, mas as mensagens não eram mais as mesmas.

A ligação construiu uma memória.

E abre caminhos a cada esquina.


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Olá, queridos leitores! Vocês ainda estão aqui?

Eu queria pedir perdão pelo sumiço e abandono. Eu queria ter continuado esse conto, mas ele evoca alguns sentimentos que eu não me sinto exatamente confiante em trabalhar quando não estou bem. No entanto, resolvi superar esse "medo" e voltar.

Eu quero dar uma conclusão para uma história que faz parte de mim.

Obrigada por esperarem.

Gorro Vermelho aka Isadora


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