Prólogo

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Uma batida na porta do quarto e Cadu espiou por cima do ombro, a tempo de ver o pai colocar a cabeça para dentro. O sorriso animado que recebeu deveria lhe dar vontade de retribuir; só não quando vinha daquele homem.

O senhor Carlos avançou alguns passos e depositou sobre sua escrivaninha a pilha de apostilas que antes abraçava com um afeto desnecessário. Cadu olhou para elas, do pé ao topo dos livros de capa amarela que o acompanhariam ao longo do ano. Um para cada bimestre, e suas versões diminutas com listas de exercícios.

Mas que porcaria é...

— O que é isso? — questionou em um murmúrio engasgado; os olhos a bons centímetros do material escolar, com medo de que pudesse pegar algum tipo de doença caso encostasse nele. Estava gasto e algumas pontas esfarelavam, como muitos dos clássicos que a mãe tinha na biblioteca de casa. A diferença era que aquelas deveriam ser suas apostilas novas.

— Os livros do primeiro ano que você pediu. Tinha uma feira de usados na frente do portão da escola. Essa senhora me vendeu cada um deles por dez reais. Dez reais! Eu até consegui fazer ela me vender os exercícios prontos. Vou deixar com você, se prometer que vai tentar fazer sozinho antes de olhar a resposta.

Cadu piscou devagar enquanto observava os movimentos do pai. Ele gesticulava e apontava para trás, como se isso fosse fazê-lo enxergar a feira que estava acontecendo naquele momento e a mãe do terrorista que tinha usado aquele material no ano anterior.

Levantou-se da cadeira e empilhou os livros nos braços.

— Eu sabia que devia ter ido com você. Minha mãe vai te matar.

— Sua mãe não precisa saber. — O pai ergueu um dedo em frente ao seu rosto e se colocou no caminho quando Cadu tentou desviar os passos para alcançar a porta.

— Me dá licença. Eu vou lá devolver.

— Ela já foi embora, e são ótimos livros.

— É, eu tô vendo.

— Ninguém mais tava vendendo os exercícios prontos, Caduco. — O senhor Carlos tirou os livros de seus braços e foi devolvê-los na escrivaninha. — E a gente sabe que você pode fazer um bom uso deles.

Com a atenção nas costas do pai, Cadu não soube se deveria se sentir grato ou ofendido; talvez um misto dos dois. Mas gratidão não era um estado fácil de alcançar naquele momento. Se tinha horror de apostilas brancas, não fazia ideia do que aconteceria cada vez que precisasse abrir alguma daquelas, mastigadas pelo aluno mais velho.

— Eu preciso de livros organizados.

— Você precisa de nota. Quase não tirava seis, e sua mãe me disse que a média do ensino médio é sete.

— Pai...

— Vai tirar esse pijama, Tábata tá chegando pro churrasco. E sua mãe não precisa saber — ele repetiu enquanto se retirava para o corredor.

Cadu o esperou sair e se arrastou para a cama. Deixou o corpo cair até ter a cara afundada no travesseiro, onde arriscou um grunhido alto, certo de que ele seria abafado.

Sabia que o problema não eram os dez reais, muito menos sua nota sete. O problema era que nunca teria passado pela cabeça do pai a necessidade de dar a volta no parquinho das crianças e avançar pela secretaria para chegar à livraria da escola, quando poderia estacionar bem em frente à primeira senhora que tivesse os livros do primeiro ano e perguntar quanto ela queria por eles.

Era apenas mais um dos atalhos que ele pegava. Já os conhecia havia quinze anos, desde o dia em que nascera: quando o senhor Carlos deixara a esposa na maternidade e saíra com um papel portando a exata grafia do nome que ela havia escolhido para o que seria seu único filho, Carlos Eduardo. Ele voltara com a certidão de nascimento de Cadu, porque todo mundo chamaria o moleque assim de qualquer forma. Que enrolação mais boba.

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