Fazer o certo.

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- Eu devia acordar agora. Se perder essa entrevista de emprego, eu tô frita. A conta de luz já venceu semana passada e a de água...

- Tá bom, agora chega! - disse Leila, respondendo em alto e bom som às lamentações daquela voz que vinha de sua cabeça.

Na mesma hora, em todos os cantos da cidade, outras vozes transmitiam a mesma mensagem. Cada uma, à sua maneira.

"Aquela víbora vai começar a reunião sem mim". "Mais 2 minutos e vou perder o ônibus da escola.". "Já são quase 7 horas, vou pegar trânsito." Múltiplas vozes se misturavam em uma nuvem de murmúrios sonolentos.

Era uma manhã realmente estranha. Como se, de repente e pela primeira vez, todos soubessem exatamente o que fazer de suas vidas. Nada de hesitações ou de situações delicadas, nada de decisões equivocadas ou questões de múltipla escolha. Havia uma só verdade e ela morava na mente de cada pessoa naquele amanhecer de junho.

- Desde quando eu sou assim, tão segura? - pensou Leila, por uns instantes, enquanto escovava os dentes. E a explicação veio logo: só podia ser aquele livro de autoajuda que ela começara a ler na semana passada. Não é que aquela coisa funcionava mesmo? Ela precisava contar para todo mundo. Mas antes, tinha um trabalho a conquistar.

Determinada como nunca estivera em seus 36 anos de vida, Leila deu um salto da cama e correu para o banheiro. Ao sair do banho, abriu as portas do guarda-roupa e, dentre todos aqueles modelos, cores e estampas, pegou do cabide um blazer nude. Pálido e sem graça, perfeito para a ocasião.

Quando acabou de se arrumar, queimou a língua engolindo um café e desceu, praguejando, quatro lances de escada até chegar ao portão do sobrado onde morava. Com seus saltos ecoando como o trote de um cavalo bravo, Leila correu, tomou o ônibus e fez questão de se sentar em um banco individual, para se concentrar no que iria dizer logo mais.

Para sua surpresa, após alguns quilômetros apertou a campainha no local exato onde deveria descer, mesmo sem nunca ter ido àquele bairro.

- Devo estar com sorte. - refletiu em voz alta.

Ao som das buzinas e de algumas músicas vindas do interior dos carros, Leila atravessou a rua que separava o ponto de ônibus e o escritório de contabilidade, que era seu destino. Antes de entrar no enorme edifício de vidros espelhados, passou por um mendigo, a quem cumprimentou com um aceno de cabeça e um trocado. Era o correto a se fazer.

- Primeiro andar, sala dez. Boa sorte! O sorriso simpático da recepcionista em plena segunda-feira mostrava que ela também obedecia à sua voz interna.

A chegada do elevador encontrou Leila secando o suor da testa com as costas da mão. Ela entrou, sorriu para o espelho atrás de si e concluiu, com satisfação, que sua aparência estava impecável. Requintada em um nível intermediário, algo entre vilã de novela das nove e empresária bem-sucedida dos anúncios de empréstimos. Além disso, seu currículo era muito superior às necessidades da vaga e, com a indicação que recebera por parte do principal contador da firma, tinha tudo para acreditar que o emprego estava em suas mãos.

Com isso em mente, a mulher adquiriu confiança para girar o trinco da porta e sentar-se de frente ao diretor da empresa. O homem parecia ter pressa em começar a tensa conversa.

- Vejo que é formada em Economia, Leila. O homem de aparência ligeiramente esnobe do outro lado da mesa devia ter uns 45 anos bem vividos.

- Sim, turma de 2008, com louvor.

- Excelente! Excelente! Agora, me fale um pouco sobre você. O que te chamou a atenção na vaga de secretária pessoal do nosso CFO?

E, antes que ela pudesse abrir a boca, o homem completou:

- Veja bem, eu sei que suas qualificações dariam para ocupar um cargo superior, mas fico feliz que tenha escolhido trabalhar conosco. Me conte como foi essa decisão.

- Bom, o que me motivou a me candidatar para essa vaga foi a oportunidade de cresc...de aprender com todos aqui, senhor... - falou, empregando a técnica que retirou das cenas de negociação dos filmes, para descobrir o nome de seu entrevistador.

- Ah, desculpe. Me chamo Clóvis.

- Como eu ia dizendo, seu Clóvis, meu desejo é ter a oportunidade de me desenvolver profissionalmente. Quero contribuir com essa empresa através do meu trabalho e da minha dedicação.

As palavras fluíam de tal forma que começavam a assustá-la. E a encantar seu interlocutor.

- Gostei de você. É exatamente o perfil de que precisávamos aqui na organização. Mesmo assim, deixe-me perguntar outra coisa: qual é o seu maior defeito?

- O perfeccionismo. - disse, sem pestanejar. - Não aceito nada menos que o melhor, principalmente no que se refere a mim.

- Estou impressionado, Leila. Não deveria dizer, mas no que depender de mim, você já está contratada.

O brilho nos olhos do homem confirmavam a sinceridade de suas palavras.

- Para encerrar, só mais uma pergunta. - continuou. Como você se vê daqui a 5 anos?

Neste momento, o semblante de Leila se escureceu sob a influência da dúvida. Se dissesse a verdade, na certa, perderia a vaga. O que o diretor da empresa na qual ela pretendia trabalhar diria quando descobrisse que seu sonho era juntar dinheiro para viajar o mundo e que aquele emprego era apenas um indesejável degrau para alcançar esse objetivo? Ele certamente iria rir às gargalhadas ao conhecer seu plano de ensinar economia para comunidades ao redor do planeta, em vez de passar 8 horas atendendo a telefonemas em nome de uma grande empresa de contabilidade. Onde já se viu tamanho absurdo?

Pela última vez naquele dia, Leila seguiu a voz da razão e, articulando sua fala da melhor forma que encontrou, começou a falar.

- Bem, eu sou economista. - tanto a voz em sua cabeça, quanto a expressão do entrevistador forçaram uma mudança rápida no rumo na conversa - Mas, nunca teria a ambição de assumir um cargo de tamanha responsabilidade em meros 5 anos de trabalho. Portanto, daqui a 5 anos, espero ser uma secretária experiente e útil.

- Ora, mas então você foi feita para ocupar esse cargo! - os olhos do homem cintilavam.

Um sorriso amarelo, da parte de Leila e um forte aperto de mão encerraram aquela sabatina insuportável. Ela tinha certeza que havia feito a coisa certa, dito exatamente o que deveria. E, mesmo assim, sentia o peso de mil correntes em seus pés.

Com o peso da subordinação nas costas, não foi difícil para Leila se afundar no sofá e mandar às favas aquele ruído incômodo, que insistia em lhe dizer para atender o telefone. Na manhã seguinte, a voz havia desaparecido. Diz-se que mudou de identidade, atende agora pelo nome de senso comum, e segue perambulando por aí, em busca de uma cabeça para morar. Seja como for, essa verdade padrão, Leila não ouve mais. 

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⏰ Last updated: Aug 12, 2019 ⏰

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Fazer o certo.Where stories live. Discover now