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 Abri a geladeira, demorando um pouco mais do que o necessário para pegar a garrafa com água lá de dentro

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Abri a geladeira, demorando um pouco mais do que o necessário para pegar a garrafa com água lá de dentro. Minhas mãos tremiam. Eu sentia meu corpo gelado pelas suposições quase certas que meu cérebro projetava sem descanso.

O rapaz me pareceu familiar, pois se parecia comigo.

Ele não podia ser... Não. Não! Isso era perturbador demais. Eu precisava respirar com calma, precisava raciocinar.

Esse rapaz veio à minha procura por um motivo diferente do que estou pensando. Não me lembro de eu e Sara... Não, não, não. Não! De forma alguma aconteceu o que estou supondo.

Sentado no sofá, o rapaz não tirou os olhos de mim. Senti meu coração falhar uma batida quando fechei a geladeira e me voltei na direção dele. Ele tinha olhos, cabelo, boca e queixo iguais aos meus. Era como se estivesse diante de uma versão mais jovem de mim. Respirei fundo e desviei o olhar, indo sentar na cama, de frente para ele. Larguei a garrafa e os dois copos em cima do criado-mudo, esquecendo-me de lhe oferecer antes que sentasse.

— Desculpa... É... Quer um pouco d'água? — inquiri, passando as duas mãos que suavam sob as coxas.

O rapaz dispensou com um menear de cabeça.

— Não, obrigado.

Ele me olhou mais um pouco e depois abaixou a cabeça. Estava reflexivo e um pouco da comoção de quando me viu havia se dissipado. Escorando os cotovelos sob os joelhos, ele pressionou as duas mãos e olhou em volta. Estudou cada canto do meu apartamento de um cômodo só. Eu não conseguia descrever o que o garoto estava sentindo, muito menos tinha coragem de dizer alguma coisa. Dentro de mim só havia medo e decepção por saber o tamanho do erro que cometi.

Se minha dedução estivesse certa, as consequências do meu erro haviam sido muito maiores do que eu imaginei.

Incontáveis vezes imaginei que Sara teria conseguido recomeçar sua vida assim que a deixei. Ela não teria mais que lidar com o fardo gigantesco e problemático que eu era. Apaixonar-me por ela só lhe trouxe sofrimento. Se eu nunca tivesse me interessado, nenhum mal teria lhe acontecido. Sara estaria bem, sem nenhum trauma para acrescentar aos tantos que já tinha. Mas jamais pude supor que teria engravidado. Ela não me contou nada antes que eu partisse.

Amordaçado pelas minhas preocupações, mantive-me atento ao rapaz, que prosseguiu em sua minuciosa análise do meu refúgio com poucos pertences. Tudo que tinha dentro do meu quarto era uma cama de solteiro, um sofá ao canto, uma geladeira, uma cômoda, um fogão de duas bocas em cima da pia, um criado-mudo, uma mesa de cabeceira e uma estante contendo todos os meus livros, CDs, vinis e estéreo, que eu usava para ensaiar. As paredes com tijolos expostos e teto de gesso, manchado por infiltração, deixavam o ambiente ainda mais desleixado.

Para alguém que não tinha grandes ambições, como eu, era o essencial. Mesmo não ligando para futilidades, como status social e boa aparência, não consegui evitar me sentir inferior. Eu sabia muito bem qual impressão que eu estava passando. Ser visto como um Zé Ninguém por ele me feriu de um jeito indescritível.

O rapaz me encarou novamente e, diante de sua polidez, cabelo bem penteado para trás, relógio caro e roupa engomada, engoli em seco e resolvi ser o primeiro a quebrar o silêncio.

— Sua mãe sabe que está aqui? — Foi a primeira pergunta que me veio em mente.

Timidamente e agitado, o garoto negou com a cabeça.

— Não, ela morreu tem dois anos.

Senti como se trinta punhais tivessem atravessado meu peito de uma só vez e me dilacerado. O ar ficou rarefeito e minha cabeça girou, como nunca antes.

Sara. Minha Sara. Morta.

As lágrimas encheram os meus olhos sem pena e minha garganta embargou. Escondido entre minhas mãos, chorei até conseguir me conter. Coloquei as mãos no rosto e me obriguei a ser forte para ouvir tudo que ele tinha a dizer. Não podia me mostrar um fraco na primeira informação que recebi, mesmo acreditando que nenhuma outra notícia me abalaria tanto quanto essa.

O rapaz me esperou, observando-me sem reagir ou dizer nada. Para ele eu era um mistério, tanto quanto ele era para mim.

— Pode me dizer como ela morreu? — Eu me atrevi a perguntar. Porém, percebi que não teria as respostas que queria quando o vi franzir os lábios e estreitar os olhos, deixando escapar o primeiro vestígio de raiva.

Engoli em seco e sequei o meu rosto, enquanto o ouvi dizer:

— Câncer de mama. Só te contarei mais coisas depois de você ouvir o que eu tenho a dizer — ele disparou com frieza e ferocidade.

Não ousei contradizê-lo. Não o culpei por sentir tanta raiva de mim. Naquele momento, sabendo do que houve com Sara, entendia que raiva era o sentimento mais digno que eu poderia causar em alguém que a conheceu e soube do que fiz a ela.

 Naquele momento, sabendo do que houve com Sara, entendia que raiva era o sentimento mais digno que eu poderia causar em alguém que a conheceu e soube do que fiz a ela

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