O rapaz pressionou as palmas das duas mãos. Após respirar fundo, prosseguiu:
— Vim aqui para saber o porquê de você ter abandonado minha mãe grávida de mim. Eu sei que você é o meu pai, não adianta negar — intimou, sem titubear.
Um pouco da aflição que havia em meu peito amenizou. Encarei-o no fundo dos olhos antes de olhar para baixo. Não conseguir disfarçar a fisgada de alívio que me afligiu, deixando escapar um meio sorriso.
— Do que você está rindo?
Meneei a cabeça, obrigando-me a ser o mais lúcido possível. Eu precisava tomar cuidado com o que estava prestes a dizer. Passei a minha vida tentando evitar que meus problemas caíssem no colo de outros. Não podia estragar para sempre a vida de alguém que, provavelmente, se tornaria alguém importante para mim.
— Sei que está curioso para ouvir o que tenho a dizer, mas antes preciso ouvir como sabe com tanta certeza de que sou seu pai. — Ele estreitou o cenho, prestes a me rebater, mas o interrompi antes que dissesse qualquer coisa. — Acredite em mim, será melhor assim.
Guilherme se inquietou no assento, inspirou com força e me olhou aborrecido. Após refletir um pouco, conformou-se com minhas imposições.
— Eu não deveria estar aqui. Meu padrasto cansou de me dizer que isso era um erro, mas fui teimoso e não o ouvi. Eu poderia continuar fingindo que você não existia. Afinal de contas, eu não existia para você até poucas horas, não é mesmo?
Engoli em seco, reconhecendo que nesse ponto nós concordávamos.
— É, eu sei que você abandonou minha mãe e a mim quando ela estava grávida. Ela me disse que você tinha medo de ser pai, por causa do pai que teve. Ele molestava você quando criança, não era?
Fui pego de surpresa, tendo meu pior trauma sendo esfregado na cara por um desconhecido, sem nenhum pudor. Por alguém que não sabe nem metade do que realmente aconteceu.
— Isso não é da sua conta — sentenciei, estridente. Uma raiva descomunal borbulhou em minhas veias, misturando-se à vergonha, ódio e repulsa.
Esfreguei os olhos, recusando-me a lembrar do que aquele homem fazia comigo quando não estava drogado. Tirei as mãos das minhas pernas e segurei o colchão com força, sentindo a pele formigar por ter consciência que fui violado pelo meu próprio pai, alguém que por instinto deveria me proteger.
Levantei-me de súbito, não suportando estar dentro da minha própria pele. Senti-me sujo, imundo e impuro, como sempre fui.
Ele era meu pai. Meu próprio pai... Aquele infeliz estragou a minha vida para sempre. Depois que pagasse na cadeia por tudo que fez, eu só esperava que ele fosse para o quinto dos infernos, se é que existia um. Eu podia ser um agnóstico convicto, mas se tratando deste caso eu acreditava. Desejava que Carlos passasse por todo sofrimento e dor que pudessem lhe proporcionar.
— Me desculpa. Eu não deveria ter tocado nesse assunto — o rapaz balbuciou.
Virei-me para ele, sentindo ira por meus olhos terem lacrimejado mais uma vez.
Eu só havia confidenciado o que meu pai costumava fazer comigo com Sara. Foi ela que me ajudou. Apenas ela me entendeu. Mas nada dessa merda importava. Meu destino sempre foi único e exclusivamente viver dominado por esse trauma. Não adiantava fugir, não adiantava fingir que não aconteceu. Estava em meu passado, gravado em minha pele e em meu reflexo no espelho. Minha única alternativa era conviver com isso.
— Pouco antes de falecer, minha mãe contou que você tinha nascido no interior do Rio Grande do Norte. Acho que era Santo José do Mipibu o nome do lugar que ela disse. Uma cidade pequena. Ela disse também que provavelmente você estaria morando na capital. Uma das lembranças que tinha de você era que você sempre falava muito bem de Natal.
Uma lágrima escorreu do meu rosto quando fui tomado por essa recordação. Mato Grosso podia ser um lugar bonito, mas não tinha as praias daqui. Ela costumava rir do meu sotaque. Tentava imitar meus Ts e Ds enfatizados e ritmar cada frase como só um legítimo nordestino conseguia fazer.
Sorri, fechando os olhos e saboreando a sensação de imaginá-la. Mais do que nunca, eu queria voltar no tempo. Queria ser jovem de novo e ter optado por ter sido feliz junto com ela.
— Eu posso voltar depois, se você preferir — ele sugeriu, levantando-se. — Preciso ligar para o meu pai e dizer que te encontrei... Quer dizer, para meu padrasto. Ele pediu para que eu fizesse isso. Não costumo deixá-lo preocupado.
Senti todo meu corpo doer, exausto e desanimado. Queria deitar na minha cama e dormir, fingindo que este dia nunca aconteceu. Sara ainda estaria viva em algum canto do mundo e eu não estaria sendo obrigado a enfrentar todos os males que mais me perturbam, todos de uma vez só.
Enxugando o rosto, respirei fundo e me esforcei para manter meus pensamentos em ordem. Ao olhar para o rapaz, vi uma nota de complacência em seu semblante.
— Me desculpa — ele murmurou, abrindo os braços. — Quando imaginei nosso primeiro encontro, não esperava que fosse assim.
Dispensei seu desconforto com uma das mãos. Apesar de ser uma tarefa difícil, eu precisava ouvir tudo que ele tinha a dizer. Da mesma forma que o garoto precisava ouvir o que eu também tinha a lhe contar. Querendo ou não, Guilherme era sangue do meu sangue. Um parente inesperado que veio em minha procura, cheio de expectativas.
— Não. Não precisa se lamentar — eu disse com o tom mórbido. — Conversaremos e contaremos tudo que temos a dizer.
Ele consentiu, mostrando-se revigorado pela minha necessidade de também o ouvir.
Olhei para as minhas roupas sujas e suadas. Eu estava imundo, tanto por dentro quanto por fora. Ao menos era assim que me sentia.
— Espere apenas eu tomar um banho, sim?
Ele concordou. Entorpecido, segui para o banheiro, sem esperar outra resposta.
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Em teus passos | Completo
Krótkie OpowiadaniaSINOPSE: Com uma vida marcada por traumas, Calebe conheceu o amor ainda jovem ao encontrar Sara, a garota de sorriso fácil e olhar astuto. Os dois planejaram viver juntos até onde fosse possível, criaram planos para uma vida feliz e enxergaram na af...