Metade

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E Marco Antônio enfim terminou de afinar seu novo violão. Um Giannini preto, seis cordas. Sonoridade acústica perfeita, apesar de ser elétrico.

Na tela do computador, a cifra de uma musica de peso e de importância para o casal, "R U Mine?" do Arctic Monkeys, que ele fez questão de tirar completamente, inclusive os solos que ocorrem durante a musica.

- Amor? - gritou ele do quarto à Anna Bela, sua companheira que via TV no escuro sentada no sofá da sala, e tomando café, acompanhado de um saco de bolachas.

- Uhmn - respondeu ela, enquanto levava sua xícara até a boca pra mais um gole do liquido negro e amargo. Ela tomava café sem açúcar.

- Pronta pra escutar uma música especial?

Ela respondeu que sim, e mesmo que parecesse como um "tanto faz", ele ainda assim se manteve animado. Tirou a blusa, ficando apenas com a calça do pijama. Passou a correia sobre a cabeça, ajustou a altura certa, tocou um "Fá sustenido" testando novamente a afinação do violão, e se dirigiu a sala.

Pegou o controle e colocou o volume da TV no mudo. De costas para a moça, ele soltou um "Are you ready?", olhando para trás sobre o ombro. Anna Bela inabalada, deu uma mordida e devorou metade de uma bolacha que segurava com a mão direita.

Marco Antônio virou-se. De frente para seu amor ele então começou a tocar, inicialmente meio tímido...

I'm a puppet on a string
Tracy island, time-traveling diamond
Could've shaped heartaches


They' ve come to find ya fall in some velvet morning
Years too late
She's a silver lining, lone ranger riding
Through an open space
In my mind, when she's not right there beside me


I go crazy cause here isn't where I wanna be
And satisfaction feels like a distant memory
And I can't help myself,
All I wanna hear her say is "Are you mine?"
Well, are you mine?
Are you mine?
Are you mine? Alright

Anna Bela ainda sem reação. Marco Antônio começou então a suar. Se sentia como um astro do rock perdendo o interesse do seu publico. Tocando mais forte cada acorde, cantando com mais força cada frase, ele continuou...

I guess what I'm trying to say is I need the deep end
Keep imagining meeting, wished away entire lifetimes
Unfair we're not somewhere
Misbehaving for days
Great escape, lost track of time and space
She's a silver lining, climbing on my desire


And I go crazy cause here isn't where I wanna be
And satisfaction feels like a distant memory
And I can't help myself,
All I wanna hear her say is "Are you mine?"
Well, are you mine?
Are you mine tomorrow?
Are you mine? Or just mine tonight?
Are you mine? Are you mine?

Anna Bela deu mais uma mordida em um nova bolacha, e tomou mais um gole de café. Marco Antônio começou a andar pelo "palco" chamando o público para si, chamando Anna Bela, que respondia apenas com mais uma mordida na maldita bolacha. Um novo acorde tocado no violão por parte dele. Um novo gole de café por parte dela.

A musica continuou...

And the thrill of the chase moves in mysterious ways
So in case I'm mistaken,
I just wanna hear you say you got me, baby
Are you mine?

She's a silver lining, lone ranger riding
Through an open space
In my mind when she's not right there beside me

I go crazy cause here isn't where I wanna be
And satisfaction feels like a distant memory
And I can't help myself,
All I wanna hear her say is "Are you mine?"
Well, are you mine?
Are you mine tomorrow?
Are you mine? Or just mine tonight?
Are you mine?
Are you mine tomorrow?
Or just mine tonight?

Fim do espetáculo. Ele, de joelhos segurando firme as cordas da ultima nota tocada, que soou por um tempo na escuridão enquanto ele tentava recuperar o fôlego.

Nas paredes as sombras projetadas pela única fonte de luz do ambiente, que era a TV ligada na novela das nove. Nele a preocupação se a musica ficou boa. Nela a preocupação que o café havia acabado.

Marco Antônio enfim arriscou:

- Are you mine?

E a resposta dela:

- Não, sou só metade! - seguido de um sorriso.

Silêncio mortal. Com o coração disparado ele se levantou e ela também. De frente um para o outro ali ficaram por meio segundo, até que...

A TV saiu fora do ar e o volume retornou no máximo.

A luz amarelada do lustre da sala começou a piscar descontroladamente, em intervalos não regulares.

A metade direita de Anna Bela começou a derreter de cima para baixo. Excrementos do crânio cobriu o ombro da moça, em seguida, ossos das costelas despencaram no chão.

Meia-Anna Bella foi o que restou.

Uma a uma as cordas do violão começaram a arrebentar, e com vida própria, enrolaram-se em Marco Antônio. As mais graves seguravam seus braços contra o tronco, e as mais agudas enrolaram-se em seu pescoço.

Falta de ar. Terror. Angustia. Inferno. Na cabeça apenas a resposta para a maldita pergunta...

"Não, sou só metade!"

"Não, sou só metade!"

"NÃO. SOU SÓ METADE!

***

O silêncio foi quebrado pela vibração do celular sobre o criado mudo ao lado da cama.

Na janela podia-se sentir o mormaço e a claridade do dia lá fora. Marco Antônio completamente suado sentou-se na beirada da cama e respirou fundo.

Pega o celular.

Na tela, uma mensagem de texto de Anna Bella: "Eu te amo."

Maldito pesadelo.

Maldito arquivo mp3 que baixou somente metade no ultimo download.

Marco Antônio ficou um bom tempo sem ouvir Arctic Monkeys novamente.

Levantou e foi tomar café. Com bolacha.

MetadeWhere stories live. Discover now